Regina Duarte tem medo da Comissão da Verdade da Covid-19

Charge de Nando

 

ARTIGO

 

Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Mariana

 

O Brasil já tem, provavelmente, o segundo maior número de casos e mortes do mundo, considerando as subnotificações. É sempre bom lembrar que somos um dos países que menos realiza testes para a covid-19 do mundo. Exemplos: Cuba testou quatro vezes mais do que nós, o Peru sete vezes e Portugal 30 vezes. Nós estamos testando 0.6 para cada 1.000 habitantes. Os que mais testaram foram: Alemanha (25/1.000h), Itália (23/1.000h), Estados Unidos (12/1.000h) e Coréia do Sul (11/1.000h).

Boa parte dessas mortes estão diretamente ligadas às irresponsabilidades do Governo Federal, do presidente e sua equipe. Também o são os casos não notificados, mesmo depois dos corpos já enterrados, os “desaparecidos da Covid-19”. No entanto, estes desaparecidos não o são apenas por não estarem presentes nas estatísticas, mas por sofrerem, também, um apagamento ativo por meio dos discursos do presidente e de seus apoiadores.

Pesquisadores brasileiros estimam que o número de contaminados pelo novo coronavírus no Brasil é de 1,6 milhão, número 14 vezes maior que o registro oficial. Outros estimam que o número pode ser até 50 vezes maior que a notificação oficial. A isso soma-se o fato de que nas áreas periféricas das grandes cidades, como São Paulo, a mortalidade por Covid-19 tem sido dez vezes maior. Ou seja, os mais vulneráveis do Brasil são as maiores vítimas. São eles os pobres, pretos, pardos, mulheres e jovens.

É considerando esse contexto que devemos entender a entrevista concedida por Regina Duarte ao jornalista Daniel Adjuto da CNN Brasil, no dia 7 de maio. Ela criticou as pessoas que ficam “cobrando por coisas que aconteceram nos anos 60, 70, 80” e disse que é preciso olhar pra frente, cantarolando a música tema da copa de 1970. Quando o jornalista disse que na Ditadura havia desaparecido muita gente e havia censura, ela rebateu com um simplório “Cara, desculpa, eu vou falar uma coisa assim: na humanidade, não para de morrer. Se você falar ‘vida’, do lado tem ‘morte’. Por que as pessoas ficam ‘oh, oh, oh!’? Por quê?!” e “Por que olhar pra trás? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões”. Ela, que vinha sendo cobrada por não se manifestar pelas mortes de importantes artistas por Covid-19, interrompeu a entrevista bruscamente após a transmissão de um vídeo onde Maitê Proença critica a sua gestão à frente da Secretaria de Cultura.

A Secretária da Cultura de Bolsonaro se recusou a ouvir ou a responder qualquer coisa, dizendo que os jornalistas estavam “desenterrando mortos” e que deveriam ser mais “leves”, ao que a âncora do jornal, Daniela Lima, responde que eles não estão desenterrando mortos, e, sim, enterrando, visto que no momento o país já havia perdido milhares de brasileiros para o coronavírus, dentre eles pessoas da classe artística, da qual faz parte a própria secretária.

A fala de Regina Duarte, para a qual faltam adjetivos, e que deixou estarrecida boa parte dos brasileiros, deve ser contextualizada a partir de outros acontecimentos recentes. Um deles, protagonizado pelo ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), anulou a decisão do Tribunal Regional Federal a 5ª Região (TRF-5) que determinava a retirada de uma publicação, do dia 31 de março, em defesa do golpe de 1964, do site do Ministério da Defesa. Tofolli balizou a sua decisão utilizando-se do argumento de que há um excesso de judicialização em atos públicos, e de que esta decisão censurava a livre expressão do ministro de Estado.

Outro acontecimento foi o encontro no dia 4 de maio entre Bolsonaro e Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, acusado de assassinato, tortura e ocultação de cadáveres na Guerrilha do Araguaia. Vale lembrar que no dia anterior, no domingo, houve mais uma manifestação em apoio ao presidente, contra o STF, o Congresso, a imprensa e Moro. Nesse dia, o presidente afirmou que ele tem o apoio do povo, das Forças Armadas e de Deus, e por isso faria cumprir a Constituição “a qualquer preço”. Já no dia 6, em reunião com o ministro Dias Toffoli, do STF, Bolsonaro defendia a flexibilização do isolamento social, dizendo que a liberdade (no sentido de ir e vir) é mais importante do que a própria vida.

A negação, justificação e apologia da ditadura, contrariando toda a literatura especializada, e a negação da Covid-19, desafiando as recomendações mais básicas da autoridades de saúde, são dois exemplos de um mesmo fenômeno: a exploração ilegal da desinformação como arma política. Vamos lembrar que mesmo empresas como Google e Twitter, que eram muito reticentes em eliminar de suas plataformas as fake news, revisaram suas políticas e hoje não permitem postagens que contrariem recomendações da OMS como a necessidade de quarentena no combate à pandemia. Foi por essa nova orientação que o Twitter apagou postagens do próprio Bolsonaro.

A Lei da Anistia, de 1979, é o vício de origem no qual assenta a Nova República. Ela consagrou a impunidade de torturadores, agora celebrados pelo presidente e outras autoridades públicas. A Constituinte, o Congresso e o STF escolheram não revisá-la. E onde isso foi dar? Em Bolsonaro e seus asseclas. Enquanto não enfrentarmos esse passado, não será possível impedir sua re-atualização em suas variadas formas.

Por isso, é preciso urgentemente combatermos as mentiras que afirmam que não houve corrupção na Ditadura; que aquela época foi um tempo melhor e mais seguro do que hoje; de que os conflitos e crimes devem ser esquecidos. Sem isso, Regina Duarte continuará a representar o que uma parte significativa da sociedade brasileira acredita. Em especial, as novas gerações que se identificam politicamente com esse tipo de discurso. Afinal, no Brasil, uma parte considerável dos jovens apoiam discursos e ações da chamada nova direita.

Nem sempre é fácil traçar as fronteiras entre a direita que se acredita iluminista, vide as recentes declarações do ministro do STF Luís Roberto Barroso, e a direita que alguns chamam de chucra. A ilustração brasileira foi construída pela escravidão, e muitos paladinos da democracia foram direta ou indiretamente sócios e beneficiários da Ditadura. A própria Regina Duarte é filha de militar e até hoje recebe pensão pelo pai falecido em 1981. Não sabemos ao certo até onde essa memória incômoda não está embaraçada com sua biografia. A Regina secretária de Bolsonaro é a mesma que apoiou José Serra na eleição de 2002 contra Lula, o mesmo medo, a mesma direita em formas distintas.     

A fala de Regina Duarte se assemelha com o discurso bolsonarista de que “quem procura osso é cachorro”. Assim como a secretária fecha os olhos para os mortos por Covid-19 e diz que quer ir “pra frente”, Bolsonaro, várias vezes, também defendeu que o passado ficasse a cargo dos historiadores – talvez ele estivesse se referindo aos olavistas, que estão produzindo uma falsa história nacional que já orienta a produção de material didático. A insistência em “seguir em frente”, sem olhar para trás, nos faz temer o futuro que Regina Duarte e Bolsonaro esperam construir. Será, certamente, um governo assentado sob cadáveres, a exemplo, aliás, do que fizeram os generais da Ditadura Militar. 

Maria Herminda Tavares, no mesmo dia da famigerada entrevista, lembrou uma frase que “quase” foi dita por Regina Duarte: “Viva a morte! Abaixo a inteligência”. Essa frase foi proferida pelo general fascista espanhol Millán-Astray em 1930. Apesar de ser difícil aceitar, não podemos negligenciar o fato de que, em várias dimensões, o governo bolsonaro é uma atualização do fascismo, e ainda mais eficaz, porque livre de qualquer coerência ideológica e detentores de ferramentas de propaganda com as quais os fascistas nem sonhavam. E isso é mais do que uma mera assombração que retorna. Não podemos negar a realidade, do contrário, quando acordarmos pode ser tarde.

A negação, e em especial o revisionismo, é um tipo radical e perigoso de fundamentalismo. Diverso, portanto, do relativismo cultural, que é inclusivo e reconhece o valor da diversidade e o diálogo livre e aberto como condição de produção de conhecimento. Já o negacionismo e revisionismo autoritário coloca em questão o poder de veto das fontes, utiliza-se de maneira aberta e sistemática da mentira e da desinformação, está baseado em lógicas de justificação e dissimulação que pretendem extrapolar, estender, manipular, minimizar e, no limite, negar o próprio poder de veto das fontes e a existência e valor das posições contraditórias, da existência mesma das minorias.

Em outros termos, nega e/ou revê a dimensão política e a intenção ética que valoriza e estimula o dissenso, a pluralidade e o diálogo que fundamenta a experiência democrática. A interação entre a ética e a política pressupõe a exigência de um reconhecimento mútuo. A ética do político, nessa perspectiva, visa criar espaços de liberdade, o que implica olhar para trás, para o agora e para frente ao mesmo tempo. Essa intenção ética, na esfera do político, não depende apenas das vontades individuais, mas também do Estado de direito que tem sido omisso em várias esferas. Além da refutação e da desconstrução factual, é preciso criar espaço de diálogo, de liberdade e de pluralidade para estabelecermos os limites legais e éticos, das narrações, interpretações e representações.

Os historiadores e historiadoras profissionais devem desempenhar um papel central nesse processo, seja por sua perícia de especialistas, seja como educadores; mas é a sociedade civil que precisa construir espaços institucionais autorizados para mediar e reprimir os abusos do poder ao mobilizar as novas ferramentas de comunicação para distorcer a história. É certo que a regulamentação da profissão de historiador vetada por Bolsonaro teria sido uma oportunidade para avançarmos nesta fronteira, com a criação, por exemplo, de conselhos de auto regulamentação. 

Assim, o que fazer frente ao desprezo pela vida?

Uma boa sugestão para impedirmos que a impunidade do presente perdure no tempo foi dada por Gregório Duvivier ao afirmar que os crimes cometidos pelo governo Bolsonaro devem ser julgados por uma Comissão da Verdade em tempo real. O medo dos mortos que tanto assombra Regina Duarte é o medo da verdade e da justiça. Qualquer sociedade que queira sobreviver precisa ter a coragem de cuidar também de seus mortos, de sua memória, de sua história e da verdade coletiva. Quantas mortes pela Covid-19 poderiam ter sido evitadas? A ciência tem respostas para essa pergunta. Conseguiremos punir as autoridades por esses crimes, ou o modelo da anistia e da impunidade vai prevalecer mais uma vez?

Enquanto isso, esperamos no mínimo que o Parlamento, presidido por Rodrigo Maia, essa pessoa que nasceu no exílio político da Ditadura, aprove uma lei punindo toda e qualquer apologia à violência, em especial, a de Estado. Mas parece que cabe a nós, da sociedade civil, o impulso e a pressão para que isso se realize.  

Outra ação urgente é cobrar a retirada dos militares da ativa e da reserva de postos políticos reservados aos civis. Sobre esse último ponto cabe dizer que, infelizmente, as Forças Armadas (sob o disfarce do combate ao comunismo – mais uma vez estão manchando a reputação da instituição ao darem o suporte a esse governo genocida, respaldando enquanto instituição as ambições de poder pessoal de alguns generais. Depois pouco vai adiantar a revolta contra a verdade histórica, mais uma vez terão seus nomes arrastados na infâmia da memória.  A lembrança das mortes que poderiam ter sido evitadas acompanharão as famílias e as gerações que estão vivendo essa tragédia nacional, mais de 10 mil mortes oficiais. Todos os dias pessoas estão sendo enterradas em covas coletivas em Manaus! A insensibilidade e os crimes de muitos, em especial, do presidente, não podem ser justificados sob nenhuma hipótese, nem muito menos esquecidos. Além de sermos impedidos de velar nossos mortos, querem também que os esqueçamos, e tudo isso em nome de um projeto sórdido de poder.

Enquanto não enfrentarmos o nosso passado-presente de violência, isto é, a Ditadura Militar, a escravidão, o racismo, o etnocídio, o patriarcalismo, dentre outros, o passado continuará a se atualizar negativamente, impedindo a construção de uma país efetivamente menos desigual e mais justo. Cabe ainda destacar que, agora, além do estudo coordenado pela professora Fernanda Cimini da UFMG, também o editorial da prestigiosa revista The Lancet  aponta para o fato de que Bolsonaro é a maior ameaça ao combate à Covid-19.

Portanto, a fala de Regina Duarte enquanto Secretária de Cultura do governo federal deve ser entendida como uma atualização do discurso autoritário e criminoso da Ditadura Militar, no sentido de que ela tenta proteger a entrada de qualquer “vírus” no interior desse sistema. Essa atualização só é possível pela desinformação atualista que silencia o conhecimento e a experiência sobre o passado e coloca em seu lugar uma espécie de réplica fantasmática. Regina não quer ouvir os mortos, apenas o jingle de propaganda “Pra frente Brasil, Brasil…”.

Em outras palavras, ela pretende se antecipar a qualquer tipo de julgamento, não da história, mas das cortes penais que finalmente venham a combater crimes contra a humanidade, de ontem e de hoje, ou seja, a busca pela verdade e justiça dos mortos e desaparecidos da Ditadura Militar e do Governo Bolsonaro. Para muitos não foi novidade saber que Regina Duarte tem medo, tem medo da esperança e do futuro, tem medo de seu passado de culpa. Nesse sentido, devemos aplaudir o manifesto em repúdio às declarações da secretária de Cultura assinada por mais de 500 artistas. A sociedade civil brasileira não está morta! E não podemos esquecer, por fim, que tudo poderia estar muito pior. Só não está porque existe um patrimônio do povo brasileiro chamado Sistema Único de Saúde.

 

Esta coluna foi escrita com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em História pela UFOP.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. A seu próprio modelo, Bozo escolhe equipe de governo sempre pela sua incapacidade mental e mau caratismo..

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