ELISA LUCINDA: TOCA, MORAES MOREIRA! TOCA MAIS!

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda
Elisa Lucinda e Moraes Moreira: Ando por aí querendo te encontrar. Em cada esquina paro em cada olhar. Deixo a tristeza e trago a esperança em seu lugar
Elisa Lucinda e Moraes Moreira: Ando por aí querendo te encontrar. Em cada esquina paro em cada olhar. Deixo a tristeza e trago a esperança em seu lugar – Foto: @elena_moccagatta_fotografia

Enquanto escrevo, meu vizinho bota pra tocar bem alto “Deixa eu penetrar na sua onda“, e o Brasil todo, nas rádios, nas casas dos milhares de fãs confinados e em tudo, só toca Moraes Moreira. O poeta, mestre, instrumentista e referência, é síntese da utopia de vida vivida pelos novos baianos. Só tinha fera ali: Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Galvão, Paulinho Boca de Cantor. Todo mundo muuuuuuito competente e arrasador. Sem desprezar ninguém, pelo contrário, reconhecendo ouro em todos, Moraes ficou sendo o símbolo daquilo tudo pra mim. Quem da minha geração não queria morar lá? Era uma espécie de quilombo urbano, rural. Aquilo era Jacarepaguá e podia ser também Bahia, porque era também magia. Era o sonho da nossa juventude sendo provado na prática. Moravam todos ali, num esquema livre, sem nenhum dos dogmas asfixiantes da vida aqui de fora, na hora em que a nação sofria na mão da ditadura militar.

Aquela gente peculiar encarnava tamanha irreverência que beirava ao ingênuo, ao naïf, ao infantil quase. Nem a ditadura farejou, que eu saiba, o potencial de liberdade daquele Acabou Chorare, e dos Novos baianos FC. “Abelha abelhinha, faz zum zum pra mim”? O que havia por trás do Besta é tu, e do romântico hino Preta, pretinha?

É que enquanto corria a barca nós íamos tentando respirar debaixo daquela mão pesada do sistema opressor, que se voltava violentamente contra o pensamento, contra a arte, contra a liberdade do mundo. Mas aquela turma nos oferecia alegria, dentro dos anos de chumbo, e a alegria, apesar de subversiva, passava entre os bélicos apenas vestida de alegria. Inatacável. Imune.

 

O lugar daquele iluminado bando musical e divertido era quase ficção. Os novos baianos moravam era em Pasárgada, de Manuel Bandeira. Era um país, eu queria ir pra lá, se pudesse. Era uma utopia possível, o amor é que era aquele país. João Gilberto cabia lá, na língua dele.

Nossa juventude universitária maconheira, via um cachimbo imenso naquele cotidiano, naquelas crianças como se vivessem igual nas tribos, tendo pais e mães compartilhados. Eu morava em Vitória do Espírito Santo, era menina ainda e já amava o grupo. Tudo o que sabíamos daqueles “hippies” vivendo em comunidade é que pai e mãe não faltavam ali, e que o amor estava intacto na sua essência: livre. Hoje percebo o quanto meu imaginário está nutrido dessa referência.

Muito mais tarde, aqui no Rio quando conheci o mito (deste podemos falar assim sem medo), foi muito divertido e poético, como nunca deixaram de ser sempre, a partir dali, os nossos encontros e conversas. Estava fazendo o Parem de Falar Mal da Rotina, no teatro Leblon, quando de repente, numa cena em que canto uma canção e ofereço um brinde, um livro, ou uma bolsa, pra alguém da plateia que adivinha o nome autor do que eu cantei, ocorreu uma coisa curiosíssima: cantei Palavras, eternizada na voz da Cássia Eller (êta, céu ou inferno animados), e esperava a resposta da plateia que errava tentando acertar. Nada. Pois no teatro lotado, sem que eu pudesse ver com clareza, reconheço uma voz que se levanta e diz: “Eu sei, Moraes Moreira e Marisa Monte”!!!! Era o próprio. E era a primeira vez, e única, que o próprio autor estava na plateia e adivinhava o jogo. Foi emocionante, o público delirou, achou até que era combinado. Estreitamos uma amizade que, embora ali se inaugurasse, parecia continuada. Sempre parecemos velhos amigos. Trago dele muitas histórias. Era um griot. Homem simples e sofisticado de tanta grandeza no coração. Fez um poema pra nós, eu e Geovana Pires, quando assistiu ao Recital à Brasileira, convocando o Congresso Nacional a assisti-la. Quando leu a minha autobiografia do Fernando Pessoa (“O cavaleiro de nada”), me ligou, leitor envolvido, emocionado, inquieto e muito sensível: não quero que termine, não quero que acabe o livro, faltam só duas páginas…. e ao mesmo tempo protestou quanto à má distribuição da literatura no Brasil.

