O conto chinês de um ex-escravo no Brasil

 

Traficado da China e explorado dos 15 aos 17 anos no Brasil, menino volta para casa um ano após fuga de pastelaria do Rio de Janeiro.

Quem luta contra a escravidão moderna abre os olhos para que a China não seja a nova África do Brasil. Operações recentes do Ministério do Trabalho têm desvendado uma imensa e complexa rede de tráfico de pessoas desde o sudeste da China até o sudeste do Brasil. Só nos últimos três anos, 10 chineses — todos jovens— foram resgatados da exploração em pastelarias do estado do Rio. A história a seguir é uma delas.


17 de agosto de 2014

Mangaratiba, Costa Verde do Rio de Janeiro

Já era noite de domingo quando ele não suportou mais trabalhar como escravo, 14 horas por dia, todos os dias do ano. Apanhou a chave da pastelaria, o telefone celular do patrão, dono da loja, e, certamente apavorado, fugiu. A pé, sabia que não chegaria à casa de sua família, na cidade de Shenzhen, província de Guangdong, no sudeste da China. De todo modo, aquela fuga rumava sim em direção ao seu lar, dali a um planeta Terra de distância. Na primeiríssima etapa desta jornada, desde o distrito de Muriqui, onde está a pastelaria, as finas pernas de 17 anos percorreram 21 quilômetros, venceram os limites do município de Mangaratiba e encontraram dois policiais civis da cidade vizinha de Itaguaí. Com a ajuda do tradutor do Google, o menino pediu socorro.

Julho de 2015

Quadra de basquete da Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro.

A melhor bola da pelada de basquete é a dele, amarela reluzente, perfeitamente calibrada para quicar ao gosto do próprio dono. Ou seja, em movimentos fortes, sem gingado, porém com intensa paixão pelo jogo. Perdido na marcação, o chinês faz, no ataque, o tipo arremessador. Quando recebe nas laterais do garrafão, não enrola na armação da jogada, raramente passa a bola para alguém. Prefere arriscar de média distância. Numa reflexão meio tática/meio alegórica, pode-se dizer que o jovem jogador de 18 anos aproveita ao máximo a liberdade de não ter, em quadra, uma pessoa sequer que lhe obrigue ou proíba de fazer algo.

Destreinado — culpa de tantas horas gastas com desânimo e temor longe das ruas — acertou poucos dos arremessos que tentou enquanto esteve comigo, em três emocionantes sessões de peladas. Suar ao seu lado e vê-lo sorrir pela boca, assim como já fazem seus olhos puxados, valiam muito mais que os pontos.

Junho de 2012

Aeroporto Internacional Tom Jobim, Rio de Janeiro

Vergonhosas transações no saguão de desembarque internacional do aeroporto do Rio tornaram a viagem deste chinês ao Brasil um suplício. Chegou com apenas 15 anos de idade, sem família, sem dinheiro e sem falar português. Mesmo assim, venceu as barreiras imigratórias da Polícia Federal. Auditores do Ministério do Trabalho (MTE), na superintendência fluminense, creem que apenas a corrupção seria capaz de carimbar o visto de turista para nosso personagem — à época, seguramente, com feições ainda mais infantis do que as que carrega hoje, três anos depois.

O esquema de pagamento de propina para policiais federais funcionaria ali mesmo no saguão, conforme descreve o MTE em denúncia entregue ao Ministério Público Federal (MPF) no final de julho deste ano. O documento relata o depoimento de uma testemunha do esquema. Para cada chinês liberado, seriam cobrados R$ 42 mil. O pagamento, a princípio, seria realizado pelo patrão-comprador. No entanto, o senhor cobraria a conta do próprio imigrante na moeda do trabalho extenuante por dois ou três anos, sem remuneração, em mais uma flagrante prática escravocrata. Para que os agentes federais não sejam identificados, é comum, ainda segundo o documento, que os passaportes sejam extraviados ou que tenham a página com o carimbo arrancada.

O nosso personagem era o mais jovem entre os seis chineses, desconhecidos entre si, que chegaram ao Rio em um mesmo grupo naquele dia. Se todos carregam a mesma história do caçula, já haviam pago caro pela viagem a agentes aliciadores na China. Segundo relatos de chineses resgatados, cartazes espalhados pelas ruas de Shenzhen expõem as “oportunidades” de emprego no Brasil. Na nossa história, a fiadora da viagem foi a mãe da criança, uma pequena agricultora, embora não se possa ter certeza qual era sua intenção ao enviar o mais velho de seus dois filhos para tão longe, em situação tão perigosa. Talvez o desespero de uma vida pobre, talvez o engano de algum traficante de pessoas.

No aeroporto, um homem, também chinês, já esperava o grupo. Dali rumaram a uma casa, onde foram divididos em dois carros, que levaria cada um a uma pastelaria. O jovem nunca mais viu os demais, que podem estar sendo escravizados ainda neste momento.

Todos os personagens desta história até aqui — fora as vítimas e eu, como companheiro de basquete — são traficantes de seres humanos, conforme o quarto parágrafo do segundo artigo da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

“A intermediação, promoção ou facilitação do recrutamento, do transporte, da transferência, do alojamento ou do acolhimento de pessoas para fins de exploração também configura tráfico de pessoas”. Tal sentença independe do consentimento da vítima. Pouco importa se o jovem ou sua família desejavam deixar a China. Ninguém pode negociar pessoas nessas condições.

450 anos de história

Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro

Maldito poder do dinheiro que corrompe e permite que estrangeiros, inclusive crianças, sejam escravizados no Brasil. Deplorável em si, o crime ocorre justamente na cidade que mais importou seres humanos escravizados em toda a história da América — talvez em toda a história do mundo. Durante os mais de 350 anos de escravidão negra regulamentar, segundo cálculos recém atualizados pelo slavevoyages.org, os portos do sudeste brasileiro (com especial ênfase ao porto carioca, a pouco mais de 15 quilômetros de onde hoje está o aeroporto_ receberam mais de dois milhões de pessoas roubadas da África. Entre elas, imensas levas de crianças, especialmente nos anos finais de escravidão no país, quando as leis foram dificultando a chegada de escravos. Para se ter uma ideia, contando números do Brasil inteiro, entre 1820 e 1850, a porcentagem de crianças pode ter superado os 50% do total de seres humanos desembarcados como cativos no Brasil.

Felizmente, 125 anos depois, a legislação brasileira e outros diversos tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro — como o de Palermo, no ano de 2000 — proíbem o tráfico de pessoas. Infelizmente, os números da escravidão brasileira, agora ilegal, no entanto, são um mistério. A mão de obra chinesa, que se aloca em quantidade aparentemente crescente de pastelarias do Estado do Rio, está sob suspeição das autoridades trabalhistas. Os números do fluxo migratório de chineses para o Brasil no ano de 2014, fornecidos pela Polícia Federal, também sob suspeição, registram 72.470 entradas e 71.517 saídas.

18 de agosto de 2014

Itaguaí, Região Metropolitana do Rio de Janeiro

No dia seguinte à fuga da pastelaria, na sede do Ministério Público de Itaguaí, uma mulher, também chinesa, residente do país desde 1994, procurou a Promotora de Justiça da Vara da Infância e se disse tia do menino. O suposto sobrinho, segundo a suposta tia, estaria a turismo no Brasil, porém teria perdido seus documentos, o que o forçara a permanecer de maneira ilegal no país. Em relatório do Ministério do Trabalho e Emprego, os auditores prosseguem a história com as seguintes palavras: “Esclarecemos que a tia, segundo nos informou a Promotora de Justiça, estava acompanhada de um senhor que se declarou ligado à associação chinesa. Cabe apontar que a associação citada (com endereço no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro) já figura, de algum modo, em caso anterior de trabalho escravo envolvendo chineses. (…) Na ocasião (na sede do MP), frisa a promotora, a senhora sequer soube informar o contato dos genitores e solicitou autorização para visitar o adolescente na entidade de acolhimento. A autorização foi concedida, mas a visita foi acompanhada por uma assessora da promotora, que declarou que, assim que o jovem avistou a senhora, demonstrou forte temor e disse que ela não era sua parente”, registra o relatório.

Novos detalhes, descritos no mesmo documento, podem sugerir por que nosso personagem estremeceu de medo. Ainda no mesmo dia, a suposta tia retornou à sede do MP com o passaporte do adolescente, que estaria perdido, em mãos. Pior: quando ela apresentou o seu próprio passaporte, as autoridades perceberam que a data de expedição do documento da mulher (22/07/2010) era exatamente a mesma do gerente recém contratado da pastelaria. A naturalidade de ambos também era coincidente, Guangdong, no sudeste chinês. “Ao que tudo indica”, segue o relatório, “o gerente da empresa tem estreita ligação com a suposta tia do jovem, porque ambos passaportes foram expedidos na mesma data, o que pode nos fazer crer que foram juntos cuidar do documento e que se conhecem (pelo menos) desde 2010”.

O caso da suspeita tia pode parecer minúcia da história, mas é mais um dos fortes indícios que fazem a auditora do trabalho Márcia Albernaz crer que exista uma rede de tráfico de pessoas ligando China e Brasil.

“É muito grave o problema. Não se trata nem só de um crime de escravidão, é um crime de tráfico de pessoas. São agentes que estão operando lá na China em conluio com pessoas aqui no Brasil, traficando essas pessoas que ficam triplamente vulneráveis, pelos fatores econômico, geográfico e do idioma”,
diz Albernaz, com convicção.

Foto: Bruno Bou

Junho de 2012 a agosto de 2014

Pastelaria de Muriqui

Foram mais de dois anos de uma cruel exploração infantil, sem documentos e sem salário. Mais de dois anos trabalhando das 8h às 22h, sem folga, em uma pastelaria da Rodovia Rio-Santos, perto de onde o distrito de Muriqui ergue um portal de boas-vindas, a poucos metros do mar e da Serra do Mar. Em um dos anos deste suplício, conta ele mesmo, houve descanso apenas no dia de Natal. O jovem não frequentava o espaçoso salão da pastelaria, onde estavam os clientes. Trabalhava no segundo andar do prédio, na cozinha, preparando os pratos e lavando a louça, entre outras funções proibidas para jovens menores de 18 anos no Brasil. A vida de escravizado ainda lidava com o frio de poucas cobertas em um apertado alojamento, fora dos padrões estabelecidos pela lei, neste mesmo andar, dividido com outros três chineses. Não havia correntes ou trancas, violência ou tortura, pelo menos.

A “prisão” se dava pela vulnerabilidade do jovem, ingênuo, incapaz de se comunicar em português — ou mesmo em inglês ou espanhol — e sem dinheiro para comprar comida própria ou encontrar um abrigo independente de seu empregador.

As violações das leis trabalhistas prosseguiam na lanchonete com a discriminação por etnia. O patrão chinês tratava distintamente os três brasileiros dos três chineses, mesmo que todos trabalhassem na cozinha. Os orientais sofriam com a jornada exaustiva e sem registro de ponto, enquanto os nacionais trabalhavam menos e tinham formalização do vínculo na carteira de trabalho.

Como já se sabe, o caso do jovem de Muriqui não é isolado. Já são várias pastelarias chinesas do Estado do Rio de Janeiro autuadas por irregularidades trabalhistas. Muitas delas carece, por exemplo, de registro profissional adequado. No último mês de abril, o Ministério do Trabalho e o Procon-RJ fizeram operação conjunta para fiscalizar esses estabelecimentos. O nome da operação foi polêmico, ‘Yulin’, cidade da China famosa por realizar, anualmente, o maior festival de pratos com carne de cachorro. Foi uma alusão ao boato que circulou na cidade de que algumas pastelarias poderiam estar utilizando carne de cães em seus recheios. O caso do cachorro ganhou repercussão nas redes sociais e forçou a Vigilância Sanitária do município do Rio a recolher amostras para testes. Embora diversas incorreções sanitárias tenham sido descobertas — o que gerou interdições — nenhuma carne de cachorro foi encontrada.

Curiosamente, as irregularidades trabalhistas e mesmo os casos de escravidão não ganharam a mesma repercussão, embora comprovados. No acúmulo das operações, o Ministério do Trabalho descobriu que os chineses escravizados no Rio vêm de uma mesma região da China, Guangdong, uma das mais populosas do país asiático, com mais de 100 milhões de pessoas. A região, muito próxima a Hong Kong, também é conhecida como Cantão e é por isso que, em muitas pastelarias do Rio, a língua corrente é o cantonês, antes mesmo do Mandarim. Os cantoneses têm uma longa tradição emigratória para a América — especialmente, para Canadá e Estados Unidos nos séculos XIX e XX.

Já são, pelo menos, cinco casos de escravidão em pastelarias flagrados nos
últimos três anos no Estado do Rio.

O primeiro e mais violento foi descoberto em 2013, em Parada de Lucas, na zona norte da capital fluminense. Um chinês trabalhava 17 horas por dia e era agredido pelo seu primo e patrão, também da China. No hospital, apresentou queimaduras provocadas por cigarros e foi fotografado com as costas dilaceradas de tanta violência. Resgatado, ele não quis voltar para a China e, escondido, ainda leva uma dura vida para sobreviver no Brasil. O agressor foi condenado a dois anos e meio de prisão e ainda cumpre pena.

O segundo caso é o do jovem de Muriqui, reportado aqui. Em 2015, mais três casos graves foram descobertos. Em Copacabana, na zona sul do Rio, três jovens chineses que entraram no Brasil durante a Copa do Mundo revelaram que o patrão chinês, entre outras irregularidades, retinha o salário combinado e só repassava parte da quantia, sem periodicidade, o que também é ilegal no Brasil. Recentemente, no pequeno bairro de Vista Alegre, na zona norte carioca, uma operação conjunta da Polícia Rodoviária Federal, do PROCON, do Ministério Público do Trabalho e do Ministério do Trabalho e Emprego, constatou um empregado que trabalhava em um ambiente de flagrante “degradância”, explorado por jornada exaustiva. Não havia comprovação da quitação de salários — o que indica a servidão por dívida. Também na zona norte, a última operação, revelada nessa semana, descobriu quatro chineses — uma mulher e três homens de 20 a 27 anos — em condições análogas à escravidão. Parte dos salários era retida pelo dono da pastelaria, também chinês. Além disso, todos viviam num alojamento sobre o estabelecimento, sem condições de higiene.

Não há dados oficiais que apontem quantas pastelarias chinesas existem hoje na cidade do Rio, mas o número é estimado pela Vigilância Sanitária em 150. Não existem pastelarias na China.

Algo que também tem chamado atenção na investigação do MTE é que, em muitos casos, os donos formais dessas pastelarias — na maioria, chineses — também sofrem com as baixas condições de trabalho, ao dormir em alojamentos e ter pouco dinheiro para si. Parte deles não consegue nem mesmo se comunicar em português. O dono de uma pastelaria em Vila Isabel revelou que não consegue ficar com dinheiro algum após pagar, mensalmente, R$5 mil para quem estaria arrendando o ponto. Estive em uma das audiências no MTE onde as autoridades pediam explicações para este dono sobre a irregular condição de outros dois chineses. Sem tradutores na sala, era quase impossível compreendê-lo. É difícil acreditar que este chinês teria capacidade administrativa de liderar um empreendimento comercial no emaranhado da burocracia brasileira. Os fatos levam a crer que há auxílio de brasileiros no esquema. Neste caso, por exemplo, os chineses foram acompanhados de um brasileiro que se dizia “amigo” do chinês, mas que não sabia nem mesmo dizer o nome do estrangeiro.

A suspeita é que os donos dos estabelecimento também possam estar sendo explorados, embora em uma posição hierárquica superior a dos pasteleiros e salgadeiros. Não seria o caso do dono da pastelaria de Muriqui, reportada nesta matéria. Ele, chinês residente no Canadá, segundo mais uma vez o Ministério do Trabalho, tem em seu nome mais de uma dezena de estabelecimentos como esse.

Os indícios supõem uma complexa organização, portanto. Em um caso em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, os auditores do MTE disseram que chineses fugiram em uma camionete luxuosa após a chegada da fiscalização.

Novas ações que poderiam vir a desvendar outros casos de escravidão estão suspensas. Os auditores do MTE, personagens centrais de todas essas descobertas, estão em greve desde a metade de agosto. Cobram, entre outras coisas, melhores condições de trabalho e aumento de salários.

Procurado para falar sobre os casos em pastelarias, o Consulado-Geral da China na cidade do Rio de Janeiro pediu para a reportagem procurar a Embaixada em Brasília, que, por sua vez, pediu para entrarmos em contato com o Consulado. Autoridades e ativistas de organizações que protegem os chineses recuperados de regimes de escravidão relatam que não há auxílio dessas duas entidades na proteção ou na investigação dos casos.

