Regina Duarte tem medo da Comissão da Verdade da Covid-19
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ARTIGO
Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Mariana
O Brasil já tem, provavelmente, o segundo maior número de casos e mortes do mundo, considerando as subnotificações. É sempre bom lembrar que somos um dos países que menos realiza testes para a covid-19 do mundo. Exemplos: Cuba testou quatro vezes mais do que nós, o Peru sete vezes e Portugal 30 vezes. Nós estamos testando 0.6 para cada 1.000 habitantes. Os que mais testaram foram: Alemanha (25/1.000h), Itália (23/1.000h), Estados Unidos (12/1.000h) e Coréia do Sul (11/1.000h).
Boa parte dessas mortes estão diretamente ligadas às irresponsabilidades do Governo Federal, do presidente e sua equipe. Também o são os casos não notificados, mesmo depois dos corpos já enterrados, os “desaparecidos da Covid-19”. No entanto, estes desaparecidos não o são apenas por não estarem presentes nas estatísticas, mas por sofrerem, também, um apagamento ativo por meio dos discursos do presidente e de seus apoiadores.
Pesquisadores brasileiros estimam que o número de contaminados pelo novo coronavírus no Brasil é de 1,6 milhão, número 14 vezes maior que o registro oficial. Outros estimam que o número pode ser até 50 vezes maior que a notificação oficial. A isso soma-se o fato de que nas áreas periféricas das grandes cidades, como São Paulo, a mortalidade por Covid-19 tem sido dez vezes maior. Ou seja, os mais vulneráveis do Brasil são as maiores vítimas. São eles os pobres, pretos, pardos, mulheres e jovens.
É considerando esse contexto que devemos entender a entrevista concedida por Regina Duarte ao jornalista Daniel Adjuto da CNN Brasil, no dia 7 de maio. Ela criticou as pessoas que ficam “cobrando por coisas que aconteceram nos anos 60, 70, 80” e disse que é preciso olhar pra frente, cantarolando a música tema da copa de 1970. Quando o jornalista disse que na Ditadura havia desaparecido muita gente e havia censura, ela rebateu com um simplório “Cara, desculpa, eu vou falar uma coisa assim: na humanidade, não para de morrer. Se você falar ‘vida’, do lado tem ‘morte’. Por que as pessoas ficam ‘oh, oh, oh!’? Por quê?!” e “Por que olhar pra trás? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões”. Ela, que vinha sendo cobrada por não se manifestar pelas mortes de importantes artistas por Covid-19, interrompeu a entrevista bruscamente após a transmissão de um vídeo onde Maitê Proença critica a sua gestão à frente da Secretaria de Cultura.
A Secretária da Cultura de Bolsonaro se recusou a ouvir ou a responder qualquer coisa, dizendo que os jornalistas estavam “desenterrando mortos” e que deveriam ser mais “leves”, ao que a âncora do jornal, Daniela Lima, responde que eles não estão desenterrando mortos, e, sim, enterrando, visto que no momento o país já havia perdido milhares de brasileiros para o coronavírus, dentre eles pessoas da classe artística, da qual faz parte a própria secretária.
A fala de Regina Duarte, para a qual faltam adjetivos, e que deixou estarrecida boa parte dos brasileiros, deve ser contextualizada a partir de outros acontecimentos recentes. Um deles, protagonizado pelo ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), anulou a decisão do Tribunal Regional Federal a 5ª Região (TRF-5) que determinava a retirada de uma publicação, do dia 31 de março, em defesa do golpe de 1964, do site do Ministério da Defesa. Tofolli balizou a sua decisão utilizando-se do argumento de que há um excesso de judicialização em atos públicos, e de que esta decisão censurava a livre expressão do ministro de Estado.
Outro acontecimento foi o encontro no dia 4 de maio entre Bolsonaro e Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, acusado de assassinato, tortura e ocultação de cadáveres na Guerrilha do Araguaia. Vale lembrar que no dia anterior, no domingo, houve mais uma manifestação em apoio ao presidente, contra o STF, o Congresso, a imprensa e Moro. Nesse dia, o presidente afirmou que ele tem o apoio do povo, das Forças Armadas e de Deus, e por isso faria cumprir a Constituição “a qualquer preço”. Já no dia 6, em reunião com o ministro Dias Toffoli, do STF, Bolsonaro defendia a flexibilização do isolamento social, dizendo que a liberdade (no sentido de ir e vir) é mais importante do que a própria vida.
A negação, justificação e apologia da ditadura, contrariando toda a literatura especializada, e a negação da Covid-19, desafiando as recomendações mais básicas da autoridades de saúde, são dois exemplos de um mesmo fenômeno: a exploração ilegal da desinformação como arma política. Vamos lembrar que mesmo empresas como Google e Twitter, que eram muito reticentes em eliminar de suas plataformas as fake news, revisaram suas políticas e hoje não permitem postagens que contrariem recomendações da OMS como a necessidade de quarentena no combate à pandemia. Foi por essa nova orientação que o Twitter apagou postagens do próprio Bolsonaro.
A Lei da Anistia, de 1979, é o vício de origem no qual assenta a Nova República. Ela consagrou a impunidade de torturadores, agora celebrados pelo presidente e outras autoridades públicas. A Constituinte, o Congresso e o STF escolheram não revisá-la. E onde isso foi dar? Em Bolsonaro e seus asseclas. Enquanto não enfrentarmos esse passado, não será possível impedir sua re-atualização em suas variadas formas.
Por isso, é preciso urgentemente combatermos as mentiras que afirmam que não houve corrupção na Ditadura; que aquela época foi um tempo melhor e mais seguro do que hoje; de que os conflitos e crimes devem ser esquecidos. Sem isso, Regina Duarte continuará a representar o que uma parte significativa da sociedade brasileira acredita. Em especial, as novas gerações que se identificam politicamente com esse tipo de discurso. Afinal, no Brasil, uma parte considerável dos jovens apoiam discursos e ações da chamada nova direita.
Nem sempre é fácil traçar as fronteiras entre a direita que se acredita iluminista, vide as recentes declarações do ministro do STF Luís Roberto Barroso, e a direita que alguns chamam de chucra. A ilustração brasileira foi construída pela escravidão, e muitos paladinos da democracia foram direta ou indiretamente sócios e beneficiários da Ditadura. A própria Regina Duarte é filha de militar e até hoje recebe pensão pelo pai falecido em 1981. Não sabemos ao certo até onde essa memória incômoda não está embaraçada com sua biografia. A Regina secretária de Bolsonaro é a mesma que apoiou José Serra na eleição de 2002 contra Lula, o mesmo medo, a mesma direita em formas distintas.
A fala de Regina Duarte se assemelha com o discurso bolsonarista de que “quem procura osso é cachorro”. Assim como a secretária fecha os olhos para os mortos por Covid-19 e diz que quer ir “pra frente”, Bolsonaro, várias vezes, também defendeu que o passado ficasse a cargo dos historiadores – talvez ele estivesse se referindo aos olavistas, que estão produzindo uma falsa história nacional que já orienta a produção de material didático. A insistência em “seguir em frente”, sem olhar para trás, nos faz temer o futuro que Regina Duarte e Bolsonaro esperam construir. Será, certamente, um governo assentado sob cadáveres, a exemplo, aliás, do que fizeram os generais da Ditadura Militar.
Maria Herminda Tavares, no mesmo dia da famigerada entrevista, lembrou uma frase que “quase” foi dita por Regina Duarte: “Viva a morte! Abaixo a inteligência”. Essa frase foi proferida pelo general fascista espanhol Millán-Astray em 1930. Apesar de ser difícil aceitar, não podemos negligenciar o fato de que, em várias dimensões, o governo bolsonaro é uma atualização do fascismo, e ainda mais eficaz, porque livre de qualquer coerência ideológica e detentores de ferramentas de propaganda com as quais os fascistas nem sonhavam. E isso é mais do que uma mera assombração que retorna. Não podemos negar a realidade, do contrário, quando acordarmos pode ser tarde.
A negação, e em especial o revisionismo, é um tipo radical e perigoso de fundamentalismo. Diverso, portanto, do relativismo cultural, que é inclusivo e reconhece o valor da diversidade e o diálogo livre e aberto como condição de produção de conhecimento. Já o negacionismo e revisionismo autoritário coloca em questão o poder de veto das fontes, utiliza-se de maneira aberta e sistemática da mentira e da desinformação, está baseado em lógicas de justificação e dissimulação que pretendem extrapolar, estender, manipular, minimizar e, no limite, negar o próprio poder de veto das fontes e a existência e valor das posições contraditórias, da existência mesma das minorias.
Em outros termos, nega e/ou revê a dimensão política e a intenção ética que valoriza e estimula o dissenso, a pluralidade e o diálogo que fundamenta a experiência democrática. A interação entre a ética e a política pressupõe a exigência de um reconhecimento mútuo. A ética do político, nessa perspectiva, visa criar espaços de liberdade, o que implica olhar para trás, para o agora e para frente ao mesmo tempo. Essa intenção ética, na esfera do político, não depende apenas das vontades individuais, mas também do Estado de direito que tem sido omisso em várias esferas. Além da refutação e da desconstrução factual, é preciso criar espaço de diálogo, de liberdade e de pluralidade para estabelecermos os limites legais e éticos, das narrações, interpretações e representações.
Os historiadores e historiadoras profissionais devem desempenhar um papel central nesse processo, seja por sua perícia de especialistas, seja como educadores; mas é a sociedade civil que precisa construir espaços institucionais autorizados para mediar e reprimir os abusos do poder ao mobilizar as novas ferramentas de comunicação para distorcer a história. É certo que a regulamentação da profissão de historiador vetada por Bolsonaro teria sido uma oportunidade para avançarmos nesta fronteira, com a criação, por exemplo, de conselhos de auto regulamentação.
Assim, o que fazer frente ao desprezo pela vida?
Uma boa sugestão para impedirmos que a impunidade do presente perdure no tempo foi dada por Gregório Duvivier ao afirmar que os crimes cometidos pelo governo Bolsonaro devem ser julgados por uma Comissão da Verdade em tempo real. O medo dos mortos que tanto assombra Regina Duarte é o medo da verdade e da justiça. Qualquer sociedade que queira sobreviver precisa ter a coragem de cuidar também de seus mortos, de sua memória, de sua história e da verdade coletiva. Quantas mortes pela Covid-19 poderiam ter sido evitadas? A ciência tem respostas para essa pergunta. Conseguiremos punir as autoridades por esses crimes, ou o modelo da anistia e da impunidade vai prevalecer mais uma vez?
Enquanto isso, esperamos no mínimo que o Parlamento, presidido por Rodrigo Maia, essa pessoa que nasceu no exílio político da Ditadura, aprove uma lei punindo toda e qualquer apologia à violência, em especial, a de Estado. Mas parece que cabe a nós, da sociedade civil, o impulso e a pressão para que isso se realize.
Outra ação urgente é cobrar a retirada dos militares da ativa e da reserva de postos políticos reservados aos civis. Sobre esse último ponto cabe dizer que, infelizmente, as Forças Armadas (sob o disfarce do combate ao comunismo – mais uma vez estão manchando a reputação da instituição ao darem o suporte a esse governo genocida, respaldando enquanto instituição as ambições de poder pessoal de alguns generais. Depois pouco vai adiantar a revolta contra a verdade histórica, mais uma vez terão seus nomes arrastados na infâmia da memória. A lembrança das mortes que poderiam ter sido evitadas acompanharão as famílias e as gerações que estão vivendo essa tragédia nacional, mais de 10 mil mortes oficiais. Todos os dias pessoas estão sendo enterradas em covas coletivas em Manaus! A insensibilidade e os crimes de muitos, em especial, do presidente, não podem ser justificados sob nenhuma hipótese, nem muito menos esquecidos. Além de sermos impedidos de velar nossos mortos, querem também que os esqueçamos, e tudo isso em nome de um projeto sórdido de poder.
Enquanto não enfrentarmos o nosso passado-presente de violência, isto é, a Ditadura Militar, a escravidão, o racismo, o etnocídio, o patriarcalismo, dentre outros, o passado continuará a se atualizar negativamente, impedindo a construção de uma país efetivamente menos desigual e mais justo. Cabe ainda destacar que, agora, além do estudo coordenado pela professora Fernanda Cimini da UFMG, também o editorial da prestigiosa revista The Lancet aponta para o fato de que Bolsonaro é a maior ameaça ao combate à Covid-19.
Portanto, a fala de Regina Duarte enquanto Secretária de Cultura do governo federal deve ser entendida como uma atualização do discurso autoritário e criminoso da Ditadura Militar, no sentido de que ela tenta proteger a entrada de qualquer “vírus” no interior desse sistema. Essa atualização só é possível pela desinformação atualista que silencia o conhecimento e a experiência sobre o passado e coloca em seu lugar uma espécie de réplica fantasmática. Regina não quer ouvir os mortos, apenas o jingle de propaganda “Pra frente Brasil, Brasil…”.
Em outras palavras, ela pretende se antecipar a qualquer tipo de julgamento, não da história, mas das cortes penais que finalmente venham a combater crimes contra a humanidade, de ontem e de hoje, ou seja, a busca pela verdade e justiça dos mortos e desaparecidos da Ditadura Militar e do Governo Bolsonaro. Para muitos não foi novidade saber que Regina Duarte tem medo, tem medo da esperança e do futuro, tem medo de seu passado de culpa. Nesse sentido, devemos aplaudir o manifesto em repúdio às declarações da secretária de Cultura assinada por mais de 500 artistas. A sociedade civil brasileira não está morta! E não podemos esquecer, por fim, que tudo poderia estar muito pior. Só não está porque existe um patrimônio do povo brasileiro chamado Sistema Único de Saúde.
Esta coluna foi escrita com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em História pela UFOP.
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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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07/11/20
O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
O show de Trump: renovação ou cancelamento?
A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista
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06/11/20por
Aloisio Morais
Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
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5 anos atrásem
05/11/20
A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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Dinei Rinaldi
10/05/20 at 21:00
A seu próprio modelo, Bozo escolhe equipe de governo sempre pela sua incapacidade mental e mau caratismo..