O FRANKENSTEIN DE BOLSONARO

Charge de Tiago Recchia

 

ARTIGO

Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense

    

 

            No início século XIX, Mary Shelley escreveu seu mais famoso romance. Enclausurado, o estudioso Victor Frankenstein descobriu como gerar vida e passou a se dedicar à criação de um ser humano gigantesco. Concluiu sua obra após dois anos de trabalho. Estava exausto e febril. Também desenvolveu asco pelo ser que fabricou e decidiu fugir. Não demorou para que a criatura se insurgisse contra o criador: em meio à sua fúria, estrangulou Elizabeth, noiva de Victor. Ainda que Shelley não o tenha feito em seu romance, a tradição posterior dedicou o sobrenome de Victor à abominação que produziu, quase que como uma herança maldita de pai para filho, e fê-lo conhecido como Frankenstein.

            Dentre outras coisas, Frankenstein é uma excelente metáfora para discutir a relação entre o criador e a criatura, sobretudo do ponto de vista da responsabilidade moral. Que as ações tem um custo, ninguém duvida: se alguém sai na chuva, acaba se molhando; se alguém bebe em demasia, acaba embriagado; se alguém leva uma facada, corre risco de vida ou, quem sabe, é eleito presidente. A relação entre ação e reação está há muito reconhecida não apenas na Física, mas também na política e na economia. Quem produz um monstro deve ser responsável pela monstruosidade. É isso que falta a Jair Bolsonaro.

            Jair Bolsonaro perdeu o direito de ser irresponsável. Por muito tempo pintaram-no como boçal, quase como criança que é imune à estupidez por força da inexperiência. Ele caminhava graciosamente no ombro da abominação que produziu, mas diferentemente de Victor, que criou a vida, o presidente e seus ministros se comprometeram com a morte. Tentaram, a todo custo, matar o trabalho enquanto acalentavam o sonho dourado de uma economia forte para os rentistas e frágil para os trabalhadores. Desemprego deixou de ser um problema para figurar como necessidade. Aprofundou a reforma trabalhista de Michel Temer e implementou, ainda que não do jeitinho que queria, uma Reforma da Previdência que fará com que muitos brasileiros e brasileiras morram antes de se aposentar. O Frankenstein de Bolsonaro é a informalidade, o trabalho precário, a escassez de direitos que o receituário neoliberal estimulou. E agora, como no romance de Mary Shelley, a criatura se volta contra o criador.

            A ausência de responsabilidade moral de Bolsonaro é bem representada pelas falsas ciladas que produz em sua retórica politiqueira. Quando quis impor seus ataques aos trabalhadores, fez questão de dizer que seria necessário escolher entre ter direitos trabalhistas e ter emprego. O povo, assustado, acreditou. As demandas da vida material gritam e o desemprego, que para o governo é uma necessidade estrutural, soa como verdadeiro terror para quem precisa trabalhar. Mas, apesar disso, convencidos de que não seria possível aliar as duas coisas, acreditaram nessa mentira oportunista que soa como música no ouvido dos empresários. A informalidade no Brasil é o dobro dos países desenvolvidos. Hoje, 41,1% da população ocupada não tem carteira assinada, o que as fragiliza diante de crises e diminui a arrecadação do governo: bom para os empresários, que vêem seus lucros aumentar, péssimo para os trabalhadores, que precisam lutar todos os dias para conseguir seu sustento.

            Com a crise gerada pelo COVID-19, a rotina de trabalho tão desprezada pelo governo se tornou preocupação de primeira ordem. Mais uma vez, Bolsonaro repete as falsas equivalências e joga sujo com as necessidades materiais. O presidente, de maneira grotesca e irresponsável, coloca os trabalhadores já precarizados em uma sinuca de bico: se saem para trabalhar, contraem coronavírus e aumentam a epidemia; se permanecem em casa, morrem de fome. O presidente sabe que o monstro que ele criou faz exatamente isso e, no lugar de contê-lo, abre a porteira para que ele saia estrangulando as pessoas. O Frankenstein do neoliberalismo de Paulo Guedes está alucinado com o risco de morrer de inanição, e o presidente se esforça para mantê-lo vivo com base no sacrifício do povo que o elegeu. Seu alimento é a carne dos trabalhadores.

            A crueldade do presidente é tão grande que ele se mantém surdo para as melhores práticas internacionais, inclusive aquelas adotadas por quem bajula como cão sem dono. As medidas que restringem a circulação de pessoas já foram identificadas como as melhores práticas para contenção da epidemia. Para não desassistir os trabalhadores e trabalhadoras, diversos países estão aprovando transferências emergenciais de renda. Os EUA de Donald Trump, sujeito que Bolsonaro cultua quase como a um deus, aprovou aporte de 2 trilhões de dólares para diminuir a recessão. Parte desse dinheiro será destinado aos trabalhadores, que devem receber cerca de U$ 1.200,00 para permanecerem em suas casas. O Reino Unido, afável às medidas de austeridade, decidiu garantir o pagamento de 80% dos salários até o limite de 2.500 libras por mês. A Dinamarca vai garantir 75% do salário desde que as empresas se comprometam a não demitir. Suécia, Canadá e outros países fizeram o mesmo. Apenas Bolsonaro decidiu não rasgar os panfletos neoliberais para não melindrar seu monstro.

            Não bastasse a inação, o governo tem trabalhado vigorosamente para ampliar a recessão que se avizinha. Ainda que tenha recuado, publicou Medida Provisória que assegurava aos empregadores o direito de cortar o salário por quatro meses desde que mantivessem os empregos. Bolsas de estudo foram suspensas. O Bolsa-Família está terrivelmente paralisado. Busca-se reduzir os salários dos servidores públicos. Nos últimos dias tem insistido, apesar de vozes divergentes dentro do próprio governo, na retomada das atividades produtivas como se não houvesse pelas ruas um vírus que já matou milhares de pessoas ao redor do mundo e que poderá matar, mesmo nas previsões pessimistas, alguns milhões.

Obrigar os brasileiros a optar entre morrer de fome ou por insuficiência respiratória não é apenas uma retórica covarde, típica dos genocidas, mas uma forma de se eximir das responsabilidades que o cargo para o qual foi eleito exigem.

            Talvez a criatura já tenha dominado o criador, mas é bom que se note que não basta expurgá-lo do poder para defender a vida do povo brasileiro: é urgente ceifar também a abominação que já nos oprimia na vida cotidiana e que se tornou ainda mais abominável em temos de pandemia. O Frankenstein é o neoliberalismo e ele deve ser exterminado junto com o governo Bolsonaro, do contrário, teremos outro imbecil alimentando a mesma besta que amola a faca que corta nossa carne.  

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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