Quarentena Paulistana.
Querida Mãe, Querido Pai
Escrevo para vocês do meu quartinho, aqui em São Paulo. Muitas noites, eu sonho em voltar para casa. Todas as manhãs, acordo para saber se todos estão bem. Sei que são momentos difíceis aí na Itália, ainda mais depois da notícia da morte do avô Antonio. Senti um golpe em meu coração.
Vocês sabem que eu nunca tive um relacionamento fácil com ele: era impossível não odiá-lo, ao mesmo tempo em que era impossível não admirá-lo. Chorei remoendo as lembranças e depois pensei em você, pai, com grande preocupação.
Por medo de uma contaminação, eu e meus irmãos conseguimos te convencer a não ir se despedir do vovô em seu leito de morte. Depois tivemos que forçá-lo a não participar do rápido funeral. Não foi fácil tentar, aqui de longe, cuidar de você nos dias seguintes. É torturante não poder vivenciar de perto o luto por alguém que amamos.
Milão, a cidade em que nasci e cresci, é um dos lugares onde centenas de pessoas continuam morrendo todos os dias. Mas, aqui no Brasil não tem sido diferente. O número de infecções e mortes aumentam diariamente.
Estou saindo de casa o mínimo possível e evito qualquer tipo de contato social. Comprei uma máscara boa, álcool em gel e luvas, mas ainda não saí para fotografar. Faço isso em respeito a vocês, minha família, pois se meu pai não pôde sair para ir ao enterro do seu próprio pai, por qual motivo eu deveria sair sem propósito?
Neste momento, acredito ser mais importante dar um passo para trás e deixar de lado meus hábitos e egoísmo. Estou fechado em casa, mas não me faltam estímulos do que vejo na televisão com as notícias do dia e da grande janela na sala de estar com vista para os edifícios, cheios de pessoas vivendo em quarentena.
Nestes dias de isolamento, mergulhei no meu arquivo e ainda tentei juntar algumas imagens, tiradas em outros momentos, que representam bem o meu estado de espírito e o que está acontecendo lá fora.
Imagino uma São Paulo desolada e se protegendo como pode. Eu sei que o sistema não quer parar e força as pessoas a trabalharem. Muitos não podem ficar em suas casa, outros nem casa tem para ficar.
Inevitavelmente, meus pensamentos, dia e noite, retornam a Milão, minha cidade, atormentada por essa pandemia. Penso no vô que se foi e quanto dele ainda vive em nós. Penso na vó Filomena e o tempo que ainda nos resta com ela. Espero o dia em que poderemos nos abraçar na rua como um ato libertador. Não vejo a hora de nos encontrarmos novamente.
Luca
São Paulo-SP / Março 2020
.
Luca Meola é fotógrafo e documentarista, nascido em Milão, na Itália. Formado em Sociologia, tem desenvolvido principalmente projetos de fotografia documental pessoais e comissionados na Europa e na África. Desde o final de 2014 , vive entre a Itália e o Brasil.
.
Conheça mais o trabalho do artista:
Site: www.lucameola.com
https://www.instagram.com/lucameola1977/
.
O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente