Da janela, observo os transeuntes. De peitos abertos, dispostos a encarar qualquer perigo, eles surgem e desaparecem em meio às árvores que cercam o quadrado livre do terceiro andar. Vez sim, vez não, também vem em mim a dor de ir ao encontro do perigo. Me pergunto “de que vale o risco?” e automaticamente a resposta vem aos olhos: “é necessário”. De várias formas o perigo nos atrai e bastasse a devastação que ocorre enquanto escrevo este texto e você o lê, mais uma vez nós nos lançaremos ao desconhecido.
Por mais que conheçamos o caminho, mesmo que saibamos de cada pedra e raízes das grandiosas árvores que cortam o concreto das calçadas, deixamos de conhecer o que nos cerca. Andar, tornou-se ato de rebeldia e de sobrevivência, mas, ao mesmo tempo, de temor. E apesar disso tudo que já sabemos, há quem não tenha a mesma sorte de escolher se andar é um ato de rebeldia ou de temor. Há quem ande apressadamente como quem persegue algo que implicitamente surge e desaparece aos olhos, trazendo a constatação: quem tem fome, tem pressa.
No outro lado da rua, há quem não acredite que a devastação é real, que não mata, que não destrói lares e nem deixa irreparáveis sequelas. Só de pensar nessas pessoas, meus dedos tremem, e vez por outra, erro as letras, sendo necessário reparar o erro e penso: e o erro dessas pessoas, quem repara?
O tempo passa e, com ele, as pessoas se vão. Para onde vão eu não sei, mas por mais que alguns voltem e abracem seus afetos, há quem não teve nem a oportunidade de dar um beijo de despedida “até mais tarde, fica com Deus”.
Da janela é muito simples criar um conto e discorrer sobre os delírios de estarmos isolados, de comprarmos cervejas, vinhos e acendermos uns finos, mas e aí? Sim, eu estou te perguntando e você deve responder em voz alta! E aí? Você e eu fazemos nossa parte na maior crise sanitária da história. Mas, e aí? Responda!
Não, calma! Não é para sair pê da vida, querendo xingar os eleitos da janela. É para refletir, pois enquanto estamos aqui, sentados, quem está lá fora? Como são essas pessoas?
Quando elas comem?
Pera, elas comem?!
É. Este poderia ser mais um textão de blog querendo botar o dedo na ferida – que nem é mais necessário fazer, visto o tamanho do rombo em que estamos enfiados até o pescoço – mas não só. A diversidade da desigualdade se apresenta em formas que nem eu mesmo entendo. Ou seria correto dizer “as desigualdades”?
Você percebe o tamanho do delírio que é isso tudo que você leu agora? Pois é… Isso é isolamento. Você até falou sozinho e nem percebeu! E sim, falar sozinho é bom. No mais, o intuito disso aqui é alertar, não fazer um juízo de valor barato. Eu te alerto que a sua proteção não pode se sobrepor a proteção de mais ninguém. O seu direito acaba quando fere o direito alheio, sacou? Enquanto estamos aqui falando sobre alertas, algozes estão fazendo o maior arregaço dentro do profundo Brasil que nos abriga e, bastasse isso, há gente preta e indígena morrendo enquanto eu escrevo essa porra aqui – já com lágrimas deslizando pelo meu rosto – a materialização da raiva que me consome.
Ou você achava que esse seria mais um textão abordando a COVID-19 sem lembrar os outros vírus que não deixaram de me matar? Ah, é óbvio que eu não pensei nisso… Como eu iria adivinhar que você só se deu conta do perigo há dois, três meses?
Enfim, é este o meu delírio. Por quê? Porque poderia ser eu, outro jovem negro.
Se Deus é quem guia, quem é que dirige?
É sobre isso, lamento.
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Conheça mais o trabalho do artista:
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O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente