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RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Convido o leitor e a leitora a um exercício de imaginação: feche os olhos e imagine um bode aí no meio da sala, berrando, fazendo xixi e coco. Um bode bem no meio da sala de vocês, naquele lugar sagrado entre a poltrona e a TV.
Imaginaram??
Agora, pense naquele problema estrutural que sempre te incomodou no seu apartamento, na sua casa.
O piso de taco que solta toda hora e suja tudo. A infiltração que tá quase derrubando a parede do banheiro. A textura brega, verde, que o antigo morador fez e, sabe Deus por quê, achou que ficou bonito. O tamanho do boxe, que transforma seu banho num suplício. O sanitário meio encardido, amarelado, sempre com aparência de estar mijado.
Tudo isso seria problema menor, quase nada, se um bode estivesse mesmo estacionado na sua sala.
Essa é a metáfora perfeita para entendermos o que tá em jogo naquela que foi a principal polêmica desta última semana, especialmente dentro do campo das esquerdas.
Começou a ser ventilada a hipótese de uma “frente ampla”, reunindo a oposição ao bolsonarismo, o que envolveria, naturalmente, o PT, o maior partido da oposição. Algumas lideranças, como Ciro Gomes, afirmaram que o PT deve, sim, participar da frente ampla, mas de forma silenciosa, em virtude do “anti-petismo”.
O PT deveria também abrir mão da agenda “Lula livre”, impopular, segundo Ciro, e cerrar fileiras ao lado daqueles que participaram do impeachment de Dilma Rousseff, evento que os petistas qualificam como um “golpe parlamentar”.
Se aliar a golpistas e abrir mão da defesa daquele que é internacionalmente reconhecido como um preso político. Por quê? Pra combater o bolsonarismo. Qualquer concessão é legítima se o objetivo for combater o bolsonarismo. O argumento faz sentido, não posso negar.
De fato, Bolsonaro é uma ameaça ao Brasil, à soberania nacional. Cada vez mais os efeitos do bolsonarismo se tornam mais destrutivos e não reversíveis no curto e no médio prazos. É preciso fazer algo, é preciso resistir e pra isso é necessário reunir o maior número de pessoas possível, de diferentes tendências ideológicas, todas irmanadas pela oposição ao bolsonarismo. Isso é frente ampla.
Para que a frente ampla seja viável, sua agenda deve ser reduzida ao mínimo: a oposição a Bolsonaro. Não dá pra debater a reforma da previdência, a reforma trabalhista, a PEC dos gastos, pois isso afastaria as frações do mercado que não gostam de Bolsonaro e que poderiam integrar a frente ampla.
Não se discute lawfare e a prisão política de Lula, pois isso afastaria os setores anti-lulistas que também não gostam de Bolsonaro. Sem essa galera aí, a frente não seria tão ampla assim.
Diante de Bolsonaro, parece ser problema menor, dizem os defensores da frente ampla. Poderíamos levar o argumento mais longe.
A ditadura militar, com Geisel, criou o Sistema Nacional de Pós-Graduação, que hoje estrutura a produção científica brasileira. Os ditadores tiveram uma visão estratégica da universidade, fortaleceram a pesquisa científica. Diante de Bolsonaro, a ditadura militar até teve seus méritos.
Temer não atacou os direitos humanos. Cortou verba das universidades (Dilma também), mas não fez perseguição ideológica. Não interferiu na nomeação de reitores. Não coagiu professores, não disse que primeira dama de outro país é mulher feia. Temer pode até ser golpista, mas perto de Bolsonaro, vamos combinar, é sujeito razoável. Tão fofo, tão educado com aquelas mesóclises.
Como Bolsonaro é o paroxismo do absurdo, desenvolvemos a estranha capacidade de tolerar outros absurdos, que nem mais parecem ser tão absurdos assim.
Enquanto isso, privatistas, rentistas, golpistas, destruidores de direitos sociais posam como defensores da democracia, da civilização e reivindicam seu lugar na “frente ampla”.
Realmente, não sei se o PT deve apoiar esse projeto de frente ampla nos termos em que foram propostos por Ciro Gomes. Não tenho opinião formada sobre assunto.
Só sei que, em política, a pior coisa é o ter o bode na sala.
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