Governo responde à nova onda de “arrastões” na Zona Sul do Rio com a mais manjada e politicamente rentável das medidas: uma megaoperação de policiamento nas praias mais famosas do Rio de Janeiro.
Imprensa e boa parte da população adoram, e Polícia Militar do Rio termina a semana — em que é suspeita de ter matado uma criança de 11 anos com um tiro na cabeça — com prestígio em alta.
Em outro caso lamentável, policiais simulam disparos de um jovem desfalecido, mas nada não deve abalar o prosseguimento da operação de guerra que garante a “paz” na orla sagrada da cidade.
Ao chegar em Copacabana de carro, vencendo o funil que a blitz da Polícia Militar provocava, um homem com pouco mais ou pouco menos de 40 anos abriu a janela, jogou seu branco corpanzil para fora e vibrou em direção a um PM:
Cacete neles!.
‘Eles’, no caso, eram uma dupla de jovens pobres que desafiaram o noticiário da semana e tentaram chegar à Zonal Sul do Rio de Janeiro a bordo do “Inferno do Rio” — como é chamada, nessa página do Facebook, a linha 474, que ousa sair do Jacarezinho, na Zona Norte, em direção às mais visitadas praias do Brasil, Copacabana, Arpoador, Ipanema e Leblon. ‘Eles’, para radicalizar ainda mais o enredo, quase cumpriam a rigor — não fossem suas Havaianas nos pés — o perfil de suspeito descrito pelo governador Luiz Fernando Pezão três dias antes:
Se tiver um ônibus com adolescentes vindo, que não pagaram passagens, estão descalços, de bermuda e sem documento, leva para a delegacia e os pais vêm buscar” — Governador Luiz Fernando Pezão
Ao menos dessa vez, os policiais não seguiram as ordens do chefe e liberaram os dois jovens a voltar para o ônibus, sem sequer perguntar ao motorista se haviam pago a passagem — que, aliás, nem haviam pago mesmo. Pouco importaria mais essa detenção. O enxame de quase mil policiais que invadiu as praias oceânicas da Zona Sul do Rio — e promete só sair de lá quando o verão terminar — deixou claro o recado do Governo. Um recado politicamente bem elaborado e maravilhosamente bem difundido — não pela assessoria de imprensa oficial do Palácio Guanabara ou da PM, mas sim por seus braços indiretos, ainda mais potentes, os telejornais cariocas.
No domingo à noite, o Fantástico, da TV Globo, carregou as tintas para mostrar que a polícia havia recuperado para si o controle da região mais prestigiada da cidade.
Repórter Paulo Renato Soares: A maior preocupação de quem foi à praia hoje era o mar. As ondas podiam provocar mergulhos inesperados, mas o susto parou por aí. Agentes da Prefeitura, policiais… A praia estava bem vigiada hoje. E como não foi um dos domingos mais quentes, os banhistas puderam ter um dia tranquilo na areia. Segurança reforçada… nas ruas, no calçadão, do alto (imagem de um palanque construído pela PM sobre o calçadão na praia do Arpoador), de mais alto (imagem de um helicóptero da PM patrulhando a região).
Entrevistada 1: Me senti mais segura. Me senti bem mais segura que nos outros dias.
Entrevistada 2: Tava muito feia a coisa. Hoje tá tranquilo, tá ótima a praia, hoje tá perfeito.
Repórter: Mas muita gente deixou de ir à praia.
Entrevistada 3: Nem parece domingo. Acho que todo mundo ficou com medo, né?
Repórter: Cariocas e turistas gostaram de ver a praia cheia de policiais.
(imagem de 4 PMs, um deles carrega uma metralhadora a tiracolo).
A reportagem — que, tamanha a importância da pauta, se utilizou de dois repórteres — não apenas celebrava a megaoperação da PM, mas também se aproveitava dela para inovar. Em uma flagrante colaboração Globo/PM, o segundo repórter, Carlos de Lannoy, era filmado pelo helicóptero do órgão público, que, na relação ganha-ganha, por sua vez, permitia que o canal recebesse as imagens dentro de uma unidade móvel instalada ao lado da estátua de Tom Jobim e, assim, reverberasse para o país inteiro — e pela Globo Internacional — o maciço investimento policial do Governo do Estado do Rio de Janeiro na operação.
No total, 700 PMs e 300 Guardas Policiais. E a impressão era de ainda mais. O paraíso estava, pois, seguro outra vez.
“A História se repete. A primeira vez, como tragédia, a segunda (e todas as demais), como farsa.”
Jornal O Globo (19/02/1992)
Há 23 anos, o termo “arrastão” ainda levava precavidas aspas como acompanhamento obrigatório. No novo século, as aspas caíram e a expressão virou palavra oficial, trunfo para uma boa manchete, uma espécie de patrimônio imaterial da imprensa carioca. É praticamente a única diferença da cobertura dos principais jornais da cidade desde então.Tanta semelhança permite que você acompanhe boa parte desta tensa semana do fim de setembro 2015 através da sequência de manchetes e fatos de uma outra tensa semana, em outubro de 1992.
Banhistas se revelaram “revoltados” em 92, assim como em 2015. Uma moradora de Ipanema reclamou: “estão expulsando a gente da praia. Não se tem o direito de usufruir o que se paga”. Outra moradora propôs uma“ação mais enérgica da PM contra os arrastões”. Em resposta ao jornal (e à zona mais prestigiada da cidade), em 92 e em 2015, a PM prometia novas atitudes. Ou seja, mais polícia. Naquele ano, “110 homens entre Leme e Copacabana e 120 na faixa entre Ipanema e São Conrado”.
Em 1992, “veja só”, a PM mandava seus recados pelos jornais: “O objetivo é disciplinar o movimento de passageiros nos pontos finais da linhas, ainda no subúrbio”, disse o coronel Adílson Fernandes. Mais uma “coincidência” entre 92 e 2015: ter dinheiro na carteira passou a ser obrigatório para circular pela cidade.
