NEOLIBERALISMO OU DEMOCRACIA

ARTIGO

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

 

A eleição presidencial na Argentina é fato político de primeira importância para a América Latina. Nas prévias realizadas em 11 de agosto, Alberto Fernandez, candidato peronista ligado à família Kirchner, derrotou com folga o neoliberal Maurício Macri, que é o atual presidente. Ao que tudo indica, Macri será derrotado novamente no primeiro turno das eleições, que acontecerá em 27 de outubro.

Novamente, o neoliberalismo está sendo derrotado nas urnas. Não será a primeira vez e provavelmente não será a última. O neoliberalismo é semente que não dá fruto no terreno da democracia.

No Chile, o neoliberalismo só se tornou vitorioso porque foi imposto por uma ditadura. No Brasil, o neoliberalismo, travestido de socialdemocracia, chegou ao poder pela via democrática em meados da década de 1990. Quando o povão entendeu o que significa na realidade a retórica do “Estado Mínimo”, rejeitou o neoliberalismo nas eleições de 2002. O neoliberalismo somente conseguiu voltar ao poder em 2016, e através de um golpe. Temer governou durante dois anos e mostrou à nação um neoliberalismo puro sangue. Deixou o governo como o presidente mais mal avaliado da história.

Reforma Trabalhista, PEC dos gastos. Somente um presidente que não foi eleito poderia chegar tão longe.

Bolsonaro venceu as eleições de 2018 e o neoliberalismo venceu junto, é verdade. Mas não foram eleições normais. A corrida presidencial foi fraudada pela interferência do Judiciário e pela máquina de fake news, que deixou Paulo Guedes e seu programa econômico nas sombras.

Nos EUA, que certamente é o país mais liberal do mundo, esse neoliberalismo extremo sagrou-se vitorioso no começo da década de 1980, no governo de Ronald Reagan. A vitória de Reagan se deu em clima eleitoral atípico. Reagan venceu Jimmy Carter em disputa confusa, onde o debate programático foi ofuscado pela pauta dos costumes. A candidatura de Reagan foi impulsionada por uma coalizão de direita formada por católicos, protestantes fundamentalistas e intelectuais conservadores. Todos eles acusavam a social-democracia, vigente no país desde os anos do new deal, de “excitar os desejos egoístas da sociedade e onerar demasiadamente o Estado”, segundo as palavras do intelectual conservador William Buckley, um dos principais ideólogos da campanha de Reagan.

E não podemos esquecer do “nacional-socialismo” alemão dos anos 1930, que de socialismo não tinha nada. O programa econômico do III Reich foi caracterizado pela parceria com os grandes empresários, pela defesa do capital privado, pelas privatizações e, é claro, pela repressão aos sindicatos e a qualquer movimento reivindicatório. Aqui, pela primeira vez, o cão do neoliberalismo acasalou com a cadela do fascismo. Paixão à primeira vista!

O que estou querendo dizer é que em um ambiente democrático saudável, onde programas de governo se confrontam livremente, sem cortinas de fumaça, o neoliberalismo encontra dificuldades para se sustentar como agenda politica viável, e isso é especialmente verdadeiro na América Latina. Por isso, o neoliberalismo costuma se associar a projetos políticos autoritários. É que só dá pra empurrar Estado mínimo no povão se for na marra, na força.

Desde o final do século XVIII, o liberalismo é uma das mais importantes linhagens do pensamento político ocidental. O liberalismo está fundado numa premissa fundamental: a liberdade individual deve ser protegida da tirania do Estado. O indivíduo, portanto, é a célula social mais fundamental, aquele que deve ter seu corpo e propriedade protegidos de qualquer interferência externa.

Pode parecer contraditório o fato de o ideário político fundado na promessa da liberdade individual ser capaz de se combinar com tanta desenvoltura com ditaduras e fascismos. Parece, mas não é. Não é porque o neoliberalismo se desassociou da política e da economia. A liberdade defendida é a liberdade econômica, é a liberdade de exploração. Uns precisam ser lives pra explorar. Outros precisam estar desprotegidos para serem explorados.

Nos últimos 300 anos, o pensamento liberal se transformou bastante, mas sempre manteve viva a ideia de que o Estado não deve intervir na economia, que deveria se regular por si próprio, tendo como controle a “mão invisível do mercado”. Não há falácia maior que essa. Não existe Estado mínimo em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado pelo controle das riquezas sociais que são administradas pelo Estado.

O objetivo do neoliberalismo é impor o Estado mínimo para a maioria e garantir Estado máximo para uma minoria. Como Estado mínimo só é bom se for nos olhos dos outros, a maioria, quando consultada, quando pode se manifestar, diz “não, não, Estado mínimo aqui não”. Para sua sobrevivência, o neoliberalismo precisa silenciar a maioria, fechar os canais de representação e participação política.

Após quatro anos de tsunami neoliberal, os argentinos lembraram o que é viver no neoliberalismo. Os brasileiros também estão lembrando, o que se traduz na queda da popularidade de Bolsonaro.

Guedes pediu dois anos para a economia começar a dar sinais de melhora. O desespero bateu. O governo não tem dois anos. Talvez não tenha sequer mais seis meses.

A Reforma Trabalhista já está sendo sentida, com profissionais contratados em regime intermitente, com a precarização das relações de trabalho. Em breve, a Reforma da Previdência fará suas primeiras vítimas. A PEC dos gastos está paralisando serviços públicos. Foi aprovada no Congresso Nacional a PEC da Liberdade Econômica, que mais uma vez promete gerar empregos através da “desregulamentação” das relações de trabalho.

A narrativa sempre a mesma: o neoliberalismo promete prosperidade material em troca de direitos sociais garantidos pelo Estado. Os direitos são cassados, mas a prosperidade não chega. Em algum momento, as pessoas perdem a paciência.

O tempo passa e a crise econômica se avoluma. Tá cada vez mais difícil continuar culpando o PT. O governo está nas cordas, Bolsonaro é fraco como presidente, apesar de ser forte como agitador fascista. Se não conseguir aplicar o autogolpe que vem prometendo desde o final de 2018, Bolsonaro será engolido pelo que ainda resta de democracia no Brasil.

O povão pode estar confuso e desinformado, mas não é burro. Não há histeria que dure para sempre. Em breve, sobrará ao governo apenas a base social fascista, disposta a ir com Bolsonaro até o fim. Não é o bastante para governar na democracia.

O neoliberalismo já tem plano A e plano B: se o autogolpe funcionar, não haverá nenhum constrangimento em continuar acasalando com a barbárie. Nada melhor para impor o Estado mínimo ao povo do que um Estado máximo, armado, violento e disposto a prender e matar.

Se Bolsonaro cair, o neoliberalismo vai tentar se afastar do defunto e apresentar uma solução mais limpinha e civilizada. Candidatos não faltam: João Dória, Luciano Huck, Tábata Amaral, Marina Silva. Pode ser que a mudança dê alguma sobrevida ao projeto neoliberal. Não durará muito.

Ou tem neoliberalismo ou tem democracia. As duas coisas juntas dá pra ter não.

 

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

6 respostas

  1. Muito lúcido, e qualquer coisa mais civilizada do absurdo que está aí, serviria. Serviria pois estaria disposto a dialogar com toda a sociedade.

  2. Amigo boa noite pra mim no Brasil a coisa tá difícil,pois a esquerda passou mais de uma década no poder,o que aconteceu corrupção por todo lado,o governo foi tão corrupto que os políticos que se perpetuarem no poder do País,não importa o partido,estão com saudades,as leis flochas que facilitam desde um vereador,a prefeitos e governadores a roubarem,sem falar dos figurões que estão em brasilia,.tudo isso com aprovação do supremo do País,não adianta,o cidadão de bem,depositar sua esperança em um regime ou partidos,cujo seus líderes são os mesmos com o mesmo projeto corrupção para eles e seus aliados,para o povo resta o engano,desculpe mais não sou do Bozzo,nem de Lula,sou apenas uma pessoa cujos olhos se abriram!

Deixe um comentário

POSTS RELACIONADOS

110 anos de Carolina Maria de Jesus

O Café com Muriçoca de hoje celebra os 110 anos de nascimento da grande escritora Carolina Maria de Jesus e faz a seguinte pergunta: o que vocês diriam a ela?