por Rosane Borges, especial para os Jornalistas Livres
Fotos: Cristina Maranhão
Em tempos de estado suicidário, expressão cunhada por Paul Virillo, onde o investimento se desloca dos meios de produção para os meios de destruição, é preciso “imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise do coronavírus”, conforme afirmou em texto recente Bruno Latour, renomado filósofo da ciência.
De acordo com Paul Virillo o que define o fascismo não é o Estado totalitário, mas a noção de Estado suicidário: “a guerra dita total aparece aí menos como empreendimento de um Estado do que de uma máquina de guerra que se apropria do Estado, fazendo passar através dele o fluxo de guerra absoluta que não terá outra saída senão o suicídio do próprio Estado”.
Bolsonaro e Paulo Guedes são operadores dessa máquina de guerra, e eles lutam incessantemente contra o país, o Estado e a Nação, já que não a querem perdida. Em meio ao desespero, remasterizam a velha máxima de Hitler: “se a guerra está perdida que pereça a Nação.”
A pandemia da covid-19 reatualiza a guerra que alcança escala inaudita em tempos de globalização, atingindo em um só golpe o planeta (as pandemias anteriores, a gripe espanhola e a peste negra, por exemplo, ocorreram em épocas onde “o mundo era pequeno porque terra era grande, hoje o mundo é muito grande, porque terra é pequena”, como nos ensina poeticamente Gilberto Gil).
Mas uma advertência se impõe: a guerra reatualizada pela pandemia não é necessariamente contra o vírus, até porque tecnicamente não há um exercito, não há invasão do território de um país, não existem dois agentes humanos em combate, não há estratégias. O termo guerra só ganha legitimidade se considerarmos que ela é de outra ordem e segue quase sempre o mesmo curso. É a guerra entre os holofotes do poder, os defensores da globalização financeirizada, e os pequenos vaga-lumes, que lutam por outro mundo, os destituídos de poder. (Holofotes e vaga-lumes integram a linda metáfora do crítico de arte George Didi-Huberman).
Seguindo o fio da argumentação de Latour, talvez estejamos frente a uma oportunidade única de mudança radical do nosso modo de vida. Todas as tentativas de correção de rota, de consolidação de propostas que visam a construção de outros paradigmas, como as enunciadas pelos vaga-lumes, nomeadamente os ecologistas, as feministas, especialmente as mulheres negras, os povos originários, os trabalhadores espoliados, foram severamente criticadas e bloqueadas sob a justificativa de que o mundo não podia parar, pois o dinheiro que circulava livremente pelo globo na velocidade da luz tinha que se manter livre sem nenhum bloqueio.
Só que o mundo parou! E se é possível parar o mundo por força de um vírus microscópico, é igualmente possível mudar não apenas as atitudes, mas o enquadre, a moldura que as torna possíveis. Como estamos sentindo na pele, o vírus nos empurra para uma realidade irreversível, árida, mas os desdobramentos dessa realidade podem ter as nossas digitais se concebermos o tempo presente como o tempo da decisão, como bem disse o papa Francisco em seu belo discurso da benção.
É preciso, assim, que se expresse a vontade de revolver o sistema de produção globalizado, de propor outros paradigmas. Trata-se de uma urgência e emergência, visto que ainda são altissonantes as vozes daqueles que aproveitam a ocasião para sepultar o pouco do que restou do Estado de bem-estar social, rasgar a rede de proteção de direitos dos mais vulneráveis e tentar, de todas as formas, se livrar de “gente improdutiva, feia, pobre, inútil que povoa o planeta”.
Costuma-se dizer que as pandemias favorecem momentos efusivos a mudanças. Medo, sobressaltos, angústia paralisante são sentimentos que tipificam a nossa travessia da quarentena, mas nela se vê também brechas, fendas, que nos franqueiam o exercício da imaginação.
E nada mais propício para tal exercício do que a arte, onde se pode desenhar um futuro no presente e, assim, projetar horizontes do possível. O espetáculo “Black Brecht: e se Brecht fosse negro?” é um belo exemplar de como a construção do porvir, em aliança com a experiência do passado e do presente, mostra-se como um plano de emergência inescapável para a ascensão de fundamentos e matrizes quase sempre ignorados, silenciados, subalternizados.
Culturas e artes: a insurreição de corpos em prol de novas matrizes
O canto fúnebre que se elevou para o campo da cultura e das artes não conseguiu silenciar o coro de múltiplas vozes que laboram para a sobrevida daquilo que os donos do poder, os operadores do Estado suicidário, querem morto ou inerte no nosso país.