Como nesta semana de 2015, naquela semana de 1992, ‘lutadores da Zona Sul’ prometeram criar uma milícia antiarrastão. No jornal daquele ano — hoje nas redes sociais — jovens negros da periferia “faziam o desafio” de ir à praia do mesmo jeito, em bonde. Também em 1992, as autoridades evitavam corroborar a tática da justiça com as próprias mãos. Mas, de qualquer maneira, se mostravam corteses com os grupos: “a Polícia Civil vai convocar os lutadores de artes marciais da Zona Sul para uma reunião”.
Não bastassem as similaridades entre as manchetes e as atitudes da polícia pós-arrastão de 1992 e de 2015, ainda havia mais. Exatamente uma semana após àquele e a este domingo, o forte esquema de segurança era saudado com pompa pelos jornais cariocas.
Em 1992, as confusões na praia ocorriam num contexto político importante. Benedita da Silva, do PT, liderava as pesquisas para o segundo turno da Prefeitura da Capital sobre o candidato César Maia, então no PMDB. Foi quando outra manchete d’O Globo de outubro de 1992 pode ter mudado este jogo, deixando explícita a diferença de opiniões entre os dois.
Conta a história que após os “arrastões”, César Maia virou as tendências e derrotou Benedita. Assim como conta a história que a solução militarista derrotou a“atenção do poder público para os problemas sociais”,defendida pela petista. César Maia se reelegeu outras duas vezes.
Em 2008, Eduardo Paes (PMDB) venceu Fernando Gabeira (PV) e, em 2012, Marcelo Freixo (PSOL) para se tornar prefeito do Rio. O mais recente capítulo desta história registra que, em setembro de 2015, Paes disse:
“Nós não vamos tratar deliquentes e marginais, que vão para as ruas fazer baderna, como problema social. É um problema de segurança pública.” — Eduardo Paes
Muito embora tenham sido eles os prefeitos da cidade em 19 dos 23 anos desde então, não se pode jogar sobre as costas de César Maia e Eduardo Paes todo o fracasso deste roteiro. Esta história é ainda mais antiga e entendê-la profundamente nos obriga a visitar tempos muito mais remotos.
Oque é a Zona Sul do Rio? Quem é a Zona Sul do Rio? Pergunto sobre uma específica Zona Sul — não sobre aquela onde ainda resiste a pobreza e a violação de direitos fundamentais, mesmo depois das UPPs na Rocinha, no Vidigal, no Pavão, no Cantagalo, no Dona Marta, na Babilônia e de outros. Pergunto sobre aquela Zona Sul mágica, a que inspira os músicos, poetas, novelas, que encanta turistas, cariocas e, claro, a mídia carioca. Pergunto na esperança de entender por que aqui (de onde escrevo, aliás) há abundância de linhas de ônibus, que funcionam inclusive nos fins de semana, inclusive durante as madrugadas. Por que é aqui — e em nenhum outro lugar — que o metrô está sendo expandido? Por que é aqui que existem mais garis, mais fiscais da Comlurb, mais ruas asfaltadas (algumas delas, duas vezes ao ano)? Por que aqui o mar é menos sujo? Por que aqui a iluminação dos postes é mais forte? Por que há mais estações de BikeRio? Por que aqui a PM é mais presente? Por que aqui ela é menos truculenta e menos assassina? Por que aqui há arrastões? Por que aqui eles chocam mais?
O processo que hoje oferece tantos privilégios à Zona Sul está estritamente ligado ao processo que fez das praias — primeiro, num conceito geral e, depois, mais especificamente, das praias oceânicas da Zona Sul (Leme, Copacabana, Arpoador, Ipanema e Leblon) — o símbolo máximo de um país bonito, rico, jovem, transgressor e encantador.
Para entender esses dois processos, vale ler a íntegra o artigo A praia carioca, da colônia aos anos 90, da socióloga Patrícia Farias, de onde vou destacar diversos trechos e grifá-los, inclusive mantendo os títulos dos subcapítulos escritos por ela.
A praia no tempo da conquista e da colônia: luta, mercado e cemitério
(por Patrícia Farias)
“Cenário do primeiro contato entre colonizador e colonizado no Brasil, a praia também representou o primeiro passo da guerra que se travou entre ambos. Primeiro espaço de encontro entre diferenças culturais e de cor, foi a praia também o primeiro espaço de luta. O litoral funcionou ainda, nesse primeiro período, como local da efetivação do processo de exploração do território recém-descoberto, através do seu uso para embarque de matérias-primas variadas para a Europa. Nos primeiros séculos da colonização, a orla marítima passa gradativamente também a se referir àquilo que já foi dito por Gilberto Freyre em Sobrados e Mocambos: um depósito de corpos de escravos mortos. É ele quem narra, com requintes cinematográficos:
“Os urubus vinham (…) pinicar os restos de comida e de bicho morto e até os corpos de negros que a Santa Casa não enterrava direito, nem na praia nem nos cemitérios (…) a maré subia e lavava a imundície das praias.”
Para Freyre, portanto, a “fidalguia” da terra se abstinha de ir à praia, e os negros eram os freqüentadores por excelência desse espaço do lixo. (…) Esta visão nada positiva da orla marítima parece casar com o que nos informa o estudo do historiador Alain Corbin a respeito do imaginário europeu sobre a praia no período anterior a 1700. Pelo que nos narra Corbin (1989), a praia europeia só será efetivamente ocupada por banhistas no século XVIII — e mesmo assim com fins terapêuticos. (…)
Século XIX: tudo muda
Um extraordinário salto de qualidade se opera no século XIX, em relação à imagem da praia no Brasil. O fato é que os próximos registros sobre seu uso estão relacionados à saúde e ao tratamento terapêutico. Nessa ascensão do modelo terapêutico de praia, a aristocracia tem papel fundamental. É ela quem, na Europa, legitima os locais onde o banho curador se dará. (…)
O panorama geral europeu, enfim, na virada do século XVIII para o XIX, possivelmente, influencia a decisão de D. João VI, que chega ao Brasil em 1808, vindo justamente da Europa, de tratar a doença de pele que o atinge com banhos de água salgada, instalando para isso umaconstrução na Praia do Caju, em 1817. Isso favorece a hipótese de uma passagem gradativa da praia como depósito de excrementos e locus de trabalho a balneário médico a partir da chegada da família real ao Brasil. Outras pistas ajudam a tornar menos incompleta essa transformação do uso da praia ao longo do século XIX. A primeira delas é dada pela presença do cenário do litoral em alguns romances brasileiros escritos no período, o que invoca a ideia de que a praia se tornara ao menos familiar para outros segmentos sociais que não os escravos. Em A moreninha(1845), de Joaquim Manuel de Macedo, por exemplo, encontraremos como pano de fundo do primeiro encontro dos protagonistas Carolina e Augusto, então crianças, “uma das belas praias do Rio de Janeiro”. (…)
Já na virada do século XIX para o XX, a expansão da malha urbana do Rio, através do aperfeiçoamento de sua rede de transportes, também reconfirma a nova situação da praia como algo saudável, não mais como perigo ou sujeira. Com sentidos e funções diferentes, vão entrando em cena bondes e trens; os primeiros, garantindo a expansão da cidade para a Zona Sul litorânea, e os segundos deslocando a população de trabalhadores de suas moradias no centro da cidade para os subúrbios. Começa aí a construção, tanto simbólica quanto espacial, daquele que seria eleito o lugar edênico da cidade: a Zona Sul.
Nesse sentido, é de fundamental importância a total remodelação urbana promovida no início do século XX pelo Prefeito Francisco Pereira Passos na cidade do Rio, capital federal, com o estímulo e sob o patrocínio do então presidente Rodrigues Alves. (…) Num esforço de síntese, os objetivos primeiros das obras seriam a reforma do porto; a construção das avenidas Rodrigues Alves e Central (atual Avenida Rio Branco); a melhoria de acesso à Zona Sul da cidade, através da criação da Avenida Beira-Mar; melhoramento do acesso à Zona Norte por via da abertura da Avenida Mem de Sá e do alargamento das ruas Frei Caneca e Estácio de Sá; a pavimentação da cidade e, de modo mais geral, a ampliação da infra-estrutura urbana.
Para a conquista destes objetivos, o poder público utilizou-se do método da demolição de áreas densamente povoadas, localizadas na região central do Rio, expulsando mais de 14 mil pessoas de suas residências — cortiços e outras formas de habitação popular.
A Zona Sul nas primeiras décadas do século XX
Nesse quadro, um novo deslocamento passa a ocorrer: o centro do Rio, pensado a princípio pelos mentores da nova ordem como o espaço valorizado por excelência, vai sendo identificado com o passado colonial e perdendo gradativamente seu valor em favor de uma área a rigor nova. Esta área, a Zona Sul da cidade, se torna a representação da modernidade. Dentro dela, um lugar especial cabe à praia. No entanto, agora a praia não é mais aquela ligada ao terreno primeiro da colonização, ou seja, à orla da Baía de Guanabara. (…) Nesse momento — início do século XX — , quando se fala em praia, subentende-se a praia oceânica, que cada vez mais será iconizada por Copacabana, então um terreno virgem associado à saúde, ao moderno e ao belo. (…)
Gideon Bosker e Leria Lencek (que escreveram um estudo sobre a praia em 1998), lembram que é uma estilista, Coco Chanel, quem lança, nos anos 20, o bronzeado como “moda”, aparecendo “com a cor de um marinheiro” nos mais altos círculos europeus. (…) Neste sentido, este “culto ao moreno” acabará tornando esta cor um sinal de distinção, um exercício que marca corporalmente aqueles que têm tempo e dinheiro disponíveis para se bronzearem. (…)
Copacabana se torna o local da saúde, símbolo da nova ilação que se desenvolvia a lépidos passos, sem os entraves que áreas mais antigas da cidade, com população e problemas já tradicionais, ofereciam aos novos ideais de beleza e modernidade acionados pelo Estado e segmentos dominantes.
Tais segmentos afluem então a Copacabana e se dedicam a construir suas mansões a partir dos mais variados estilos. A preocupação com o bairro se traduz numa série de obras(…).
Em 1892, por exemplo, inaugura-se o Túnel Velho, oficialmente chamado de Alaôr Prata, que liga a área mais antiga de Botafogo, próxima ao cemitério São João Batista, à rua Siqueira Campos, em Copacabana. Em 1906, no final do governo de Pereira Passos, o Túnel Novo amplia o raio de ocupação possível do bairro, ligando Botafogo ao Leme e completando o movimento sugerido pela criação da Avenida Beira-Mar, ou seja, de saída do centro da cidade em direção a Copacabana.
O mesmo prefeito é responsável pelo início das obras da Avenida Atlântica, que margeia a praia copacabanense ícone máximo da Copacabana residencial e aristocrática das primeiras décadas do século XX, o Hotel Copacabana Palace abre suas portas em 1923 para abrigar a elite europeia visitante.
Mas será após a Segunda Guerra que a representação de Copacabana ganhará novos contornos. A partir daí, a vertente francesa que presidira a urbanização à la Pereira Passos do início do século na cidade do Rio será substituída pela direta influência de outro modelo: o americano. Produtos norte-americanos invadem o mercado nacional e seus comerciantes encontram em Copacabana o cenário ideal de vendas. O bairro assiste à inauguração do primeiro supermercado da cidade, do primeiro Bob’s, inaugurando a era do fast-food, além de uma variedade impressionante de itens de consumo(…).
No próximo capítulo de seu artigo, O espaço demarcado: a dicotomia Zona Norte/Zona Sul, Patrícia Farias usa e comenta um trecho de uma reportagem da revista O Cruzeiro do começo da década de 1950.
“Em Copacabana vale tudo e quase não existem comadres para falar da vida alheia. Uma garota da Tijuca, se fizesse a metade das travessuras que faz um brotinho do Posto 5, seria banida do lar. Mas o mar, o grande nivelador, garante a mão. As mulheres podem andar de ‘slack’ e fumar na rua sem que ninguém se volte para olhar. Os homens empurram carrinhos de criança com britânica naturalidade. E o amor é livre, no bom sentido. Jovens casais têm o direito de passear agarradinhos, sem que ninguém ache feio”. (Revista O Cruzeiro)
Para além da definição subliminar dos papéis de gênero, através da insinuação dos usos e gostos proibidos a homens e mulheres no Rio da época (início dos anos 50), mas que são “liberados” na praia, insinua-se aí também a diferença entre a “garota da Tijuca” e o “brotinho do Posto 5”.Volta à cena, mais nitidamente delineado, o perfil do personagem suburbano, como o morador de um espaço onde a liberdade individual e a moral estão mais rigidamente limitados. Num movimento duplo, define-se também o morador da Zona Sul, através da oposição tradicional — associado ao subúrbio e seus habitantes — e moderno, identificado com quem mora perto da praia.
Em As turmas de jovens, a socióloga relata como os jovens da camadas médias e altas “passam a utilizar a praia como sinal de diferenciação em relação ao comportamento adulto”. Neste mesmo capítulo, ela ainda descreve a Ipanema da metade do século através de uma entrevista de Tom Jobim,criado no bairro: “Enquanto Copacabana era lugar de casas luxuosas, Ipanema era um lugar de casinhas pequenas. Quem não podia comprar casa em Copa, vinha pra cá, porque era mais barato e mais longe. Principalmente mais longe”,disse Tom. Segue Patrícia:
“A praia portanto começa a se bifurcar a partir deste momento — a metade do século — em duas pontas, Ipanema e Copacabana, passando gradativamente a primeira a crescer em importância diante da segunda”.
Em Corpo dourado e morenidade, Patrícia escolhe três músicas para descrever um novo movimento capaz de tornar a Zona Sul ainda mais irresistível. A região se torna a musa inspiradora dos compositores da Bossa Nova.
Braguinha e Alberto Ribeiro lançam, em 1947, a música Copacabana,famosa na voz de Tom Jobim:
“Copacabana, princesinha do mar
Pelas manhãs tu és a vida a cantar”
Em 1954, Tom Jobim e Billy Blanco registram na letra de Teresa da Praia:
– Arranjei novo amor no Leblon
– Não diga
– Que corpo bonito, que pele morena, que amor de pequena, amar é tão bom
– Tão bom! Ô Lúcio
– Fala, meu irmão
– Ela tem um nariz levantado, os olhos verdinhos, bastante puxados, cabelo castanho…
– E uma pinta do lado…
Por fim, a derradeira Garota de Ipanema, de 1962, de Tom e Vinícius.
“Moça do corpo dourado do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema”.
Completa Patrícia: “O corpo dourado, agora literalmente cantado em prosa e verso, se torna a encarnação dessa Zona Sul livre, moderna, consumista e chique.
O corado transforma-se em ouro, numa referência nem tão casual a um certo status sócio-econômico, onde a cor morena funciona como marca de distinção em relação aos não-habitantes do paraíso Zona Sul, aos não-morenos”.
No capítulo Anos 60: Ipanema reina, o estudo demonstra como este bairro torna-se, além de tudo o que já vimos, o epicentro de um comportamento transgressor dos costumes nacionais. Uma vertente brasileira do movimento hippie, por exemplo, estabelece point “nas dunas do barato”. Emerge naquelas areias ainda a mulher moderna, encarnada em Leila Diniz, que se mostra em fotos com a barriga grávida. Fernando Gabeira, retornando do exílio vai à praia de tanga lilás “detonando uma discussão via mídia sobre modelos de masculinidade e preferências sexuais”.
Ipanema toma de Copacabana a vanguardia comportamental e encarece. Copacabana, assim, torna-se o destino possível e sonhado por tantos cariocas, “que a encaravam como um signo de mobilidade ascendente”, nas palavras da socióloga Patrícia Farias, que prossegue: “É a partir dessa imagem que pessoas provenientes de outras regiões da cidade e do país afluem ao local, auxiliadas pela especulação imobiliária que constrói a partir dos anos 50/60 os agora famosos prédios de conjugados, quitinetes, sala e quarto”.
O rock Suburbano do Zé da Gaita descreve perfeitamente o movimento.
Vou vender minha casa lá no Sampaio
vou trazer a negra, o nenê e o papagaio
vou viver numa boa, junto com os bacanas
Adeus Padre Miguel, Honório Gurgel,
adeus Japeri, Vila Rosalia
Zona Sul, vou gozar, a vista pro mar
Trabalhador suburbano, chego tarde em casa
bem depois do jantar
não dá mais tempo pra mar, ai-ai
Vou botar bangalô a luz do luar
ser parte integrante desta paisagem
vou viver numa boa junto com os bacanas
vou viver numa boa em Copacabana
Em Copacabana tudo é bacana
cerveja e batucada no bar do calçadão
fico muito a vontade, ando só de calção
Anos 80 e o desembarque definitivo do Subúrbio
A nossa história avança, e os Anos 80 trazem novos capítulos fundamentais para esta saga. Entre eles, a reestruturação do transporte público carioca. Relata o estudo de Patrícia Farias: “em 1984, inaugurou-se uma série de linhas de ônibus que visavam integrar a Zona Sul aos subúrbios, utilizando para isso a passagem pelo Túnel Rebouças, até então vedado a coletivos. Eram ônibus que tinham seus pontos finais em locais estratégicos (como São Cristóvão, Maracanã e Méier) do itinerário de quem vinha de subúrbios distantes e ia a Ipanema, Copacabana e Leblon”.
Nuvens suburbanas sobre o céu de Ipanema é o título de uma reportagem histórica de Joaquim Ferreira dos Santos no Jornal do Brasil de novembro de 84, que começa assim:
“Ipanema, essa senhora cada vez mais gorda e poluída, reclama de novas estrias e dentes cariados em seu corpanzil: agora é culpa dos ônibus Padron, a linha 461 que, há um mês, traz suburbanos para seu “paraíso”, numa viagem de apenas 20 minutos, via Rebouças. É o que dizem seus moradores, inconformados. Ouçam só:
“Que gente feia, hein?!” (Ronald Mocdes, artista plástico, morador da Garcia D`Ávila, bem em frente ao ponto do ônibus). (…)
Antes inspiração apenas dos majestosos compositores da Bossa Nova, agora as areias da Zona Sul exporiam todo o constrangimento e o preconceito semeado ali, em uma letra inspirada dos debochados paulistas do Ultraje a Rigor. Era um recado explícito do subúrbio carioca: Nós vamos invadir a sua praia.
Daqui do morro dá pra ver tão legal
O que acontece aí no seu litoral
Nós gostamos de tudo, nós queremos é mais
Do alto da cidade até a beira do cais
Mais do que um bom bronzeado
Nós queremos estar do seu lado
A TV Manchete produz outro documento magnífico para o entendimento de nossa história. A reportagem Pobres vão à praia escancara a tensão crescente entre moradores da Zona Sul e os novos turistas, cariocas do subúrbio. No trecho mais impactante, uma jovem de 18 anos discursa com surpreendente sinceridade:
— Não pode tirar o pessoal do Méier, do mangue, e levar a uma praia de Copacabana. Eu não posso conviver com uma pessoa que não tem o mínimo de educação. (…) É uma gente mal educada. Ficam falando grosseria para a gente. É uma gente suja. Você olha para a cara das pessoas e tem vontade de fugir. Eu tenho horror de olhar para essas pessoas e sacar que elas são do mesmo país que eu, que eles são brasileiros. Eles não são brasileiros, não, são uma sub-raça. (jovem moradora da Zona Sul)
A reportagem ainda mostra imagens impressionantes dos surfistas do asfalto, dependurados em trens e ônibus superlotados. Escancara-se o pulo sobre a roleta, a entrada pela janela e o uso da maconha nos coletivos do subúrbio. Jovens e adultos são filmados alimentando-se de produtos expostos em gôndolas de supermercados e padarias da Zona Sul. É nesse contexto que os anos 90 chegam e, com ele, finalmente, os “arrastões”.
Para falar do surgimento desse fenômeno, recorremos pela última vez ao estudo da socióloga Patrícia Farias:
“ (…) a praia carioca se torna novamente assombrada pelo fantasma de uma outra “invasão”. Desta vez, ela ganha o nome de “arrastão”, e assinala a visibilidade de um novo grupo social na cidade: as galeras jovens
dos bailes funk.
Em sua maioria negros e pobres, muitos deles moradores de subúrbios, estes jovens irrompem no cenário da praia num tórrido domingo de outubro de 1992, voltando desde então, ao menos como ameaça, a assustar os dias de verão dos moradores da cidade, particularmente
dos brancos mais abastados”.
Duas décadas e meia de “Arrastões” | No jornal O Globo de 22 de março de 1992, o repórter Renato Homem escreve a reportagem que poderia servir de certidão de nascimento para o movimento conhecido com “arrastão”.
Ali é descrita “a nova modalidade de violência na qual grupos de até dezenas de rapazes se lançam sobre as vítimas roubando tudo o que vêem pela frente. Eles surgem de repente e desaparecem da mesma forma, deixando um rastro de insegurança por onde passam. A polícia investiga sua formação há três meses. A principal conclusão é de que os arrastões são feitos pelos frequentadores dos mais de 30 bailes funk realizados nos fins de semana no Rio”.
Ao longo de todo esse tempo, a repetição do termo “arrastão” à exaustão, por jornais e políticos, merece reflexão. Em entrevista por e-mail, a antropóloga Fernanda Huguenin, que escreveu a tese As praias de Ipanema: liminaridade e proxemia à beira-mar e contestou o mito da praia democrática, questionou:
“A própria categoria “arrastão” é problemática. O que ele seria exatamente? Um grupo de adolescentes cantando funk e correndo? O garoto que rouba o celular na mão da moça que caminha distraída? Desde os anos 90, na disputa entre César Maia e Brizola, a palavra “arrastão” aparece para fomentar agendas e projetos (dos) políticos”.
Já Fátima Cecchetto, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz, reclama:“Algumas pessoas julgam esses grupos com base em estereótipos. Isso é preconceito e estigma. Ter um comportamento fora do normal é diferente de cometer um crime. Não se pode criminalizar um comportamento juvenil. Para os que têm uma atitude mais delinquente, é preciso responsabilizar e também prevenir”.
“Como previnir os arrastões?” é a pergunta que racha o Rio de Janeiro em dois (embora com lados em bastante desequilíbrio). Segue com mais força política a resposta militarista de César Maia em 1992: a de entupir os bairros de agentes de segurança pública. 23 anos depois, ainda é o capítulo número 1 da cartilha dos políticos do PMDB, partido que venceu as últimas cinco eleições para os governos municipal e estadual e ainda lidera a Câmara de Vereadores e a Assembleia Legislativa do Estado. A mídia hegemônica da cidade, como já se viu, é importante avalista desta corrente.
Já os grupos à esquerda do espectro político — que têm em Marcelo Freixo (PSOL) a principal liderança neste momento — respondem à questão pedindo menos armas e cobrando mais direitos. Neste caso, estaria no longo caminho das políticas públicas de educação, cultura, esporte e lazer a saída, definitiva, para os arrastões.
Sem esporte, sem lazer na Cidade Olímpica | Fiquemos somente no exemplo do esporte, aproveitando que a cidade vive a emblemática véspera dos Jogos Olímpicos de 2016. Coincidentemente, um dia após os “arrastões” de setembro de 2015, o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas lançou o dossiê que escancara diversas violações ao direito ao esporte na cidade olímpica. No documento, Edneida Freire, treinadora de atletismo, se mostrou escandalizada com o fechamento do templo do atletismo carioca, o estádio Célio de Barros, desmantelado em 2013 para virar estacionamento ao lado do Maracanã.
— Este equipamento esportivo favorecia toda a população e não apenas os atletas. O fechamento do Célio de Barros deixou sem espaço os diversos projetos socioeducativos que aqui eram desenvolvidos. Por onde andarão as crianças que antes estavam aqui? O atletismo é um esporte dos pobres, mas é um esporte rico, de guerreiros. Muitas vezes você chega descalço, mas quando você coloca a sapatilha, você já é outra pessoa. O Célio de Barros era a primeira porta para muitos, talvez a última porta de esperança. Com o atletismo, a gente acredita que pode mudar vidas…
O exemplo do Célio de Barros é apenas o mais escandaloso de uma cidade que, às vésperas de receber a mais importante competição do mundo, não tem sequer um programa esportivo ou de lazer em larga escala.
Outro exemplo vem da favela da Maré, também na zona norte da cidade. A esperança ali deveria ser a Vila Olímpica da Maré, inaugurada em 2000. No entanto, uma visita da reportagem nesta última semana constatou diversos problemas no espaço.
O maior deles, a piscina olímpica, que está vazia, em obras para consertar um vazamento. Mesmo quando (e se) ela estiver pronta novamente, funcionará apenas durante os dias de semana, já que não há permissão para o uso fora do horário de aulas. Assim, os 130 mil habitantes do Complexo não têm essa opção para se refrescar nos tórridos dias que, certamente, virão nos próximos meses.
Poucas oportunidades na favela, poucas oportunidades na Zona Sul, justamente em areias que parecem ser mágicas — férteis como nenhuma outra — para o desenvolvimento e mesmo a invenção de tantos esportes de praia. O Frescobol, o futebol de areia, o vôlei de praia, o futevôlei (e a altinha), o surfe; mais recentemente, o futebol americano de areia, o slackline, o handebol de areia, a natação em águas abertas, o stand-up paddle e o beach tênis têm ali espaços sagrados. Sem falar do farto espaço — sobretudo no fim de semana — para corredores, skatistas, ciclistas, patineteiros e patinadores.
Não há um programa público para oferecer esporte à beira mar e qualificar a experiência dos jovens moradores da periferia que procuraram Copacabana ou Ipanema. Não há campeonatos amadores organizados para atender essa população, tampouco, equipamentos esportivos — bolas, raquetes, fitas de slack, pranchas — à disposição dos jovens pobres cariocas. A rede pública de ensino não se faz presente catalisar, através do esporte, a potente energia juvenil que chega tinindo às areias em nos fins de semana de sol e calor. É possível afirmar que existem mais profissionais autônomos do que funcionários públicos trabalhando pelo desenvolvimento do esporte nas areias do Leme ao Leblon.
Assim, os mais bem equipados espaços — quadras com marcação e redes, basicamente — permanecem sob controle e uso dos locais da Zona Sul. Há ainda os casos de eventos com inscrições caras, como o Rei e Rainha do Mar, só para ficar num exemplo que conta com patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Ocaldo esquenta: plano prevê corte em linhas de ônibus em direção à zona sul. Nesse contexto de permanente preterimento das populações pobres do Rio de Janeiro, uma medida muito polêmica está prestes a ser tomada pela Prefeitura da cidade. Diversas linhas que ligam a Zona Oeste e a Zona Norte diretamente às praias da Zona Sul serão extintas ou encurtadas — tendo seus pontos finais transferidos ou para o centro, ou para outros bairros da Zona Sul mais afastados das praias. A Prefeitura alega que os cortes servirão para evitar a sobreposição de linhas na Zona Sul, que, em situação absolutamente anômala no Brasil, exibe diversos coletivos vazios durante o dia.
A população do subúrbio, claro, duvida que o motivo seja realmente esse, ainda mais por que algumas das linhas escolhidas para as medidas são justamente aquelas que mais têm trazido “problemas” para os moradores da Zona Sul, caso clássico da 474 (que sai do Jacaré em direção ao Leblon).
E é justamente de ônibus que chegamos aos últimos fatos da nossa história, no final de agosto deste ano. Foi a página do Jornal Extra na internet que, dia 24, trouxe uma grave denúncia, sob a seguinte manchete:
O texto de Carolina Heringer e Rafaella Barros conta a seguir que:
“Eram por volta das 14h30m de ontem quando 15 jovens, a maioria da periferia do Rio, se revezavam em um banco para quatro lugares no corredor externo do Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente (Ciaca), em Laranjeiras, após terem sido recolhidos pela Polícia Militar. O motivo? Estavam indo para as praias da Zona Sul do Rio.
— Tiraram “nós” do ônibus pra sentar no chão sujo e entrar na Kombi. Acham que “nós” é ladrão só porque “nós” é preto — disse X., de 17 anos, morador do Jacaré, na Zona Norte.
Do grupo que havia sido retirado de um ônibus que chegava a Copacabana, só um rapaz era branco. Os outros 14 tinham o mesmo perfil: negros e pobres. Todos os jovens ouvidos pelo EXTRA estavam em linhas que saem da Zona Norte em direção à orla. Nenhum deles portava drogas ou armas.
— Nós “estava” dentro do ônibus, não estava com nada. Nós “é” humilhado na favela e na “pista” — disparou Y., de 14 anos, que havia saído do Morro São João, no Engenho Novo, com quatro colegas.
Sem comer desde que haviam sido recolhidos pela PM, no fim da manhã, a todo momento os jovens pediam por comida. Os lanches só foram entregues cerca de quatro horas depois de a ida para a praia ser interrompida. (…)
Pedindo anonimato, quatro funcionários da Secretaria municipal de Desenvolvimento Social que estavam no local disseram não concordar com o recolhimento dos menores. Uma conselheira tutelar, que também preferiu não se identificar, não conteve a revolta com a situação que, segundo ela, tornou-se corriqueira:
— No início, o critério era estar sem documento e dinheiro para a passagem. Agora, está sem critério nenhum. É pobre? Vem para cá. Só pegam quem está indo para as praias da Zona Sul. Tem menores que, mesmo com os documentos, são recolhidos. Isso é segregação. Só hoje (domingo) foram cerca de 70. Ontem (sábado), foram 90. (…)
Polícia alega situação de risco. Procurada, a Polícia Militar afirmou, por meio de nota, que “as ações ocorreram visando a proteger menores em situação de risco ou em flagrante de ato infracional”. O defensor público Rodrigo Azambuja, porém, contesta a versão oficial.
