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Uma saudação a The Americans, a série que precisávamos (e que quase ninguém viu)

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Eu entendo. Entendo de verdade.

Na década de 2010, é difícil escolher o que ver na TV. Difícil não em virtude da escassez, mas em virtude da abundância. Em meio ao drama épico e mega produzido de Game of Thrones, à ficção quebra-cabeças de Westworld, à crítica contemporânea fina e afiada de Mr. Robot, à sofisticação e fascínio pelo poder de The Crown… em meio a tudo isso e muito mais, é fácil deixar uma The Americans passar, tanto quanto é fácil deixar uma família “exemplar do sonho americano” passar anos, décadas, atuando como espiões sem ninguém perceber. No fim, a história da negligência de The Americans é, guardadas as devidas proporções, tão trágica quanto a dos Jennings.

Com o nome me refiro a Philip (Matthew Rhys) e Elizabeth (Keri Russell), que encabeçam a família que acompanhamos durante os anos 1970 e 1980, no coração da Guerra Fria. Treinados para se passar por americanos e forçados a posarem como um casal (o amor veio, com muita dificuldade, muito depois), Philip e Elizabeth tiveram dois filhos, inicialmente ignorantes do “trabalho paralelo” dos pais, donos de uma agência de viagens. Eles agem defendendo os interesses da União Soviética durante as seis temporadas e 75 episódios de The Americans, que chegarão ao fim nessa quarta (30) com a exibição de “START” (6×10), o último episódio.

Philip e Elizabeth matam, enganam e arruínam vidas para conseguir acesso a plantas militares, projetos tecnológicos, armas biológicas e informantes. A série não nos poupa de nada disso, mas tampouco nos poupa do outro lado da moeda – os Jennings vivem cordialmente na mesma rua do agente do FBI Stan Beeman (Noah Emmerich), e a série nos faz testemunhar enquanto ele mata, engana e arruína vidas para tentar deter os “ilegais”, como ele mesmo chama, que no fim das contas eram seus próprios melhores amigos. Se isso não é uma ironia dramática, eu não sei o que é.

The Americans não faz isso, essa advocacia pelos dois lados da Guerra Fria, para ser elogiada por sua ambiguidade e por sua fuga do maniqueísmo. The Americans faz isso porque essa é a história que ela quer contar, que os criadores e showrunners Joe Weisberg e Joel Fields idealizaram e aplicaram suas mentes a fim de executar. Na 5ª temporada da série, a penúltima, acompanhamos enquanto um dos coadjuvantes mais envolventes da série, Oleg Burov (Costa Ronin), sai de seu posto na embaixada americana e retorna para a União Soviética, onde reencontra sua família.

Costa Ronin como Oleg Burov em The Americans

A história de Burov, assim como tantos outros elementos de The Americans (os “chefes” mais velhos para quem Elizabeth e Philip reportam, por exemplo, sejam eles o gentil Gabriel de Frank Darabont ou a durona Claudia de Margo Martindale), existe tanto para expor um lado diferente da corrupção desses “inimigos históricos do Ocidente” quanto para que entendamos porque eles não são os vilões dessa história, se você pensar o bastante nela. Como Elizabeth tão brilhantemente articula em determinada cena da última temporada, a cultura e o mundo em que ela nasceu e cresceu, largamente moldado por um Ocidente que deixou a Rússia isolada e destruída após a 2ª Guerra Mundial, ao mesmo tempo que os negava o heroísmo de ter sacrificado mais do que qualquer outra nação pela derrota do nazismo e do fascismo, sobra na missão de explicar o comportamento no qual ela se engaja durante as seis temporadas.

O que há de mais heroico nessa trajetória sem heróis nem vilões, no fim das contas, é a própria forma como essa história, e eu quero dizer especificamente essa história, foi contada – conforme acompanhávamos Philip, Elizabeth e Stan (e Paige, e Nina, e tantos outros personagens), testemunhávamos a forma como a dedicação cega a uma ideia destruiu um pedaço deles cuja falta, inevitavelmente, causou infiltrações pérfidas em todos os outros. O ato de dedicar tudo o que você tem a qualquer coisa (uma pessoa, uma ideia, uma missão) exige que você esteja disposto também a perder tudo o que você tem para conseguir o que quer.

