Medo de morrer. Quem tem medo de morrer? Quem não tem medo de morrer? Tive que viver 39 anos pra compreender, ou talvez apenas vislumbrar, o que é o medo de morrer. Acho que a herança dessa pandemia é que toda a humanidade, bom, ao menos, a parcela minimamente sensata da humanidade, teve – tem – de remoer essa incômoda questão: medo de morrer.
Achava que sabia o que era medo de morrer. Achava que minhas experiências de vida haviam me preparado para encarar a senhora da foice com alguma, ainda que não muita, serenidade. Mas o fato é que sempre que estive em alguma situação em que a morte poderia ser uma possibilidade com algo de concreto, houve sempre um componente anestésico: a adrenalina.
Agora tudo foi diferente. Não se tratava de uma arma apontada, um carro derrapando, uma ameaça ao ouvido. Agora não havia a adrenalina. Agora não havia o alívio posterior ao susto momentâneo. O que havia era a madrugada longa e arrastada. A madrugada e a falta de ar. A madrugada e a preocupação com a mãe. Com o pai. Com a companheira. Irmãos e irmãs (de sangue ou afeto). A preocupação geral com todas as inevitáveis vítimas evitáveis da pandemia. E eu, entrarei nessa estatística? E você? A preocupação e o sono que não vem.
Descobri que tenho medo de morrer. Que não sou tão valente como pensava. Descobri que não estou pronto. A mesa não está posta, a casa não está limpa, o campo não está lavrado e as coisas não estão em seu lugar. Descobri que a indesejada das gentes me apavora. Descobri como é bom respirar.
E como estamos agora? Agora estamos todos aqui nesse limbo. Tentando enxergar o horizonte através de uma densa neblina de incertezas. Peguei covid? Não peguei? O que eu tive? O que eu tenho? E o dinheiro? E o Brasil? E o fascismo? E o Mundo? Estamos todos como um boxeador sentado no banquinho do córner, esperando o gongo pra voltar à luta. Mas o gongo não soa. 1, 2, 5, 10 minutos. Maio. Junho. Setembro? Dezembro?
Na madrugada de medo, pensava em meus sonhos. Se eu sei que são apenas sonhos, por que tanto medo de não poder os realizar? Na madrugada repassava memórias. Que serão delas se eu morrer? Será como se os fatos e impressões particulares que compõem meu universo interno nunca tivessem acontecido? Eu de madrugada, no meu momento Rutger Hauer na beirada do parapeito, sob a chuva, com uma pomba branca na mão (mas minha vontade era pisar os dedos do Harrison Ford e assistí-lo se esborrachar no asfalto).
Me convidam a fazer um ensaio fotográfico sobre a pandemia. Queria fotografar, mas minha câmara está a 150 km de distância de mim. Literalmente. Queria fotografar, mas minha disposição está a 20.000 léguas de distância de mim. Busco meu arquivo de fotos na nuvem digital via celular. Minhas memórias gravadas em luz e transcodificadas no idioma binário das máquinas. Vejo as fotos do meu passado na telinha de 4 polegadas.
Parece que fazem 200 anos que bati essas fotos. Parecem que foram tiradas por outra pessoa. Um cego sorrindo… O que estaria visualizando por trás do olhar fosco? Peixes apodrecendo num saco de lixo no meio da rua. Por quais águas navegaram? Uma cabeça de boneca. Antes da decaptação teria sido embalada no colo de quantas garotinhas entre a loja de brinquedos e o lixo? Um sujeito com uma pedra de crack do tamanho de um tijolo. Quantos malucos chaparam naquele pedrão? Com que imagens alucinadas deliraram? Memórias perdidas. Dois adolescentes sem-teto se beijando apaixonados. Ela grávida, ele com o rosto coberto de cicatrizes de queimadura. Faziam planos de futuro: “Vamos comprar uma casa”.
Começam a surgir fantasmas nas imagens. O Mancha (me disseram que mataram). O menino com câncer já havia perdido um olho, a pele cheia de verrugas, não tinha muito tempo de vida, isso há quase 20 anos (mas o menino com câncer não parecia ter nenhum medo de morrer)… Mestre Moa do Catendê. Um negro morto por outro negro por ofender a honra de um notório racista. O Brasil numa manchete. Gabrielzinho. Caralho, Gabrielzinho. Que injustiça do caralho. Justo aquele menino?
Pinço fotos quase aleatoriamente, tento achar uma linha narrativa. Construir algo mais ou menos como um ensaio. Quem sabe “olhos”? Assunto; olhos. Fotos de olhos? Fotos sobre olhos. Fotos que remetam ao olhar. Linhas estruturais que formem olhos. Um tema tão bom quanto qualquer outro. Mas isso é tão batido. Mas e daí que é tão batido. O que em 2020 não é “tão batido”? Deixa eu pensar. Essa aqui é jornalística demais. Essa outra não é artística o suficiente. Mas afinal o que é uma imagem artística? Sinceramente? Não me importo. Pra ser honesto, jamais me importei.
Vou virar todas as fotos em preto e branco. Dar mais unidade de conjunto pra esse material (tão disperso e intercalado pelo espaço e pelo tempo). Um ensaio deve ter unidade estilística. É o mínimo que se espera. Foi assim que me ensinaram, é assim que tem que ser. Mas meu estilo sempre foi colorido, cores saturadas (era moda na minha época!), meu estilo sempre foi calcado na cor. Mas afinal e daí? Quem liga pro meu estilo? Vou virar todas em preto e branco. Vai ficar mais artístico (de fracasso em fracasso será que me tornei um cínico? Ou, pior, será que algum dia fui sincero? Será que por isso, quando me faltou o ar, tive tanto medo de morrer?). Um conjunto de fotos linkadas pelo tema “olho”, todas em preto e branco. Sim, isso deve funcionar. E se falhar também quem se importa? É só mais uma galeria. É só mais um post. Só mais alguns cliques. Não vai cair o dólar. Nem subir o renminbi.
Vai ficar medíocre. É essa pandemia que mexe com a cabeça da gente, retesa os nervos. Aborrece. Desespera. Depois entedia antes de voltar a desesperar. Estico o braço à cabeceira; A Peste, Camus: (desculpem, hoje estou meio difuso, meio excêntrico com a escrita e a pontuação – Sterne é meu pastor e nada me faltará).
“Quando rebenta uma guerra, as pessoas dizem: <<não pode durar muito. Seria estúpido.>> E sem dúvida uma guerra é muito estúpida. Mas isso não a impede de durar. A estupidez insiste sempre. E comprêende-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Os nossos concidadãos, a esse respeito, eram como toda a gente: pensavam em si próprios. Por outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à medida do homem: diz-se então que o flagelo é irreal. Um mau sonho que vai passar. Ele, porém, não passa e, de mau sonho em mau sonho, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar pois não tomaram suas precauções. Os nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, as viagens e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca ninguém será livre enquanto existirem os flagelos”.
É. Tudo já foi dito, vivido e escrito (inclusive esta frase). Flagelos, gripes, pestes e misérias. Nós é que, ensimesmados e imbecis, sofremos por não aprender.
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João Bacellar é fotógrafo e cartunista do Jornalistas Livres. E está, como toda a gente, consideravelmente surtado com sua primeira pandemia global.
Conheça mais o trabalho do artista:
https://www.instagram.com/terceiromundofoto/
https://www.instagram.com/terceiromundo3m/
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O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente