Para onde vai a democracia?

Amargar um golpe à direita, consolidado por eleições municipais. Eis o que temos para esse fim de ano. Uma alternativa a padecer, talvez seja voltar o olhar para outros arranjos de poder em outros países e em outras regiões. Se não muda o estado das coisas ao nosso redor, ao menos conforta-nos saber tragados por uma onda planetária, perceber que somos resultado da tensão que o modelo capitalista neoliberal impõe aos semiperiféricos, espremidos entre o centro e a periferia. Anima-nos, sobretudo, perceber que há quem se sinta exatamente como nós nos sentimos, que há quem nos sugira modos de avaliar os caminhos de ação. Esse é o alento que nos sopra Boaventura Sousa Santos, em A Difícil Democracia.

O neoliberalismo é uma máquina imensa de produção de expectativas negativas para que as classes populares não saibam as verdadeiras razões de seu sofrimento, se conformem com o pouco que ainda têm e sejam paralisadas pelo pavor de perdê-lo.” (p.199)

O que vem à mente quando aprendemos que o modelo neoliberal da União Europeia não foi escolhido pelo voto popular? Há paralelos entre a adoção de regras antidemocráticas fundadas na lógica do capital financeiro internacional nos tratados da Europa e no Brasil do golpe?

As instituições europeias são hoje o principal agente de imposição da lógica neoliberal em contradição explícita com a tradição social-democrática que presidia o projeto europeu. Isso não quer dizer que a social-democracia tenha desaparecido totalmente. Significa apenas que, em poucos anos, deixou de ser um desígnio europeu e um fator de coesão europeia para passar a ser um privilégio dos poucos países que “merecem” ser social-democratas. Assim, a Alemanha, que é hoje o país dirigente da União Europeia, defende internamente as mesmas políticas social-democráticas que “proíbe” nos países do sul da Europa, seu protetorado informal. Não há projeto europeu; há tão somente uma inércia que é tanto mais ruinosa quanto menos se reconhece como ruína. (p. 10)

Na América Latina, após breve interregno progressista, voltamos à dominação “pelo monopólio de uma concepção de democracia de tão baixa intensidade que facilmente se confunde com a antidemocracia. Com cada vez mais infeliz convicção, vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas…” (p. 13 e 14)

Sousa Santos nos instiga com termos aos quais não estamos habituados como fascismo social, demodiversidade, neoapartheid, democracia neoliberal, colonialismo interno, democracia participativa, sociologia das emergências, pluriverso. Termos que nos auxiliam a compreender o mundo em que vivemos.

Vejamos o que Sousa Santos nos ensina sobre o mercado de valores e o mercado político, na democracia liberal e na democracia neoliberal.

Para a democracia liberal, há dois mercados de valores: o mercado político da pluralidade de ideias e convicções políticas em que os valores não têm preço, precisamente porque são convicções ideológicas de que se alimenta a vida democrática; e o mercado econômico, que é o mercado dos valores que têm preço, o qual é precisamente determinado pelo mercado de bens e serviços. Esses dois mercados devem manter-se totalmente separados para que a democracia liberal funcione de acordo com seus princípios. Ao contrário, a democracia neoliberal dá total primazia ao mercado dos valores econômicos e, por isso, o mercado dos valores políticos tem de funcionar como se fosse um mercado de ativos econômicos. Ou seja, mesmo no domínio das ideologias e das convicções políticas, tudo se compra e tudo se vende. Daí a corrupção endêmica do sistema político, corrupção não só funcional, como necessária. A democracia, enquanto gramática social e acordo de convivência cidadã, desaparece para dar lugar à democracia instrumental, a democracia tolerada enquanto serve aos interesses de quem tem poder econômico e social para tanto. (P. 21 e 22)

Nosso grau de esperança por tempos menos desiguais, por tempos em que nossa existência faça mais sentido, encontra-se, possivelmente, em seus menores valores históricos. Desapareceram “os vários imaginários de emancipação social que as classes populares geraram com suas lutas contra a dominação capitalista, colonialista e patriarcal. O imaginário da revolução socialista foi dando lugar ao imaginário da social-democracia, e este, ao imaginário da democracia sem adjetivos e apenas com complementos de direitos humanos”. (p. 22)

Dizemos e repetimos, aos quatro ventos, que a melhor forma de governo é a democracia. Vivemos, porém, em uma democracia sem adjetivos e é imperioso qualificá-la: a democracia liberal representativa não é única.

Democratizar significa despensar a naturalização da democracia liberal representativa e legitimar outras formas de deliberação democrática (demodiversidade); procurar novas articulações entre democracia representativa, democracia participativa e democracia comunitária; e, sobretudo, ampliar os campos de deliberação democrática para além do restrito campo político liberal que transforma, como indiquei, a democracia política numa ilha democrática em arquipélago de despotismos: a fábrica, a família, a rua, a religião, a comunidade, os mass media, os saberes etc. (p. 145)

O que une capitalismo, colonialismo e patriarcado? Essas três formas de dominação estão perfeitamente articuladas, concatenadas, para a manutenção do poder nas relações sociais, econômicas, culturais e internacionais. Uma das palavras-chave propostas, portanto, é descolonizar.

Descolonizar significa erradicar das relações sociais a autorização para dominar os outros sob o pretexto de que são inferiores: porque são mulheres, porque têm uma cor de pele diferente ou porque pertencem a uma religião distinta. (p.180 e 181)

Para completar, com a terceira palavra palavra-chave da audácia a ser empreendida para agendas transformadoras, Sousa Santos nos indica desmercantilizar: estancar a crença de que o capitalismo é obra da natureza, a crença de que tudo tem valor em moeda, de que tudo se compra e tudo se vende por dinheiro.

Desmercantilizar é o despensamento da naturalização do capitalismo. Consiste em subtrair vastos campos da atividade econômica à valorização do capital (a lei do valor): economia social, comunitária e popular, cooperativas, controle público dos recursos estratégicos e dos serviços de que depende diretamente o bem-estar dos cidadãos e das comunidades. Significa, sobretudo, impedir que a economia de mercado alargue seu âmbito até transformar a sociedade numa sociedade de mercado (na qual tudo se compra e tudo se vende, incluindo valores éticos e opções políticas), como está a acontecer nas democracias do Estado de mercado.

Ao contrário do que pretende o neoliberalismo, o mundo só é o que é porque nós queremos. Pode ser de outra maneira, se a isso nos propusermos.” (p. 186)

Se, às vezes, deixamos de compreender certas agressões aparentemente insensatas, precisamos da ajuda de Sousa Santos para vislumbrá-las na adequada perspectiva:

A burguesia teve sempre pavor de que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as revoluções do século XIX lhe concederam para impedir que isso ocorresse. Concebeu a democracia liberal de modo a garantir isso mesmo por meio de medidas que mudaram no tempo, mas mantiveram o objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade individual, sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão violenta de atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização dos lóbis. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta à possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes. (p. 191)

Enfrentemos serenamente a questão: temos de começar tudo de novo?

Sinais relevantes, quando tentamos prever o futuro das esquerdas, são os pactos recém-firmados na Europa e a possibilidade de que também ocorram na América Latina.

A família das esquerdas não tem uma forte tradição de pactos. Alguns ramos dessa família têm mais tradição de pactos com a direita do que com outros ramos da família. Dir-se-ia que as divergências internas na família das esquerdas são parte de seu código genético, tão constantes têm sido ao longo dos últimos duzentos anos…À luz dessa história, merece uma reflexão o fato de em tempos recentes termos assistido a um movimento pactista entre diferentes ramos das esquerdas em países democráticos. (p. 198)

O pacto resulta de uma leitura política de que o que está em causa é a sobrevivência de uma democracia digna do nome e de que as divergências sobre o que isso significa têm agora menos premência do que salvar o que a direita ainda não conseguiu destruir. (p. 199)

A política de esquerda tem de ser conjuntamente anticapitalista, anticolonialista e antisexista, sob pena de não merecer nenhum desses atributos.” (p. 207)

No epílogo de seu livro, Boaventura Sousa Santos “transporta-se” para o ano 2050 e conta-nos como enxergou o tempo em que hoje vivemos.

O capitalismo, que se assentava nas trocas desiguais entre seres humanos supostamente iguais, disfarçava-se tão bem de realidade que o próprio nome caiu em desuso. Os direitos dos trabalhadores eram considerados pouco mais que pretextos para não trabalhar. O colonialismo, que se baseava na discriminação contra seres humanos que apenas eram iguais de modo diferente, tinha de ser aceito como algo tão natural como a preferência estética. As supostas vítimas de racismo e de xenofobia eram sempre provocadoras antes de ser vítimas. Por sua vez, o patriarcado, que assentava na dominação das mulheres e na estigmatização das orientações não heterossexuais, tinha de ser aceito como algo tão natural como uma preferência moral sufragada por quase todos. Às mulheres, aos homossexuais e aos transsexuais haveria que impor limites se elas e eles não soubessem manter-se em seus limites. Nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e seletivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade. O primado do direito vivia em ameno convívio com o primado da ilegalidade. Era normal desconstituir as constituições em nome delas. (p. 210)

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Santos, Boaventura de Sousa. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo, Boitempo, 2016. 220 p.

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