As atuações em The Americans refletem a culpa gigantesca, o remorso infindável, que existe nas pessoas que fizeram essa escolha. Há tantos grandes atores que passaram pela série, dos desempenhos sábios já citados de Darabont e Martindale à performance estupendamente emocional de Allison Wright como Martha, passando pela construção detalhista e idiossincrática que Noah Emmerich faz de Stan. É inevitável perceber, no entanto, como eles vivem à sombra das presenças colossais de Keri Russell e Matthew Rhys – ela, um forte de resiliência que deixa as rachaduras e a fúria de Elizabeth aparentes nos momentos mais angustiantes que a série pode conjurar; ele, uma expressão tocante de insegurança e tormento, que nunca deixa de considerar as premissas antiquadas em que a masculinidade de Philip é construída.

A família Jennings: Philip (Matthew Rhys), Paige (Holly Taylor), Elizabeth (Keri Russell) e Henry (Keidrich Sellati)

Essas são duas das grandes, se não forem as duas grandes, performances da nossa era de televisão. Assim como tudo em The Americans, no entanto, elas são magníficas da forma sutil e humana que, curiosamente, desaprendemos como apreciar na nossa época de mídia rápida e abundante. Você nunca vai me ouvir esbravejando contra a tecnologia ou contra a era de ouro da TV americana, porque seria hipócrita da minha parte – mas é inegável que nosso gosto por construções bombásticas, que se banqueteiam em valores de produção e pegam o espectador pelo pescoço com reviravoltas e adrenalina, foi realçada nessa nova era de produção ficcional.

Como resultado, o espaço permitido para a equipe criativa de The Americans florescer foi pequeno – mas, nesse espaço, eles fizeram coisas gloriosas. Direção dotada de precisão cirúrgica que nunca deixava de nos confrontar com a subjetividade dos personagens (Chris Long, Daniel Sackheim e Thomas Schlamme precisam levar crédito por isso); design de produção e equipes de figurino e maquiagem que recriaram época sem nada da opulência falsa de outras produções, mas todo o cuidado e o humor sutil que um fã pode pedir; trilha sonora que encontrou distinções sutis e inteligentes entre cenas climáticas e momentos de ação; e tantos outros elogios que eu poderia passar uma eternidade listando.

Fazer essa lista de virtudes, no entanto, iria contra todo o ponto de The Americans como obra de arte. Essas qualidades existiram não puramente porque as pessoas envolvidas tinham esses talentos, mas porque a história pedia que eles se esforçassem nesse sentido – e esse esforço organizado em criar a melhor versão possível da obra única que se quer desenvolver, em oposição a uma exibição egoísta de seus talentos particulares, é muito frequentemente subestimado no nosso ambiente cultural.

Noah Emmerich como Stan Beeman em The Americans

Acima de tudo, por fim, a história que The Americans, e só The Americans, contou, era uma história que o mundo onde ela foi criada precisava ouvir. Porque essa é uma obra de arte tão obstinada em sê-lo, The Americans não está aqui para dizer que é errado se entregar a uma ideia, dedicar-se a ela de corpo e alma – está aqui para expor as consequências inevitáveis disso. Quando a jovem Paige finalmente descobre que seus pais são espiões, há uma estranha familiaridade na cena em que Philip e Elizabeth a contam tudo (ou quase tudo), na mesa da cozinha – não que nós tenhamos passado pela mesma coisa, mas sentimos algo parecido.

Em certo nível, The Americans é sobre a angústia adulta de saber que nada é preto e branco, que os idealismos da nossa juventude são falsos, e que as coisas são mais complexas do que pareciam. Em sua obstinada jornada pelos cantos mais escuros e curvas mais escusas desse mundo, a série passou seis temporadas analisando, elaborando e mostrando o que vem depois do momento em que descobrimos a humanidade dos nossos pais, os primeiros ideais que conhecemos – o momento em que percebemos o quão falhos, terríveis e magníficos, em níveis e doses diferentes, eles são como seres humanos, e então precisamos confrontar quem nós somos na mesma dimensão adulta. Após a adolescência de crer que o problema é o mundo, e aquele breve, mas angustiante período em que lutamos com a noção de que o problema somos nós, ser adulto é entender que as duas coisas podem ser, e geralmente são, verdade.

Decidindo como intitular essa minha elegia a The Americans, pensei em que palavra usar para dizer adeus. Achei “saudação” uma escolha graciosa – enquanto ela transmite o quanto eu a aprecio como obra de arte, a palavra carrega também algo de formal, rígido, imperdoável e triste que existe em The Americans. “Saudação” conjura na minha cabeça a imagem de um soldado em posição de sentido. Eu confio que os Jennings (talvez Elizabeth, especialmente) saberiam apreciar essa última ironia.

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6 Comments

6 Comments

  1. João Paulo Ferreira

    30/05/18 at 9:24

    Essa série e foda demais estou ancioso demais pelo próximo episódio, ao que tudo indica vai dar muita merda!! Série sensacional e o texto ficou muito bom!!

  2. Lone Handhel (@LoneHandhel)

    31/05/18 at 0:56

    The Americans de fato uma serie injustiçada. Porque tem tudo o que uma serie precisa ter, roteiro primoroso onde cada episódio e temporada teve seu começo, meio e fim lógico. Atuações espetaculares e direção de arte pra lá de criativa. Merecia mais atenção da midia.

  3. Daniella

    31/05/18 at 8:54

    Confesso que estou surpresa com o final. Geniais as “punições” que todos os personagens sofreram por sua trajetória. A sequência do casal voltando, a aceitação de que pode estar dormindo com inimigo, a destruição da família ideal regular americana, e a arrogância de não enxergarem o que está debaixo do nariz ou do outro lado da Rua, valeu por essas 6 temporadas incríveis.

  4. Marilise Soares De Zotti

    31/05/18 at 22:15

    Excelente análise ! A série é suas atuações são magníficas. Vai deixar saudades.

  5. Giu M.

    31/05/18 at 23:08

    Parabéns! Texto JUSTO, e Perfeito!

  6. noelfm

    01/06/18 at 15:27

    Parabéns Caio, pela sua agudeza e precisão dos seus argumentos. Sou um seguidor e fan incondicional dessa série. Acho que The Americans marca um antes e um depois nesse vendaval criativo de series que temos atualmente. Sem dúvida uma proposta totalmente diferenciada e que faz jus ao que há de melhor em matéria de roteiro e dramaturgia, por citar somente dois dos grandes ganhos desta maravilhosa obra. Grande abraço.

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Djonga é o primeiro rapper brasileiro indicado a disputar o BET Hip Hop

Músico vai concorrer, nos Estados Unidos, ao troféu de melhor artista internacional

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O músico mineiro Djonga foi indicado para concorrer ao troféu de melhor artista internacional no BET Hip Hop Awards, especializado em hap e hip hop. O rapper, compositor e historiador é o primeiro brasileiro a ser reconhecido pelo evento. O BET Hip Hop Awards é uma premiação norte-americana anual realizada pela Black Entertainment Television e voltada para rappers, produtores e diretores de videoclipes de hip hop e Rap. 

Ele vai disputar o prêmio com Kaaris (França), Khaligraph Jones (Quênia), Meryl (França), MS Banks (Reino Unido), Nasty C (África Do Sul) e Stormzy (Reino Unido). O BET Hip Hop Awards revelará os vencedores do ano no dia 27 de outubro.

