Narrativas do cárcere

O papel da literatura para preservar a memória da vida na prisão: pesquisadora analisa a produção literária na prisão, que conta a história da Casa de Detenção do Carandiru, onde ocorreu o Massacre que matou 111 pessoas

Falo de um lugar bastante particular e pouco afeito à questão prisional, os estudos literários, que, por constituírem um campo bastante apegado ao cânone — e que depende disso para sustentar a sua permanência e importância como área de estudos–, são especialmente refratários a novidades, em especial uma que venha das masmorras sombrias do país. Daí a minha pesquisa ter se colocado desde seu início como interdisciplinar, o que, acredito, me aproxime desse grupo.

Meu trabalho de doutorado foi sobre literatura carcerária. Analisei livros publicados entre 2000 e 2001, período em que houve uma profusão de publicações sobre o cárcere escritas por quem a vivia naquele momento ou a tinha vivido. Os livros eram: Diário de um detento: o livro, de Jocenir;Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes; Vidas do Carandiru, de Humberto Rodrigues; e Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru), fruto de uma parceria entre o André do título e o jornalista Bruno Zeni.

Mesmo os livros que não mencionam o Carandiru no título tratam também daquele presídio, porque seus autores lá estiveram. De maneira que a tese, embora não seja sobre o Carandiru (é antes sobre literatura feita na prisão), é também sobre ele, se nele vislumbrarmos um símbolo (concreto, mas símbolo) do que sejam as condições de vida e formas de sociabilidade possíveis nas prisões do país, e em especial nas instituições paulistas.

Quando ocorre essa espécie de “boom” das narrativas carcerárias, dois fatos culturais importantes se destacavam e talvez tenham aberto espaço para esses livros. O hit dos Racionais — “Diário de um detento”, cuja letra foi escrita por Jocenir — e o best-seller Estação Carandiru, de Drauzio Varella. A música e o livro tratam do 2 de outubro de 1992. O Massacre do Carandiru parece ser, portanto, como disse Márcio Seligmann-Silva, “o núcleo e o ‘buraco negro’ em torno do qual a literatura do cárcere se orienta”.

II.

Quero aproveitar para propor uma reflexão sobre um pequeno trecho do livro de André du Rap.

André estava preso no Pavilhão 9 do Carandiru no dia do Massacre, que era também o dia do seu aniversário. Seu livro, embora trate também de outras coisas, se organiza fundamentalmente em torno do que houve naquele 2 de outubro. Não à toa tem como título Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru).

O breve comentário que passo a fazer deixa notar o modo como analisei essas narrativas e imagino que possa trazer contribuições para o resgate da memória do Massacre.

Queria destacar 4 aspectos que aparecem no trecho que vou ler. Eles se repetem ao longo do livro, se repetem nas narrativas do Massacre e se repetem, de algum modo, nas narrativas prisionais. São eles: a impossibilidade de nomear o evento traumático; a necessidade de falar pelos mortos; a denúncia do sistema penitenciário; a reivindicação de que se trata de um acontecimento singular.

“Ninguém nunca vai tirar isso da minha mente. Tem companheiros que ficaram traumatizados, não gostam nem de lembrar. Eu mesmo, até hoje eu tenho pesadelos com isso. Às vezes eu me vejo naquele dia, lembro de como começou, um amigo de cela me falando, alguém dizendo:

— Ô, André, hoje é seu aniversário, mano! Segunda-feira eu vou embora, vou mandar um presente pra você aí, de lá de fora. Esse amigo morreu na minha frente, tomou mais de 18 tiros de metralhadora na minha frente. Vi o cara caído e não podia fazer nada. […]

O que aconteceu no Carandiru foi uma crueldade. Nenhum ser humano merece aquilo. Estar num sistema qualificado como o pior do mundo e sair de lá morto… É um pedaço da minha vida e eu tenho que estar aberto para falar disso. Foi um fato que aconteceu e está escrito na história do país. Acho que Deus tinha um propósito na minha vida, um propósito em me tirar daquele lugar, como na vida de muitos companheiros que também sobreviveram” (pp. 25–27).

A impossibilidade de nomear o evento traumático aparece reiteradas vezes no emprego de “isso” e “aquilo” (assinalados acima), como a sinalizar a dificuldade de definir o horror.

Além disso, a presença de um “nós” que permeia a narrativa do “eu”: essa oscilação entre a 1ª pessoa do singular e do plural indica um traço bastante predominante na literatura carcerária e que se torna ainda mais agudo nas narrativas do massacre. O sofrimento é individual, mas é também coletivo. É preciso honrar os mortos, mas é igualmente imperioso falar em nome dos que sobreviveram.

A referência ao dia do aniversário e ao amigo que sairia dali a poucos dias e que prometia mandar um presente de aniversário a André torna tudo ainda mais dramático. André reproduz essa cena diversas vezes. A lembrança sugere a dificuldade diante da perda brutal; a data do Massacre como sendo a mesma do dia de seu nascimento e, portanto, de seu renascimento; a impossibilidade de salvar o companheiro; a covardia de seu assassinato. E a necessidade de rememorar o companheiro perdido.

Ao observar que o sistema penitenciário em que está é “qualificado como o pior do mundo” — refere-se ao paulista –, revela que a presença naquele espaço, sob aquelas condições, é já um castigo muito maior do que pode imaginar quem está fora dele. A tentativa desse “sistema” de aniquilar os presos é a duplicação do castigo (“e sair de lá morto”). A ideia é a de um sofrimento dobrado: ele e os outros presos já viviam como animais e nem a sobrevivência lhes foi garantida. André parece responder ao discurso que tende a condená-los porque presos, chamando a atenção para o fato de que eram, antes de tudo, seres humanos: “nenhum ser humano merece aquilo”.

Finalmente, quando André cria um paralelo entre a sua vida e a vida do país (“É um pedaço da minha vida”; “Foi um fato que aconteceu e está escrito na história do país”), mostra-se imbuído de uma missão (“eu tenho que estar aberto para falar disso”), traço comum entre sobreviventes de eventos traumáticos; aproveita para inscrever o fato como real— não se pode negar a existência do Massacre, e aqui sua escrita assume uma dimensão ética — e como pertencente à história do país. Nesse sentido, a um só tempo, recusa a versão de que aquilo não aconteceu e, sobretudo, nos torna cúmplices do que houve.

III.

No capítulo que dedico ao livro de André, uso esta epígrafe:

“Eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. O horror de um quadro onde a realidade tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de sangue e esvurmando pus, vencia todos os exageros da idealização mais ousada.”

Trata-se de um fragmento da parte final de Os sertões, “A luta”. Clássico da literatura brasileira, o livro de Euclides da Cunha, como se sabe, narra a campanha de Canudos. Euclides havia sido enviado como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo cobrir a ofensiva do exército republicano contra Antonio Conselheiro e seus seguidores, que se recusavam a aderir à República recém-instaurada. Num primeiro momento, Euclides apoiou a ação, mas, diante do extermínio a que assistiu, resolve escrever Os sertões. Omea culpa de Euclides permitiu ao país tomar conhecimento do massacre ocorrido em terras baianas.

Mais de cem anos depois da publicação do livro, a persistência de Carandirus e Pedrinhas mostra que a República continua a se voltar contra os seus.


*Maria Rita Palmeira é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Texto apresentado por ocasião do lançamento da plataforma Memória Carandiru, em março de 2015

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