Para quem vinha acompanhando a nossa cena cultural no estágio pré-confinamento, sentia lufadas de oxigênio advindas do renascimento do teatro, que se mostrou com extraordinária vitalidade. Sem sombra de dúvidas, as artes cênicas estão no epicentro de transformações estruturais que não apenas resistem às tentativas de embalsamento operadas por um governo que nasce morto, mas, num movimento duplo, põem também em xeque as tradicionais formas de fazer teatro. Pela resistência, persegue-se a instauração do novo.
O pesquisador Luiz Fernando Ramos refere-se à essa renovação assinalando a febre criativa que vem contagiando grupos de diversas procedências em todas as regiões do Brasil: “o teatro brasileiro perfez um ciclo virtuoso nas duas primeiras décadas do século 21. Os 20 anos de governos social-democratas apoiaram a cultura e as artes, e a cena teatral se fortaleceu, tanto na produção artística como teórica, pelo menos nas universidades públicas. Programas de apoio à criação e pesquisa de longo prazo permitiram que centenas de grupos novos, operando em direções várias, se estabelecessem e passassem a viver de teatro. Experiências proliferaram por todo país, e um novo público passou a frequentá-las.”
Ramos apresenta a diversidade do espectro: nele cabem o Teatro Oficina, o Grupo Vertigem, a Cia. do Latão, a Armazém e a Vértice, o Galpão e encenadores como José Fernando Azevedo, atrizes e diretoras do quilate de Grace Passô. No âmbito da escrita dramática, o pesquisador arrola nomes como Alexandre Dal Farra, Dione Carlos, a dramaturga de Black Brecht: e se Brecht fosse negro?. Menciona ainda, nas artes performáticas, a companhia de dança de Lia Rodrigues e o improviso poético de Roberta Estrela D´Alva.
Não à toa, pinça desse oceano várias gotas da presença negra. O que essa renovação, com participação expressiva de realizadores negros e negras, aporta para o momento presente? Cogito que o teatro negro, em geral, e o espetáculo Black Brecht: e se Brecht fosse negro?, em particular, se constituem numa espécie de laboratório, de incubadora de um futuro em que se barra as experiências que subalternizam as humanidades postas à margem da distribuição da riqueza desse sistema frenético.
A cena teatral negra nos lega um ensinamento precioso para esses tempos: o que é considerado a boa rotina do mundo, realidade imutável sobre a qual não temos ingerência, tal como o levantar do sol, deve ser examinado sob a lente do espanto e da indignação. Faz poucos dias que a Attac France, associação independente francesa que mobiliza a sociedade por justiça social e ecológica, publicou um texto analítico do mundo pós-epidemia do coronavírus. Neste texto, a associação afirma categoricamente que não devemos desejar um retorno à normalidade, “porque a normalidade neoliberal e produtivista é o problema”.
Black Brecht: corporeidades insurgentes que rompem com a normalidade
Em linhas gerais, podemos afirmar que “Black Brecht: e se Brecht fosse negro?” é filho legítimo da profícua renovação posta em destaque por Luis Fernando Ramos. Dirigido por Eugênio Lima e sob a escrita dramatúrgica de Dione Carlos, profissionais de talento descomunal, o espetáculo é uma adaptação livre do julgamento de Luculus, de Bertolt Brecht.
Perante o Supremo Tribunal do Reino das Sombras apresenta-se Luculus Brasilis, o general civilizador, que precisa prestar contas da sua existência na Terra para saber se é digno de adentrar no Reino dos Bem-Aventurados. “Sob a presidência do juiz dos Mortos, cinco jurados participam do julgamento: um professor, uma peixeira, um coveiro, uma ama de leite e um não-nascido. Estão sentados em cadeiras altas, sem mãos para segurar nem bocas para comer, e os olhos há muito apagados. Incorruptíveis.”
As bases conceituais que sustentam o espetáculo repousam nas categorias de afrotopia, afropolitanismo e afrofuturismo, que, juntas, retratam como o futuro foi sempre subtraído das vidas negras de diversas maneiras (a falta de tratamento adequado para o coronavírus aos habitantes da borda, em sua maioria pessoas negras, é uma delas). Inevitavelmente, ao falar de futuro, Black Brecht retorna ao passado para recolher o que foi deixado para trás, como reza a filosofia africana dos povos Acã.
A pergunta e se Brecht fosse negro? elimina qualquer fragmento de dúvida quanto à força pedagógica do espetáculo em tempo de pandemia. Embora faça uma crítica mordaz, ácida, desestabilizadora, Black Brecht não flerta com a destruição apocalíptica que não abre espaço ao porvir; ao contrário, oferta, generosamente, possibilidades outras manufaturadas pelos condenados da terra, expressão do pensador negro Frantz Fanon, mencionado à mancheia no espetáculo.