Neste ano, Djonga lançou seu quarto álbum de estúdio, Histórias da Minha Área, onde conta um pouco sobre o bairro Santa Efigênia, onde mora em Belo Horizonte. O trabalho conta com participações de MC Don JuanBia NogueiraCristal, NGC Borges e FBC

Depois de surgir como grande astro na cena do hip hop nacional e colocar seu nome entre os principais personagens da cena do rap no país, Gustavo Pereira Marques (seu nome de batismo) acaba de fazer história aos 26 anos tornando-se o primeiro brasileiro a ser indicado ao prestigiado BET Hip Hop Awards, premiação musical focada na cultura negra. 

A indicação de Djonga aconteceu nesta terça-feira, 29, e ele concorre na categoria Melhor Artista Internacional. “Cravando o nome na pedra, sem emocionar!”, escreveu Djonga no Twitter ao dar a notícia. Na postagem, ele publicou um vídeo em que fala à MTV sobre a importância do rap no período da pandemia: “O rap tem que continuar fazendo o papel de sempre. O primeiro papel, e mais importante, é o papel de arte, de música, de levar alegria e reflexão para as pessoas. Em segundo lugar, continuar denunciado o que a gente sempre denunciou. Dedo na ferida, dedo na cara de quem tá errado”.

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A polêmica das estátuas no 7 de Setembro

A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República, que mudou seu nome para homenagear o inconfidente

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Estátua equestre de Theodore Roosevelt, a ser removida da frente do museu de História Natural de Nova York

Não é possível comemorar a Independência do Brasil hoje sem pensarmos sobre um dos temas mais debatidos em nossa relação com a história: a polêmica das estátuas. Em 22 de junho de 2020, por exemplo, o Museu de História Natural de Nova York anunciou a retirada de uma estátua equestre de Theodore Roosevelt localizada em frente ao museu desde 1940. Vejam na fotografia acima que razões não faltaram, pelo modo subalterno com que negros e índios são representados.

Por Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo (UFOP)*

O diretor do Museu afirma que a recusa é ao monumento, e não à figura de Roosevelt, que continuará sendo homenageado pela instituição por seu pioneirismo na luta pela conservação do meio ambiente. Segundo a reportagem, um dos descendentes do ex-presidente, declarou:

“O mundo não precisa de estátuas, relíquias de uma outra era, que não refletem os valores das pessoas que pretendem honrar, ou os valores de igualdade e justiça”. 

Em 2017 uma comissão estabelecida pela cidade de Nova York para reavaliar a pertinência de monumentos públicos havia decidido, em votação dividida, pela manutenção da estátua, apesar dos protestos de que já vinha sendo alvo e das promessas do museu em  “atualizar” (update) suas exibições. Em 2019 o museu tomou a iniciativa de promover um debate com a comunidade e inserir elementos que pudessem contextualizar e criticar os aspectos racistas e colonialistas do monumento, bem como reavaliar as posições do próprio Roosevelt.

A iniciativa ficou registrada no projeto “Addressing the Statue”, que pode ser ainda visitado no site da instituição. O projeto é um excelente exemplo de como o interesse renovado pelos monumentos e personagens históricos, provocados por polêmicas, podem ser respondido pela produção de conhecimento e diálogo com a comunidade em busca de atualização. Algo que poderia não acontecer se a estátua tivesse que ser removida violentamente. 

Com a onda de protestos que se seguem após o assassinato de George Floyd, os administradores do museu decidem finalmente retirar a estátua, em um desfecho que exemplifica como a atualização da monumentalização pública pode ocorrer em um ambiente democrático ampliando o seu sentido histórico, no lugar de apagá-lo, como acusam ligeiramente alguns críticos.    

https://lh5.googleusercontent.com/n4LEpIBYOzlLoCw3PECR7ta5UA9eQBqAA_3fdtQ41N5aY_ZFczU7wGjWgfZyEyOUkAaWW94uTk_lg9y_TdNMqjBqWdlD7ClFO1btfIvisdXENLyD2Iv0LiIg4VNYeA

Estátua equestre de Theodore Roosevelt, a ser removida da frente do museu de História Natural de Nova York

Esse fato, que tem como centralidade a figura e a estátua de Roosevelt, nos remete à  também polêmica estátua equestre de Pedro I, que se encontra na atual praça Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Ela carrega a mesma estrutura evolucionista e hierarquizante criticadas na estátua de Roosevelt.