— A situação de risco é quando a criança está na rua ou sendo explorada. Se ela estiver nessa situação, pode haver uma abordagem, mas da equipe de assistência social, não da polícia — diz Azambuja, acrescentando: — Isso (impedir que os adolescentes cheguem às praias da Zona Sul) é crime, está previsto no artigo 230 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que proíbe “privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente”. (texto do site do Jornal Extra (24/08/2015)
O caso ganhou imensa repercussão. O governador Pezão mostrou desconhecer a lei e, como de costume, defendeu a ação da polícia:
“Não achei (que passou do limite). Repercussão sempre dá, quando não age e quando age. Quantos arrastões nós tivemos praticados por alguns desses menores? Não estou falando que são todos que estavam ali, mas tem muitos deles que são mapeados. Se tiver algum excesso, vai ser coibido.” (Governador Luiz Fernando Pezão)
Tão revoltada a Defensoria Pública do Estado ficou com o caso que conseguiu na justiça um habeas corpus preventivo que impedia a Polícia Militar de apreender jovens que não estivessem em flagrante crime ou ato infracional. A decisão confundiu os cariocas. A saber pelo que se ouvia nas ruas, muitos entenderam que a PM não poderia mais abordar menor algum.
Parece que a própria PM se atrapalhou (ou quis se atrapalhar). Por pirraça ou não, no primeiro fim de semana de forte calor da nova temporada, a polícia não agiu energicamente e viu o circo pegar fogo, sobretudo no Arpoador. Conta um barraqueiro de praia que, no fatídico dia 20 de setembro, foram os seguranças dos prédios e dos hotéis que apareceram para acudir a população e a própria polícia, que sofria uma chuva de cocos e pedras. Muitos moradores relataram que, ao pedirem socorro para policias militares, recebiam como resposta algo como “a Justiça não deixa”. Foi instantâneo: a internet foi inundada por vídeos mostrando a correria, as ações dos ladrões na praia e a ação de “grupos de moradores da Zona Sul” agredindo passageiros do ônibus 476 que seguia viagem de Copacabana em direção ao subúrbio. Era a declaração de guerra.
Grupos que pediam mais policiamento e mesmo atos de justiçamento explodiram no Facebook, como o caso do Alerta Assaltos — Zona Sul. Nele, um policial civil postou uma mensagem violenta que, rapidamente, viralizou na rede. Embora sob muitas críticas, muitos cariocas não só apoiaram o texto como adicionavam novas mensagens de ódio.
Por outro lado, grupos de menores de bairros pobres, reunidos numa página de Facebook, sob o nome de Coreto e o Injeta, devolviam as ameaças, desafiavam a polícia e ainda demonstravam os objetos roubados em fotos. Tanto assombro as páginas provocaram que foram parar nos telejornais cariocas. A rixa crescia e, nas ruas da Zona Sul, não se ouvia falar de outra coisa. Um muro no bairro de Benfica, na Zona Norte, foi pichado com uma mensagem que diz muito sobre uma parte do sentimento.
Outra postagem que mobilizou a internet foi da filósofa Ângela Moss, personagem curiosa desta trama. Foi ela quem, no final da década de 80, insultou outros de “sub-raça” na reportagem da Manchete. Quase 30 anos depois, ela se mostrou absolutamente arrependida: “não há como negar: essa é a face triste de uma sociedade sem compaixão e egoísta e sim, um dia já foi a minha face. É triste, mas do alto da minha idade atual tenho orgulho de ver como eu era menor e em quem eu me transformei”.
Fui atrás do perfil de Ângela no Facebook. Ela me disse: “Acho que enquanto nos perdemos nessa discussão boba de zona norte x zona sul nós nos esquecemos que somos os mesmos 99% e que aquele 1% contra o qual deveríamos estar lutando está lá em cima só fomentando essa merda. Porque enquanto lutamos uns contra os outros não lutamos contra eles! Esse choque não é entre ricos e pobres: é entre remediados e pobres!”
Na véspera do fim de semana, o calçadão de Copacabana estava em polvorosa. As opiniões se dividiam entre aqueles que criticavam e apoiavam uma possível ação dos justiceiros.
Vendedor de canga há 40 anos em Copacabana, Mário José (foto acima) criticou os justiceiros.
“Têm pessoas que acham que têm que matar. Mas não! Porque isso é um problema do Estado. O problema é estrutural e social! Quem tem que tomar atitude sobre isso são as autoridades.”
Já um outro homem, de 50 anos, morador de Copacabana, que não quis se identificar, pensava diferente. Ele, todo musculoso, disse que cogitava bater em ladrões que flagrasse em ação no bairro.
“Justiceiro é uma palavra um pouco forte, muito midiática, muita palhaçada. Isso aqui é o morador jovem daqui, que está indignado com a situação e fica tentando tomar defesa de seu território, digamos assim. E eu também estou indignado.”
Menino de 11 anos morre no Caju. A PM é suspeita, mas a Zona Sul segue.. pedindo mais polícia | No meio de uma semana tão explosiva nos noticiários dos “arrastões”, com extensas reportagens em todos os veículos e autoridades convidadas a se explicar no estúdio, o menino Herivaldo, de 11 anos, morre com um tiro na cabeça enquanto corria para comprar uma bolinha de ping-pong no bairro do Caju.
Cinco agentes da PM da UPP da região aparecem como os únicos suspeitos da morte e são afastados das ruas. Um escândalo que não perturba o protagonismo da Zona Sul. A população desta parte da cidade, afinal, não frequenta as favelas da região do Caju, e uma boa parcela está bem mais preocupada em manter os pivetes longes de suas ruas e praias.
Uma declaração de guerra da população, um esquema de guerra do governo.
Na quinta-feira, 24 de setembro, representantes da Secretaria Especial de Ordem Pública, da Guarda Municipal, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e da Polícia Civil se reuniram no quartel-general da Polícia Militar do Rio de Janeiro para afinar a operação conjunta do fim de semana. A decisão da PM foi de antecipar em um fim de semana o início da Operação Verão. Foram anunciados quase mil homens. Só da PM, 17 bloqueios a ônibus, motos e carros suspeitos. Alguns deles, montados até mesmo em bairros distantes da praia, como ocorreu no longínquo ano de 1992. O carioca da Zona Sul vive, então, seu sonho dourado: um policial em cada esquina — e até mesmo junto aos quiosques.