Agosto de 2014 a fevereiro de 2015

Abrigo de Itaguaí, Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Não demorou para que, logo após a fuga, o jovem chinês — pelo menos, oficialmente — fosse protegido pelo Estado brasileiro. Como indica a Consolidação das Leis do Trabalho, o trabalhador resgatado da escravidão, mesmo sem formalização anterior, assinou a Rescisão de Contrato. Uma carteira de trabalho foi expedida em seu nome, além da guia de recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Um novo passaporte, emergencial, também foi expedido. De uma hora para outra, de escravo, ele passou a ser um imigrante formalizado e legalizado. Tão importante quanto tudo isso — por requisição do Ministério do Trabalho e do Ministério Público Estadual — uma conta judicial foi aberta em nome do jovem, para onde uma boa quantia — referente a todo o tempo trabalhado — foi transferida por parte do empregador. O dinheiro, no entanto, demoraria ainda muitos meses para ficar à disposição de seu dono.

O chinês, ainda menor de idade, foi encaminhado então ao pequeno abrigo de jovens da cidade de Itaguaí. A ONG Movimento Humanos Direitos, reconhecida pelo trabalho do padre Ricardo Resende, que também coordena, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo, se aproximou do caso. O padre e sua equipe, especialmente uma arquiteta, também engajada na ONG, viraram o que mais próximo podemos chamar de uma família brasileira para o jovem. Mensalmente, a mulher visitava o menino no abrigo. No fim do ano passado, não aguentou de dó e o chamou para passar o Natal com sua família, na zona sul do Rio.

Os dias passavam demoradamente no abrigo. Quem tinha algum contato com ele — como os auditores do MTE, alguns servidores da Secretaria de Direitos Humanos do Governo do Rio e, especialmente, os ativistas da ONG — relatavam que uma depressão poderia estar o acometendo. Sem CPF e uma conta bancária própria para onde o dinheiro em juízo poderia ser depositado, a estadia do jovem no Brasil se arrastava na burocracia e no despreparo do Governo do Estado do Rio em lidar com a situação incomum. Para piorar, quando, em fevereiro, chegou ao seu décimo oitavo ano de vida, o jovem foi obrigado a deixar o abrigo, exclusivo para menores.

Em uma audiência formal, liderada pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio (SEASDH-RJ), acompanhada por uma tradutora juramentada, o jovem chinês, agora maior de idade, subscreveu sua vontade de encerrar sua lamentável viagem ao Brasil e retornar para a casa de sua família na China. A operação, todos sabiam, seria perigosa. Era preciso guardar sigilo para evitar que alguém do esquema o abordasse na saída do Brasil ou na chegada na China. Para isso, segundo Miguel Mesquita, da SEASDH-RJ, a Polícia Federal e mesmo a Interpol estariam encarregadas de levar o chinês até a porta de sua casa em Shenzhen. Agora, com o documento assinado, era preciso “apenas” aguardar os trâmites bancários para garantir que o jovem voltasse para a China não apenas com os traumas da escravidão, mas também com um bom dinheiro para começar uma nova vida por lá.

O destino natural da espera era o abrigo para adultos de Itaguaí, dividindo o espaço com tantos outros graves problemas sociais brasileiros. Foi o limite para a ativista da ONG. Enquanto ele permanecesse no Rio, seria no espaçoso apartamento dela, em Ipanema, que o chinês viveria.

Fevereiro a agosto de 2015

Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro

Foi nesse imóvel, muito perto de onde Tom Jobim escreveu Garota de Ipanema, que fui recebido pela a arquiteta e ativista da ONG e pelo meu novo parceiro de basquete, embora eu tenha tentado começar nossa relação pelo futebol.

Prazer, nice to meet you…. — tentei.

– Ih, não adianta… como seria bom se ele falasse inglês! — desencorajou-me a dona da casa, pedindo licença por dois minutos e me acomodando na ampla sala, embelezada por livros e fotos de Sebastião Salgado e repleta de obras de arte de muito bom gosto.

Era a primeira vez que eu apertava a mão de um ex-escravo e isso me angustiava o peito. “Futebol?”, perguntei, apostando na capacidade amistosa do esporte, na universidade da palavra e na força da mímica que me ajudava ao chutar uma bola imaginária.

– Basquet!! — ele exclamou, apontando para uma bola da Nike que repousava perto de seus pés. Educado, risonho, fechou o laptop, pegou a bola nas mãos e se juntou a mim na sala.

Quando a arquiteta voltou, ainda antes de esmiuçar seu altruísmo, logo mostrou cansaço com a jornada.

– Você já viu Um conto Chinês? É aquilo! Só que eu não sou tão mal educada quanto o cara do filme, mas tô quase ali.