Estátua como “mentira de bronze”

O monumento comemorativo da Independência foi erguido em 1862, e desde seu nascimento provocou fortes protestos, ainda que por razões diferentes. Mesmo que sua instituição tivesse por objetivo a consagrar Pedro I como o herói que libertou a nação, dando-lhe uma carta constitucional,  ela não deixa de materializar as concepções evolucionistas e racistas das elites brasileiras. Ao mesmo tempo, esse episódio nos mostra a complexidade da instituição de monumentos: desde o início a estátua foi vista por grupos liberais como uma impostura contra a memória de outros movimentos e heróis da independência, o liberal mineiro Teófilo Ottoni lança no mesmo dia da inauguração um panfleto crítico em que chama a estátua de “a mentira de bronze”, ao mesmo tempo em que recuperava a figura de Tiradentes como o verdadeiro herói da Independência.

A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República. Nesse caso, no lugar de remover a estátua do ex-imperador, bastou às elites republicanas ressignificar o contexto da praça em um gesto ao mesmo tempo provocativo e de conciliação. Deixava de ser praça da constituição para ser Praça Tiradentes. Ironia ou conciliação?  

Até hoje a posição subalterna da população indígena no monumento permanece invisibilizada, e sua atualização poderia passar, também, pela promoção de debates e, mesmo, pela remodelagem documentada do monumento. A estátua equestre, com o Imperador segurando a constituição, poderia, por exemplo, descer de seu pedestal evolucionista-racista e, em paralelo, outras formas de comemorar/celebrar os povos indígenas e denunciar sua opressão poderiam ser produzidas.      

Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro

Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro

Retirar as referências de um passado sensível não nos deixaria com uma falta de “locais de memória” nas ruas? A solução, neste caso, seria a sua substituição e/ou convivência com novos monumentos aos grupos historicamente oprimidos e sub-representados, como mulheres, indígenas e negros. Mas é preciso pensar em que tipo de monumentos seriam esses.

Estátuas como selfies de celebrities

Segundo o crítico de arte britânico Jonathan Jones, derrubar estátuas é uma performance admirável, mas a ideia de substituir as estátuas derrubadas por outras de pessoas mais “merecedoras” da homenagem seria fruto de um pensamento artístico conservador. A estátua, para Jones, já não seria uma forma artística adequada para homenagens desde que Marcel Duchamp enviou um urinol para uma exposição de arte em Nova York. O mais adequado seria, então, dar espaço para que a arte contemporânea pudesse representar as vidas roubadas pela escravidão, pois a estátua reduz a história a apenas um rosto, um personagem, podendo apenas reforçar uma concepção simplista e conservadora de como a história acontece.

As estátuas, de modo parecido com as selfies, fazem parte de uma cultura de celebridades que não faz sentido para retratar horrores como a escravidão ou o Holocausto. De algum modo, a representação monumental dos personagens históricos parece evocar a concepção de um indivíduo linear, solar, sem falhas.  

Considerando as cidades ou os países como grandes museus, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.

Sobre essa questão o historiador Fábio Faversani nos lembra que, na Roma Clássica, a noção de cidadão era excludente, o que significa que as representações eram, apenas, de pessoas consideradas cidadãos importantes. Assim, a questão sobre quem deve ser homenageado com uma estátua ou com um monumento está diretamente relacionada ao fato de se ter reconhecidamente o direito a ocupar os espaços da cidade, isto é: quem, por algum critério de legitimidade, é reconhecido como cidadão. A cidadania, na nossa democracia contemporânea, deve ser abrangente, não porque sejamos todos iguais, mas justamente por sermos diferentes – e, por isso, é preciso reconhecer e escrever as várias histórias que constituem a nossa sociedade. A derrubada violenta pode ser reconhecida como a forma radical de determinados grupos sociais chamarem a atenção dos políticos e da sociedade em geral. A derrubada violenta faz sentido quando não há oportunidade de diálogo. É preciso reconhecer que as tradições não são boas por si mesmas, pelo simples fato de serem uma herança de nossos antepassados; elas são mutáveis e só permanecem vivas se formas capazes de atualizar nossa história (nosso passado-presente-futuro) a partir delas de modo plástico e criativo.

