Não diga que a canção está perdida, cantava Raul Seixas. Nesses dias difíceis em que vivemos, em que vontades escusas de restrição das liberdades querem impor-se e instigam violências contra a pluralidade do viver social, redescubro lugar histórico da contracultura, o modo de ser, arma primitiva dos homens, numa praia baiana da cidade de Camaçari.
Lugar que envolve, Arembepe, tem aldeia de não índios, hippie, palavra que não desiste, ideologia que curva-se à natureza e persiste além dos comandos rudes em curso. Vestígios de um modo de viver, é doce alternativa aos militares em moda: cabelos compridos, dreads, peles douradas, um jeito colorido de vestir e andar.
Ser hippie é hoje algo tão revolucionário como nos anos 70, sinto, de repente, na Estrada do Coco e Linha Verde, vias que ligam grandes condomínios e empreendimentos entre paraísos da costa da Bahia. Sinais de vida na vida alternativa, contracultura do século passado, jovens cinquentões que tornaram-se bastiões, artistas, pensadores. Não mais como há 50 anos, onde nu se ficava conforme a vontade, é fato, mas nu está aquele que hippie é. Hoje um ponto turístico de fácil acesso, placas coloridas com palavras ideais presas nas árvores, a indicar condutas, banners com imagens de personalidades e astros que na areia da aldeia pisaram, estão à mostra entre tradicional arte do movimento. Também pode-se comer preciosa moqueca na cabana do Roque, sem camisa fumar a história entre as dunas, mesmo que um emissário do pólo petroquímico de Camaçari demarque a linha do horizonte, na imensa praia.
No livro Anos 70 Bahia: Vertigem e contracultura no paraíso tropicalista, de Luiz Afonso e Sérgio Siqueira, pode-se ler que os anos 70 marcaram a explosão do movimento hippie na Bahia: Salvador, Arembepe, Trancoso e Berlinque (território de My Friend) consagraram-se como “terras prometidas” da peregrinação mochileira e da vida alternativa. Comunidades brotaram em toda parte e os outsiders, os marginais ao sistema viviam o coletivo, as casas com as portas escancaradas para quem chegasse. Na Boca do Rio, Pituaçu e aldeia hippie muita gente veio para morar, as tribos da contracultura misturadas a nativos e pescadores.
Jack Nicholson, Roman Polanski e Dennis Hopper passeavam nas dunas de Arembepe. Todo mundo queria vir para a Bahia, desde ícones sagrados da música, cinema, literatura e artes plásticas a mochileiros cosmopolitas, ligados na natureza exuberante, na contracultura tropicalista e na utopia da “terra prometida”. Estiveram aqui astros do calibre de Janis Joplin, Mick Jagger, Keith Richards, Richard Gere, Michael Douglas, Ney Matogrosso, Vinicius de Moraes, Tim Maia, Novos Baianos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Amado, Dorival Caymmi, Pablo Neruda, João Gilberto, José Simão, Rita Lee e muitos outros. Mergulhe fundo nos relatos de 200 autores que viveram os anos vertiginosos da contracultura na Bahia, com avistamentos de discos voadores, viagens astrais, carnaval, festas, experimentalismo, vanguardismo. Um livro escrito a 200 mãos, traçando um painel coletivo dos anos loucos da cultura baiana, brasileira e planetária.
Vivemos dias tristes, feliz é o coração da aldeia, baluarte.
O último carnaval da terra e seu refúgio. Enfim, como cantara Janis Joplin,
Oh! But it don’t make no difference, babe, hey,
And I know that I could always try.
There’s a fire inside everyone of us,
You’d better need it now,
I got to hold it, yeah,
I better use it till the day I die.
imagens por helio carlos mello©
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