– Você fala do filme argentino, né? Um que conta a história de um chinês que caiu do céu?

– É muito bom, é muito bom. E é o que tá acontecendo! Burocracia! Quando você faz a coisa direito, um ano….

A arquiteta se referia a demora para conseguir embarcar seu “afilhado” de volta para a China. Sempre criticando o despreparo das autoridades brasileiras — especialmente, as fluminenses — em lidar com o caso, contou que “foi uma vitória” conseguir resgatar o dinheiro do FGTS, depois de seis idas ao banco, mas que persistia a ingrata batalha de abrir uma conta num banco internacional para que o dinheiro pudesse ser resgatado por ele lá na China. No momento em que conversamos, já fazia 11 meses que o jovem havia fugido da escravidão. Durante uma longa entrevista, ela, que já havia auxiliado o chinês torturado pelo seu primo em Parada de Lucas, relatou mais detalhes do que sabe sobre a realidade dos escravos chineses no Brasil.

– Normalmente, as pessoas se endividam para comprar essas passagens para o Brasil. A proposta é vir trabalhar duro por três anos. E depois você vai estar livre.

– Trabalhar duro significa não receber?

– Não é só não receber. Trabalhando duro, 14h-16horas por dia. Ele mesmo trabalhou dois anos seguidos. Só folgou uma vez, num 25 de dezembro.

– Isso ele mesmo conseguiu falar para você?

– Ele falou. E muitos não aguentam ficar três anos assim. Ou a pessoa entra em depressão ou pira ou mata o chefe, foge, se mata. E ele fugiu, dois anos e pouco depois. Depois, houve uma reunião. Miguel (SEASDH-RJ-RJ) estava, eu estava e mais uma tradutora juramentada, tudo direitinho. Explicamos para ele a situação. ‘Você sabe o perigo que você corre aqui no Brasil? Você sabe o perigo que você corre chegando lá? Você sabe qual perigo sua mãe pode correr se ela pegou esse dinheiro emprestado? A gente vai te levar até lá, depois não sabe o que vai acontecer. Não quer ficar no Brasil?’ ‘Não quero ficar no Brasil’, disse ela, como se fosse ele.

Como o jovem decidiu por ir embora, também fez questão de não aprender o português. Segundo hipótese de algumas das pessoas da rede de apoio, pode ser para evitar memórias brasileiras. O fato dificultou a relação dos dois dentro de casa. No dia em que estive lá, a arquiteta estava nervosa para deletar softwares chineses que o jovem instalou em seu computador, reclamava sentada no escritório, embora com uma imensa complacência no olhar.

A comunicação se dava pela internet, portanto. Um aplicativo de chat chinês, o QQ, ajudava na tarefa, traduzindo o que o menino escrevia em chinês para ela. Quando não se entendiam, usavam emoticons, aquelas figurinhas dos teclados. Ela riu alto ao me mostrar a mensagem de um raro pedido dele para andar de bicicleta na lagoa. Na maioria dos dias, ele ficava em casa. Não curtia a praia que podia ver da janela, não tinha amigos de sua idade. “Para ser sincera, de abril para cá, ele só saiu uma vez sozinho”. Foi a deixa para eu tentar me comunicar por mímica com o menino, que estava sentado ao meu lado, possivelmente, curioso com a nossa conversa.

– Nadar? Gosta? — tentava perguntar, ao dar braçadas imaginárias e fazer positivo com o dedão.

– Não!! — balançou ele com a cabeça e os olhos esbugalhados.

– Basquete? Sim?

– Positivo!! — animou-se!

Naquele momento, fui rapidamente forçado a refletir sobre meu papel como jornalista naquela sala. Deveria utilizar o aplicativo para entrevistá-lo sobre sua triste história no Brasil ou para falar sobre o basquete, provavelmente, único interesse em comum entre a gente? Escolhi a segunda opção. Descobri que ele era torcedor do Houston Rockets (equipe do primeiro e mais famoso chinês na história da NBA, Yao Ming). Jogava basquete na escola, desde os cinco anos de idade. Mais umas perguntas para lá, respostas não entendidas para cá, e o aplicativo me trouxe a mais forte das mensagens do que veio a ser quatro semanas de algum contato em quadra e no QQ, justamente as últimas dele no Brasil:

– Eu amo jogar basquete!