Alguns críticos consideram a derrubada e/ou atualização de estátuas um tipo de anacronismo, no sentido de que reduziriam a história ao universo de valores do presente. Não estaríamos tirando estes personagens de seus contextos históricos? Diante de tais questões devemos nos lembrar que o racismo não é algo do passado; ele ainda está presente e tem consequências significativas nas nossas vidas. Muitos dos personagens que são hoje alvo de crítica cometeram ações que mesmo em suas épocas poderiam ser consideradas infames, mas acabaram tendo suas memórias protegidas por suas ligações com os poderosos da vez.

Estátuas como forma de criar mitos

Apenas tornando a história menos eurocêntrica e heteronormativa é possível evitar que as extremas-direitas usem referências do passado como forma de recrutamento e propaganda, como se o passado fosse homogêneo e sem disputas. E isto não significa negar a história ou falseá-la; a pluralidade é uma realidade, basta trazer à luz histórias esquecidas ou suprimidas das várias nações e povos que formam a nossa sociedade.

A divisão entre aqueles que defendem o patrimônio a qualquer custo e os que gritam “deixa quebrar” só ocorre porque não há políticas públicas efetivas de monumentalização voltadas para a reparação histórica, como aponta, também, Fernanda Castro. Vale notar que em países como o Brasil há uma grande dispersão de autoridades com mandato que permite gestos de celebração e monumentalização. A emergência do bolsonarismo, por exemplo, acontece em “paralelo” a uma epidemia de medalhas e outras celebrações de aliados cujas biografias se confundem com uma vasta lista de crimes.  

Assim, os protestos nos quais estátuas são derrubadas ou depredadas podem ser uma forma de manifestação que surge de situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando de que problemas graves não encontram políticas públicas adequadas.

Destruir estátuas por si só não tornará as sociedades menos racistas, mas deve servir de estímulo para a identificação do que deve ser feito, como o combate à violência policial contra negros, por exemplo, bem como a implementação de políticas públicas de memória e antirracistas. Além de políticas públicas cujo objetivo seja a redução da desigualdade socioeconômica dos negros em relação aos brancos. Cabe enfatizar que a normalização da violência é amplamente utilizada pelos grupos de direita, como vimos no caso da destruição da placa da Rua Marielle Franco, que se tornou um símbolo de extremistas de direita na campanha eleitoral de 2018. Portanto, é preciso entender o contexto e o sentido da destruição de monumentos antes de fazer qualquer juízo definitivo.

O historiador Marcelo Abreu nos chama a atenção para o fato de que a desigualdade social presente no mundo precede as estátuas e os patrimônios que buscam moldar as identidades nacionais. Por isso, embora uma estátua possa representar uma identidade local ou nacional, a revolta contra o racismo desses “heróis” homenageados transpassa as fronteiras, já que a desigualdade não está presente em apenas um país. Nessa direção, a luta contra todas as formas de opressão nunca deveria fugir do horizonte de todos e todas que formam e lutam dentro do campo progressista.

Se os lugares de memória existem para nos recordar, constantemente, de quem somos nós, é muito natural que o valor desses lugares se transforme com o tempo, na mesma medida em que a própria sociedade se transforma. Já não aceitamos o racismo como em tempos bem próximos, logo, não faz sentido que queiramos deixar para o futuro homenagens a pessoas que defenderam esta forma de discriminação e dela se aproveitaram. Lutas como essas podem ajudar para a construção de pautas comuns no interior do campo progressista. Disputas e divergências sempre haverá, mas é preciso não perdermos o horizonte do comum.