É chato falar essas coisas aqui, fica parecendo ostentação. Claro que dá orgulho e é mesmo uma sorte poder ficar amiga de quem se admira tanto. Mas quero pontuar aqui a dimensão humana desse poeta, habitante da poesia dos nossos dias, que levou caminhões e caminhões de alegria pelo Brasil. Quero compartilhá-lo com todos. Muito do que escrevi e escrevo foi semeado em mim pelas criações deste cara genial. A arte independente e popular de Moraes Moreira referenciou minha geração e atravessou séculos. Me influenciou. Seu som é trilha de minha vida. Meu filho escuta. Meus sobrinhos, alunos e amigos. Quem é adolescente hoje também escuta. A galera escuta, dança, canta e come com prazer o alimento da arte deste cordelista atemporal que deixou um poema no seu computador de nome Quarentena. O último. No primeiro verso dizia ter medo do vírus mas também de bala perdida. O Brasil dos olhos de Moraes iluminou o Brasil real. Acrescentou. É um Brasil lúdico, mágico e, potencialmente revolucionário! Moraes, na sua ousadia e sua execução no violão, nos recursos de sua melodia, autorizou vários compositores e reluz entre nós sua brilhante e digníssima carreira. Desde que tocou pela primeira vez no rádio, nunca mais parou de tocar. “Escute esta canção que é pra tocar no rádio, no rádio do teu coração”. Nunca deixou de haver esse novo baiano com seu bigode marcante, tocando na nossa garoa, à beira do rio amazonas, no calor do Circo Voador, numa cidadezinha mineira, numa neve na fronteira, ou seja lá onde for.

Nunca mais

Quando Ronald Valle, músico e amigo querido, me enviou nesta manhã de abril um áudio afirmando e duvidando da notícia, rezei para que fosse fake news. Respondi: Para! Mas ali era a verdade nua e crua batendo na minha cara. Escavei. Chorei feito criança. Nunca mais falaria com ele? Estava na minha lista de providências afetivas ligar para ele nesta quarentena, para ler um poema do livro novo que quase saiu do livro, por que um outro amigo  — Claudio Valente — achou que estava meio fraquinho. E estava mesmo. Ajeitei. Ganhou mais ritmo, eu penso. E como o poeminha citava Moraes, combinei comigo de ligar pra ler. Nunca pensei que não fosse dar tempo. Nunca a palavra morte passara antes, à beira desse cara, desse cais. Ainda bem que as novas gerações o consomem. Ainda bem que a sua arte alegre, sua criativíssima alegria dançante e romântica estão gravadas em várias mídias e deixaram muitos herdeiros e descendentes.

Muito triste é que não possamos agora, no presencial, nos despedir. Quem não quereria cantar seus sucessos em volta do mestre ídolo na cerimônia de despedida? Mas tenho certeza de que o grande cortejo da sua partida, em vários lugares deste país, está cantando preta pretinha, ou qualquer um dos seus maravilhosos hinos gravados nas plataformas dos nossos corações. Porque não podemos nos aglomerar agora. Nem pra beijar pela última vez os nossos mortos.

Porém, nesse momento em que estamos isolados, temendo o invisível, nesse momento em que nos preparamos para o novo mundo, é difícil não lembrar das palavras dele: “e pra ter outro mundo, é preci-necessário viver. Viver contanto em qualquer coisa. Olha só, olha o sol. O Maraca domingo. O perigo na rua…”. Para entrarmos no novo mundo que se impõe à nossa vida, espero que o produzamos, pra deixarmos este mundo em que estávamos vivendo, tão longe do que postulava o “país” dos jovens baianos e a cabeça deste artista que aqui homenageio, vamos mesmo precisar de suas palavras, meu amigo querido, para pilotar os novos tempos. Sua alegria desobediente e original nunca foi tão revestida da palavra resistência como agora.

Neste fevereiro, Moraes me deixou um recado bonito, pontuando que eu estava sempre fazendo sarau de aniversário nas datas em que ele estava fazendo shows, inúmeros, pelo Brasil. Sem tua voz não tem festa, Moraes! Ofereço à riqueza de sua memória toda nossa gratidão por deixares no mundo sua imperecível alegria. O hoje e o sempre te ouvirão e não te esquecerão jamais. Eu quero mais! Toca, Moraes! Toca mais!

 

Coluna Cercadinho de  palavras, Elisa Lucinda, outro abril despedaçado, 2020

LEIA OUTRAS COLUNAS DE ELISA LUCINDA:

 

ELISA LUCINDA: Cadê o futuro que estava aqui?

 

HTTPS://JORNALISTASLIVRES.ORG/ELISA-LUCINDA-PARA-QUE-REGINA-DUARTE-SE-VISTA-COM-AS-ROUPAS-E-AS-ARMAS-DE-MALU-MULHER/

ELISA LUCINDA: AOS FILHOS DA LIBERDADE

ELISA LUCINDA: A MÃO QUE BALANÇA O BERÇO

ELISA LUCINDA – “SÓ DE SACANAGEM, VOU EXPLICAR: LULA É INOCENTE, LIMPO”

ELISA LUCINDA: QUERO A HISTÓRIA DO MEU NOME

ELISA LUCINDA: CERCADINHO DE PALAVRAS

ELISA LUCINDA: QUERO MINHA POESIA

 

 

COMENTÁRIOS

2 respostas

POSTS RELACIONADOS

moraes

ACABOU, CHORARE!

Antônio Carlos Moreira Pires menino de Ituaçú, sanfoneiro prodígio e como todo nordestino nascido, criado, escarrado e esculpido no sertão, cresce ouvindo Luiz Gonzaga no