Foto: Bruno Bou

A frase me deu um soco no estômago. Ex-escravo, 18 anos, sem amigos no Brasil, ainda conseguia dizer que amava algo. Não havia mais o que fazer naquela sala. 20 minutos depois, já estávamos dividindo a quadra mais próxima dali com todos os tipos de cariocas basqueteiros. Conseguimos trocar algumas palavras em português, mas como não estava mais claro o que era reportagem e o que era amizade, deixo suas respostas fora daqui.

No dia seguinte, repetimos a pelada. Dessa vez, ao fim da sessão, o menino, todo suado, era esperado por Vera Araújo, repórter dO’ Globo e Cezar Loureiro, fotógrafo, que estavam acompanhados da arquiteta, a tutora informal do jovem. A pauta emplacada fora “sugestão” da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, que estava interessada em promover a Semana Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas e, claro, se promover também, como fica claro no texto da matéria, que trouxe em sua manchete “Chinês que trabalhava como escravo em pastelaria de Mangaratiba vai voltar para casa”.

A matéria foi publicada justamente no dia em que estava marcado o voo de retorno, justamente no dia em que a secretaria fluminense participaria em Brasília de cerimônia alusiva ao combate ao tráfico de pessoas. Foi uma coincidência de fatores — ou uma jogada de marketing — de gosto duvidoso, até porque o menino, embora já tivesse agora uma conta bancária própria, ainda não tinha o cartão do banco para manejar seu dinheiro lá na China. Afobada, a secretaria queria assinar uma procuração que deixaria para uma funcionária do órgão a responsabilidade de exigir do banco, aqui no Brasil, a remessa prometida do cartão para sua casa na China. Os ativistas da ONG não concordaram com a situação absurda e fizeram o jovem voltar para casa, já com as malas prontas. Seria a última decepção dele no Brasil.

Justamente nesses derradeiros momentos, eu deixei o Rio, mas, nos dias seguintes, o fotógrafo Bruno Bou também teve uma relação intensa com nosso frágil herói.

Conta Bruno:

“Na segunda vez que eu o encontrei, já não achava que seu suor, pelo seu passado, era diferente do meu. Jogamos basquete e, neste novo dia, já não era impossível acertar um arremesso de três pontos. Nesta vez, se é verdade que perdemos a partida de dois contra dois, foi escutando música pop chinesa que ficamos felizes.

Cansados e com fome, pedalamos até sua casa. Enquanto ele subia e deixava suas coisas, eu comi algo na padaria. Já tinha o convencido a ir a praia. Tinha cismado em levá-lo, talvez por acreditar que uma pessoa a uma quadra da praia deva se banhar todos os dias. Ele mal sabia nadar e, aliada a essa insegurança, um espaço de grande circulação possivelmente lhe assuste também.

Convencê-lo — nem em cantonês, nem em mandarim, nem em português — foi difícil. Eu lhe prometi ensinar o surfe de peito, o jacaré, quando me disse que podia nadar. O mar estava forte. Se quisesse fazer as fotos dele no mar, em um ambiente símbolo da democracia e da liberdade, devíamos mergulhar enquanto nossos corpos estavam quentes da atividade física. E assim fomos. Rimos e cansamos. Ele não conseguia sair da arrebentação, eu não podia me desgrudar dele, mesmo que ainda déssemos pé…

…Agora ele já está em casa. E eu torço que o oceano que banha sua cidade por lá inspire a liberdade do rapaz. Todos merecem. Do Brasil a China”


* O nome do menino, da arquiteta que o protegeu, dos donos da pastelaria e das próprias pastelarias foram mantidos em sigilo por questão de segurança — tanto deles, quanto do repórter. A Procuradoria da República, da seccional do Rio de Janeiro, confirma que existe uma investigação em andamento sobre o tráfico de chineses para o Brasil, mas prefere manter o caso em sigilo. Que façam um bom trabalho, que descubram todos os envolvidos e que a escravidão desapareça deste e de outros países.

 

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

Na frequência do ódio

Na frequência do ódio

O Café com Muriçoca, que passa a ser toda quinta-feira, reflete sobre a perseguição política e o cerceamento ideológico a quem rejeita a riqueza como estilo de vida aceitável.

As crianças e o genocídio na Palestina

As crianças são as mais vulneráveis, além de constituem metade da população que compõem a Faixa de Gaza, território considerado a maior prisão a céu