O que vemos hoje é a reivindicação, muito justa, dos grupos que tiveram suas memórias e identidades subjugados, o que faz com que se reconheça que a nossa sociedade é composta por variadas memórias e identidades – muito diferente do “povo brasileiro” homogêneo que defendeu, em sua “atualização regressista”, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, durante a famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020. Em sua análise, relativa a esse “povo” ao qual faz referência a extrema-direita brasileira, a historiadora Luísa Pereira escreve: “O verdadeiro povo seria formado pelo homem simples, cristão, conservador, heterossexual, casado, pai de família, provedor, empreendedor e patriota […]. O verdadeiro povo é, portanto, homogêneo”. Uma ideia de povo e heróis celebrados pela atual propaganda política desse governo para o 7 de Setembro este ano.

Os protestos atuais nos quais estátuas são derrubadas em nome da luta contra o racismo e o colonialismo são formas de manifestação que surgem em situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando. Antes de condenar, a cidadania precisa se perguntar sobre o que está errado e precisa ser feito.

Como afirma Adam Prezeworski, em Crises da democracia: “A persistência da desigualdade é uma prova irrefutável de que as instituições representativas não funcionam, pelo menos não como quase todo mundo acha que deveriam. Portanto, o avanço do “populismo” — resultado da insatisfação com as instituições políticas que reproduzem a desigualdade e não oferecem alternativa — não deveria nos surpreender”.

Assim, no dia em que os mais diversos brasileiros rememoram sua Independência não custa lembrar que enfrentar as diversas opressões e desigualdades que marcam esse país é um desafio que nosso passado nos legou e que deve ser assumido coletivamente.

*Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.

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100 mil mortos. Lute apesar do luto

Uma ação em memória dos mais de 100 mil mortos pelo Covid-19

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Lute apesar do luto

100 mil mortos. Uma ação chamada Lute apesar do luto aconteceu na manhã deste sábado em São Paulo, num momento em que chegamos à essa triste marca pela pandemia do novo Coronavírus.

32 cruzes pretas foram colocadas aos pés de cada mastro de bandeira do Brasil, que estão localizadas na ponte da Cidade Jardim, Marginal Pinheiros.

Lute apesar do luto
Lute apesar do luto
Lute apesar do luto
Lute apesar do luto
Lute apesar do luto

100 mil mortos. Num momento como esse, a pergunta é: porque as bandeiras do Brasil que estão por todos os lados, não estão a meio-pau? Não existe normalidade, quando chegamos a 100.000 mortos. Não existe.

Cada morte tem nome, história, trajetória, família, filhas e filhos, pais, avós, netas e netos, amigas e amigos, tem rosto, sorrisos apagados, marcas do tempo, da vida. Não podemos esquecer e achar que estamos a caminho da normalidade.

Não.

100 mil mortos. Um governo que nunca prestou solidariedade a ninguém, que brinca descaradamente com a situação que passamos, que inventa curas milagrosas com remédios cuja ineficácia é cientificamente comprovada, um governo que nem ministro da saúde tem, sem vergonha na cara de espinafrar a ciência, os próprios médicos, que incita a invasão e violência a hospitais, e deixa as populações mais pobres à sua própria sorte, sem medidas mínimas para combater essa pandemia com sabedoria e inclusão.

A tristeza se torna mais forte ainda, quando nem o luto de cada perda pode ser respeitado. Quando os mortos não podem ser velados, perde-se a despedida, o fim da trajetória, o recomeço, a memória e as lembranças.

100 mil mortos. Toda bandeira do Brasil, em todo o território nacional, deve ser colocada a meio-pau. Para lembramos sempre de quem não está mais entre nós, mas que merecem que nós sigamos lutando para que o Brasil não seja lembrado como o País que enterrou mais vidas em todo o mundo, por egoismo, negacionismo e incompetência de um Governo.

#lutepeloluto #luteapesardoluto #bandeirasameiomastro

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