A escolha do dramaturgo alemão não podia ser melhor. Bertolt Brecht foi um contraponto na ambiência efervescente das vanguardas artísticas, reconhecidas por alimentarem o franco desejo de destruir a instituição arte. Brecht, diferentemente, consegue desenvolver o conceito de refuncionalização para transformar radicalmente, e não destruir, o teatro da burguesia culta. O dramaturgo alemão alcançou o equilíbrio entre a destruição e a adesão, sintetizada nos posicionamentos dos filósofos Theodor Adorno e de Georg Lukács, cravando sua contribuição particular para a dita arte moderna.
A título de lembrete, para Lukács, a arte vanguardista não tinha caráter de protesto, era desprovida de perspectiva histórica, mostrava-se indiferente às forças reais de oposição que se engajavam na superação do capitalismo. Já segundo Adorno, as vanguardas expressavam o protesto radical de oposição à toda e qualquer falsa reconciliação com a arte existente, o que fazia delas, das vanguardas, a única forma de arte historicamente legítima.
Como se vê, o espetáculo Black Brecht assume as soluções encontradas por Brecht, transformando-as no presente em sua continuidade histórica. Institui-se, assim, como mais um empreendimento da gente negra em prol da refuncionalização da instituição teatro. Mas vai além: mostra-se como um inventário de possibilidades com potência para restituir algumas matrizes políticas e romper com outras.
Recuperando o que diz Bruno Latour, quando postulamos a ideia de que devemos brecar a produção do sistema capitalista pré-crise da pandemia, não se trata de imaginar ingenuamente que passaremos a viver de brisa, mas de “abandonar a produção como o único princípio de relação com o mundo. É antes uma dissolução, do que uma revolução.”
Black Brecht dissolve as cadeias que devemos romper e nos brinda com um futuro em que todos os corpos, por serem humanos, devem importar. Ao ultrapassar o umbral da revolta (contra o extermínio da população negra, ontem e hoje, contra as injustiças raciais, contra as desigualdades sociais…) restitui a humanidade à população negra.
O diretor Eugenio Lima afirma que o espetáculo “é para, por e com a memória de nossos ancestrais. Um grito poético que diz querer a sua matriz de volta”. Esse grito poético se contrapõe à matriz reinante financeirizada, globalista que quer a todo custo manter as suas engrenagens funcionando à custa de corpos que não importam. Por outras matrizes e outros fundamentos, ouçamos as vozes desses corpos insurgentes que ultrapassam as paredes da cena teatral e, se ressoadas no mundo ordinário, promoverão a suspensão da normalidade. Aproveitemos a quarentena para comunicar aos donos do poder que quando o isolamento passar não mais aceitaremos as regras do jogo. Desobedeçamos. É possível, o vírus provou que é.
Quem faz Black Brecht
Dramaturgia: Dione Carlos
Intervenção Dramatúrgica: Legítima Defesa
Elenco: Eugênio Lima, Walter Balthazar, Luz Ribeiro, Jhonas Araújo, Palomaris Mathias, Tatiana Rodrigues Ribeiro, Fernando Lufer, Luiz Felipe Lucas, Luan Charles, Marcial Macome e Gilberto Costa.
Produção Executiva: Iramaia Gongora
Direção Musical: Eugênio Lima e Neo Muyanga
Música: Luan Charles, Eugênio Lima, Neo Muyanga, Roberta Estrela D’Alva, Dropê Selva, Suyá Nascimento, Atila F. Silva, Everton Martins, Danilo Rocha, Thiago Bernardes e Pedro Teixeira
Cenário: Renato Bolelli
Iluminação: Matheus Brant
Fotografia: Cristina Maranhão
Vídeointervenção: Bianca Turner
Vídeodocumentário e Filme: Ana Júlia Travia
Trilha do Filme: letra Azagaia, voz Roberta Estrela D’alva, música Eugenio Lima
Figurino: Claudia Schapira
Rosane Borges é jornalista, pesquisadora do Colabor (ECA-USP), integrante da CORE (Comunidade Reiventando a Educação), autores de diversos livros, entre eles: Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012) e Esboços de um tempo presente (2016).
2 respostas
Maravilhoso. Todos necessitam ver essa “reflexâo” que é uma obra de arte, se pela leitura já virei fã, imagina ao vivo!!!
Nossa deve ser forte, ao vivo ou assistir mesmo quê em vídeo! Pelo texto e contexto!