UM DEUS COMBUSTÍVEL.

por Cássio Vasconcellos©

Acordei pensando em José, mas era Temer que aparecia na tv logo cedo. Saí para a rua, ví tantas filas de carros virando as esquinas e professores e alunos protestando, desafiando a poesia ruim desses dias. O presidente com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta.

E agora Temer, são dias de José.

Que falta faz um corcel em dias assim ou uma magrela para esses tempos de pedra. 

Faz falta.  

Antes tinha até canoa, quando me lembro fico bravo.

Hoje é tudo traçado, é tranca, é eixo na terra, tudo é um diesel, é combustível, é imposto. Mundo estranho, alguns rezam, alguns queimam, outros golpeiam.

País de aflitos, mundo de cegueiras, rezas vazias.

Chega um tempo de reaprender.

 

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

imagens helio carlos mello©

 

 

 

 

 

 

 

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

Estilhaços (do coração)

Livro mais pessoal e revelador de Paulo Batista Nogueira Jr. Trata, também, da relação entre arte e realidade, entre memória e fabulação.

MST: Tirando leite da pedra

Por frei Gilvander Moreira¹ Se prestarmos bem atenção em certas notícias, veremos como uma brutal injustiça socioeconômica se reproduz diariamente no Brasil. Eis algumas notícias

Regime de urgência para retirar a “função social da terra” da lei 8629/1993 é aprovado a toque de caixa

O projeto é visto como tentativa da bancada ruralista de enfraquecer a reforma agrária e flexibilizar normas ambientais e sociais, favorecendo o agronegócio e grandes proprietários. Especialistas alertam que a medida pode aumentar a concentração fundiária, expulsar comunidades tradicionais e comprometer a justiça agrária e ambiental, agravando desigualdades e conflitos no campo.