Elisa Lucinda: Quero minha poesia

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda

 

Meu coração, pressionado por tanta pauta, se descabela à beira da escrivaninha: os escândalos e as irresponsabilidades do vergonhoso presidente, a votação do STF sobre a prisão em 2ª instância, o absurdo óleo nas praias e o descaso do governo, a verdade do Chile, as eleições na Argentina, Angela Davis no Brasil racista, Encontro Internacional do Cinema Negro Zózimo Bulbul lotado de preto mas ainda sem atrair o interesse de muitos brancos, a resistência política das feiras literárias por onde tenho andado toda semana e onde professores clamam por respeito por parte da coisa pública… Caralho! Socorro. O presente está congestionado, e tudo isso quer roubar minha poesia. A conivência de parte importante do jornalismo diante da aprovação da lei da previdência, a maravilhosa liberdade de escrever nos Jornalistas Livres, tudo isso bate à porta da urgência, querendo de mim opinião. Mas é tanto estrago… Não dá tempo nem de comemorar discretas vitórias. A Amazônia em chamas, a acusação leviana ao Greenpeace, a implosão do PSL, a censura à peça Caranguejo overdrive, o exame toxicológico que os professores precisam fazer pois o Governador do Rio de Janeiro está exigindo para ver se tem droga nas veias dos mestres; (me parece que os antidepressivos das drogarias estão liberados), o nome do presidente relacionado à cena dos crimes de Marielle e Anderson, o velho atual assassinato dos povos indígenas nas matas e dos negros nas periferias. Tudo isso quer roubar minha poesia. Quero escrever outras coisas e não estou tendo tempo de avaliar os danos que estamos sofrendo ambientalmente, sociologicamente, economicamente. É muita coisa. O neoliberalismo, em sua progressiva engrenagem macabra, quer comer os ovos dos meus versos. Na outra calçada de minha mente, mulheres de todas as etnias, mas negras, em sua avassaladora maioria, levantam faixas pelo direito ao aborto. Vários motins estão formados pelas ruas da minha cabeça. Tudo quer engolir a minha poesia.
Enquanto escrevo, um passarinho rompe o véu, interrompe meu pensamento no meio do dia e se deixa mostrar a mim, pousado sobre o galho do bougainville cor de maravilha que, muito alto, alcança a janela de cima. Bate o bico várias vezes no vidro. “Será que ele está pensando que é o céu?” Pergunta o doce homem ao meu lado, querendo se referir ao azul das cortinas transparentes. Achei bonito. O meu pensamento queria se enveredar por aquilo, andar nas matas daquela realidade onírica. Afinal, estou na roça de praia, e o vizinho querido, pescador, investigador das estrelas e ambientalista natural, nos explicou que era Sanhaço o bicador de minha janela, e que, em ritmo de primavera, ele vê seu reflexo e fica achando que é outro macho, ciscando no seu galho, no espelho da vidraça, ou uma fêmea que vê outra; enfim, coisas do amor entre aves. Mas isso do reflexo o meu amor também tinha dito antes. Queria pensar nisso, nas coisas da natureza. Mas enquanto escrevo, lembro que o presidente é inimigo da ONU, da OAB, de seus parceiros, enfim, inimigo de si mesmo e também do Brasil, o que é pior. E guardo o poema do pássaro. Deixo pra depois. Queria também chamar todo mundo pra ver a poesia vida de Solano Trindade lá na Gamboa, queria. Mas tudo atinge minha poesia. É tão triste ter vergonha do presidente, ainda mais quando se trata de alguém que, com muita velocidade, parece estar levando o país para o buraco.
No quintal de casa, há dois homens, um deles construtor, o querido Macacaranha, meu amigo. Estudou só até o 4º ano do ensino fundamental , mas faz planta de construção como ninguém; questiona engenheiros e, em geral está certo. Inteligente, habilidoso, ele conversa com o outro doce homem que diz que rico raramente é um homem que sabe construir uma casa, botar a mão na massa mesmo. É verdade sim. Eta vida separatista a nossa!
Resolvo que vou tomar banho de rio. Chega. Estou na minha semana de férias, (que a patroa permitiu a custo de muita negociação! Mereço a pausa). Que crônica, que nada. Vou em busca da lírica que é esta Vila há poucos quilômetros da Bahia, ponta mística litorânea do Espírito Santo, Vila de Itaúnas, município de Conceição da Barra, Brasil. Rodriguinho, aquele meu vizinho, tinha dito que tem medo de o óleo chegar em nossas águas e que a prefeitura está a postos. Treme meu coração. Teme. Paro na beira do rio. Um rapaz meio índio, meio preto, de nome Elizeu surge do nada e me oferece um cachimbo com um fumo dentro. Que erva é esta? É um boldo raro, ele revelou. Fumei por investigação sociológica. Acho que o ser e a erva eram lá do Amazonas. Trocamos poucas palavras. Entre nós só a silenciosa orquestra do Rio Itaúnas correndo, o assobio do vento no mato. Como uma visagem, ele desapareceu, andarilho como chegou. Terá voltado pra de onde veio?
Quis muito que a minha poesia fosse uma rede que espalhasse uma mágica invisível que impedisse o óleo de chegar à mais águas. Queria também que minha poesia se embrenhasse nas arestas dos assuntos a fim de resistir à barbárie sem abdicar de sua essência, sem precisar esconder-se ocupada em só dar lugar às notícias do nosso mundo desigual.
Nisso, vem vindo a Dira Doidinha! Passa, me olha, vem em minha direção com o filho no colo: “Oi, Elisa, eu te amo…, olha o meu amorzinho.” Que lindo ele está, Dira, um aninho? Graças a Deus, ela disse. “Ô, Elisa, eu te dou esse menino procê, cria ele pra mim, ensina letra pra ele, palavra bonita. Eu não tenho juízo, Elisa, nem dinheiro, nem estudo. Você vai ser melhor mãe do que eu. Eu não tenho preparo”. O rio passava por trás dela, por trás do rio a vegetação verde na margem, por trás da vegetação verde da margem as areias, por trás das areias o céu azul e meu pensamento nos olhos do menino. O inocente que estava sendo ofertado. Dira devia ter feito tratamento psicológico, Dira devia ter tido alguma ajuda do Estado, o criminoso Estado, que não a considera e é inconstitucional quando não garante à ela a mínima estrutura de cidadã. Está fora do jogo, não conta, não têm sobrenome. Os olhos do menino iluminados de ignorância e desamparo me fitaram lá dentro dos meus. Meu deus! Pobre Dira. Ela oferece seu filho à minha vida de privilégios. Ai que dor me causa tal verdade. Meus olhos se encheram de lágrimas: Dira, é seu esse menino, você ama ele, a gente vê! Você vai sofrer e vai me procurar querendo ele de volta. É seu menino, é o Josué, você colocou esse nome nele e me disse que achava um nome lindo. Não dá pra você cuidar de você, pra você cuidar melhor dele? Tem psicólogo no SUS, eu disse. “Ai, Elisa, sei lá ,estou tão aborrecida hoje, quando te vi me deu esperança, pensei que você podia mudar o destino dessa criança.”
Sem poder aceitar o menino, me despedi e entrei no rio para banhar meu desespero.
O país está destrambelhado, o governo, enganando inocentes ainda, está sujo até o talo, concentrado em deixar mais rico quem já é rico e em continuar com a sordidez de cagar solenemente na cabeça dos pobres e na constituição.
Quero meu verso, um final de tarde em Riacho Doce rindo à toa na Pousada do Celsão, deixando que pássaros comandem o vôo! Mas o mundo está na captura de meu poema. Socorro!
Eu quero minha poesia, o Sanhaço bicando minha janela, o beijo da boca do meu doce homem. Estou cansada das pautas, cansada das guerras. Quero é minha poesia.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