Não era um dia normal de praia. Em vez de carros particulares estacionados na orla, quem chegava à praia do Arpoador na manhã do sábado era recebido por uma fila de carros oficiais e um enorme conteiner da Polícia Militar. Os gritos típicos dos vendedores ambulantes disputando a clientela nas areias eram abafados pelo zunido de um helicóptero da polícia sobrevoando a orla. O céu nublado indicava que, no primeiro dia da Operação Verão, até o sol pareceu ter se intimidado de aparecer na praia.
Mas como quem faz das areias do Rio seu lugar de trabalho não pode se dar o luxo de ficar em casa por medo da violência, a ambulante Luciana Adriano voltou a levar seus biscoitos e empadas para vender em Ipanema, com o objetivo de complementar a renda mensal da família. A estreia havia sido no sábado, 19, primeiro dia do fatídico fim de semana de “arrastões” no Arpoador.
“Eu fiquei muito assustada. Vi tudo acontecer. Escondi o dinheiro do que havia vendido e tentei me afastar da confusão”, conta a moradora de Vilar dos Teles, em São João de Meriti, que, para chegar ao Arpoador, enfrentou mais de duas horas e meia de ônibus e metrô. Mãe de dois filhos adolescentes, ela diz ter se emocionado vendo um dos meninos detidos pela polícia na última semana sendo algemado.
“Meu filho mais velho, de 17 anos, costumava vir à praia aqui com os amigos. Mas eu sempre orientei para ficar longe de confusão, procurar os lugares mais vazios da praia e, de preferência, ficar mais tempo na água, tomando cuidado para não se afogar. Em dia de praia cheia, é muita gente misturada e, na hora da confusão, por causa de um, todo mundo paga. Ainda mais se for preto”.
Luciana tem uma piscina em sua casa e é lá que ela prefere que os filhos fiquem no próximo verão:
“Se depender de mim, eles não virão para cá este verão. O mais novo, eu não vou deixar. Já eu, vou continuar vindo, não tenho escolha”.
Quem bate ponto na praia também todo fim de semana, há 20 anos, é a avó da diarista Franciele Castro, de 22 anos, que tem uma barraca no Arpoador. Por causa disto, Franciele cresceu frequentando esse ponto das areias do Rio. Acompanhada da amiga Juliana Coelho e levando o filho Victor Hugo, de 1 ano e 2 meses, ela, que vive em Ramos, voltou à praia, apesar de ter presenciado os problemas do fim de semana anterior.
“Não fiquei com medo, nem vou deixar de vir à praia, estou acostumada. E também estou acostumada com barulho de tiro na favela, vou ficar com medo de arrastão?”
A reportagem entrevistou outras dez pessoas entre o sábado e domingo. Todas demonstraram apoio ao número de policiais na orla, mesmo aqueles que disseram “não confiar muito na polícia”.
Quem também não gosta muito da polícia é um jovem de 7 anos, morador de uma favela no bairro de São Cristóvão, o último personagem dessa história. Encontrei com ele a bordo 474, em direção à Zona Sul, no sábado. Ele era mais saliente de um grupo de mais três amigos — todos menores de dez anos e desacompanhados dos pais — que se revezavam sentados na janela do ônibus. Sem sorrir uma única vez, enquanto o ônibus seguia seu trajeto, ele arremessava pequenas balinhas nos pedestres nas ruas e nos motoristas de carros. Quando o coletivo em que estávamos finalmente chegou à Copacabana e parou no engarrafamento, o grupo começou a xingar com palavrões cabeludos os passageiros de outros ônibus emparelhados.
Quando o policial da blitz olhou para a cara do jovem pela janela, mandou o ônibus parar. Lá da frente, o motorista gritou: “perdeu menor! vai voltar para casa”. O policial entrou, perguntou onde estavam os pais de cada um e mandou todos descerem. Além deles, mais dois jovens negros que estavam sem camisa no fundo do ônibus. Eu, de idade similar aos dois jovens , — porém ‘branco’ e com barba universitária — fui ignorado pelo PM. Mesmo assim, para acompanhar a história, resolvi descer também. Só consegui ouvir o policial dizer ao menores: “fiquem na moral, sem bagunça”. Em seguida, os devolveu para dentro do ônibus.
Exatas 24 horas depois, reencontrei o jovem e outros dois amigos numa praça do Arpoador. Estavam apreendidos por 15 policiais, que esperavam a chegada dos agentes da Secretaria Municipal de Assistência Social. Enquanto não chegavam, um dos PMs (que não está na foto abaixo) zoou o garoto mais irascível, o mesmo que arremessava balinhas nos pedestres: “você de novo, hein? Quarta vez já! Hoje não tava roubando? Só hoje, né?”
Os agentes da Prefeitura chegaram, pegaram a criança pelo braço sem nem mesmo dar-lhe um “boa tarde” e o levaram para dentro da van. De lá, ele apontou para o chefe da operação e ameaçou: “eu marquei tua cara, hein? Eu marquei tua cara”! Do meu lado, um morador de Copacabana resmungou baixinho em minha direção “que filho da puta, com essa idade e falando desse jeito. É mole? Cacete neles!”
Outra morte, e a polícia segue… | Na manhã de terça-feira, 29 de setembro, a PM do Rio fez mais uma vítima jovem nos morros cariocas. Dessa vez, Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos. Ao que indicam amigos, um varejista do tráfico de drogas no Morro da Providência. Um vídeo, absolutamente conclusivo e revoltante, mostra cinco policiais militares envolvidos na ocorrência fraudando a cena do crime. Agonizante, Eduardo é pego pela mão por um PM que simula um tiro com uma pistola para deixar vestígios de pólvora sobre o jovem.
Nos próximos fins de semana, entretanto, a orla da Zona Sul deverá manter-se repleta de policiais defendendo a paz para além do túnel. Pena que no fim deste túnel não há luz. No fim deste túnel, há apenas a polícia.