9 respostas

  1. Não há como negar. Esse é o Brasil de hj. Não vai ser fácil encontrar sua poedia sozinha, mas a união faz a força .E
    … se o povo brasileiro estiver unido, não tenha dúvida, em breve vc a terá de volta.
    O texto é tão vasto quanto a encrenca em que nos tem colocado o clã dos Bolsonaro.

  2. Minha querida amiga fico imaginando o seu sofrimento que deve ser muito grande por vc ter consciência de todas essas coisas ruins que estamos passando e que vc consegue detectar com tamanha profundeza e assim consegue acordar os gigantes adormecidos do nosso povo tão pobre e mesmo assim ainda feliz beijos sempre vc é realmente fenomenal isso é mega bonito Deus te abençoe sempre

  3. DEDUÇÃO
    Não acabarão com o amor,
    nem as rusgas,
    nem a distância.
    Está provado,
    pensado,
    verificado.
    Aqui levanto solene
    minha estrofe de mil dedos
    e faço o juramento:
    Amo
    firme,
    fiel
    e verdadeiramente.
    ( Maiakóvski )

    Teu texto e a fala de uma pessoa que acabou de sair da prisão ontem me lembrou Maiacóvsky.

Deixe um comentário

POSTS RELACIONADOS

110 anos de Carolina Maria de Jesus

O Café com Muriçoca de hoje celebra os 110 anos de nascimento da grande escritora Carolina Maria de Jesus e faz a seguinte pergunta: o que vocês diriam a ela?