ELISA LUCINDA: O PAI-HERÓI E O ROUBO DA BANDEIRA

Marcim, pai de Hugo, menino de ouro que a Covid-19 levou deste mundo aos 25 anos, é o homenageado neste dia. Ele bate seu tambor contra o ódio
Elisa Lucinda
Elisa Lucinda

No dia das mães, o Marcinho me ligou pra me dizer belezas sobre a maternidade, me cumprimentar pelo filho e pela poesia no mundo. O cara tinha perdido há um mês o filho lindo, Hugo. Um menino de ouro. Sensível, excelente DJ e exímio professor de dança de salão, com apenas 25 anos! Isso ainda era abril e a Covid-19, com o nosso alerta concentrado nos velhos, levou o jovem saudável, para desespero desse pai e dessa família. Acompanhei tudo, o estado dele, a evolução da doença, a resistente esperança até o último momento. Na penúltima mensagem antes da fatídica notícia definitiva, Marcim ainda dizia animado: “O médico mandou chamar a gente no hospital, só pode ser boa notícia.” Nada. Voltou dali viúvo de filho, órfão de filho, sei lá que nome se dá… voltou de lá golpeado inúmeras vezes no mesmo lugar, perdido, sem o rumo da existência do filho, sem o rumo que a existência de um filho dá. Pois esse ser humano, senhor Marcos Nascimento Silva, a menos de um mês da morte do filho, ainda arrumou dose de amor em seu peito para me cumprimentar pelo dia das mães?! Como assim? Fiquei tão comovida que imediatamente liguei pra ele: Meu amigo querido, que raridade generosa de ser humano é você! Como pode arranjar palavras doces pra me dizer no dia das mães, em meio a esse amargor da ausência de seu fruto?

—Minha amiga, cada vez vou compreendendo mais a honra de ter sido pai dessa pessoa por 25 anos. Tá difícil a saudade imensa mas estou de pé! Fora isso, a única coisa que me tira do sério nesse momento, que tá me tirando a paz, é o roubo da nossa bandeira, Elisa. Eles fazem manifestações debochando das mortes, indiferentes ao luto. Usam a bandeira, se vestem com a bandeira brasileira enquanto zombam dos mortos, das vítimas dessa terrível pandemia. O presidente ri da nossa dor. Debocha da “gripezinha” que matou meu filho. Mas o pior é estarem esses todos, que não valorizam a vida povo, vestidos de verde e amarelo. São minhas cores, do meu país. Eu sou verde amarelo também e me recuso a botar uma arma no meio do azul da nossa bandeira. No céu da minha bandeira não tem bala perdida nem bala achada, bala de propósito. O verde é mata. E a mata não mata indígena, pelo contrário, o protege. Tá tudo torto. Quando eu falo em Deus, na minha fé não cabe gatilho, munição. Não, tá tudo torto. Tá tudo torto. O governo fala que é pela família, mas da minha família ele se esqueceu e das que ficaram sem leitos e as centenas que morreram sem poder respirar. Eu gosto daquela camisa, meu coração veste essas cores e não é a favor da violência. A bandeira é minha também. Só isso que me tira a paz hoje.

Fiquei muda. Imediatamente me lembrei que esse mesmo homem se valeu da força ancestral que lhe é devida para, dois dias depois de enterrar o filho, gravar um vídeo alertando a todos da gravidade que o abateu. Dizendo que o jovem era a menos provável vítima da doença. Com baixíssimo estoque de egoísmo, Marcim exubera empatia, força coletivista e amor ao próximo, seja ele quem for. Logo depois do acontecido, comecei a escrever esses pensamentos, mas aí enveredei para o roubo da bandeira dentro do qual também está o roubo das palavras que não pertencem à ideologia fascista. No entanto, os mesmos que se dizem defensores da família, de Deus e da pátria, são os que criam e distribuem fake news, praticam corrupções, concordam com o assassinato de indígenas, negros, e ofensas à natureza, se insurgem armados contra mulheres, gays, lésbicas, travestis, trans, enquanto afirmam que lutam pela liberdade. São estes que ateiam fogo no congresso, no supremo, e chamam este vandalismo de liberdade de expressão. Vestidos de verde e amarelo, dizem que é censura a proibição de divulgar mentiras oficialmente e até afirmam que o número verdadeiro de mortes pela doença é que é mentira, pois “não mata tanto assim”. Então, resvalei para esse lugar semiológico, em que muitas bandeiras do campo progressista são roubadas muitas vezes por forças de extrema direita. Um jogo de fazer confusão com as palavras está em jogo. Enfim, tudo isso estava dentro da mágoa verde e amarela do meu amigo e que também eu sentia, que acabei não terminando o texto que retomo agora. Neste ínterim, o nosso herói foi descoberto pela mídia ao protagonizar a bizarra cena em que um desses “cidadãos de bem” arranca as cruzes postas ali como memória, homenagem e protesto de quem perdeu seus amores para o vírus que associou rapidamente sua letalidade ao descaso público de um país sem Ministro da Saúde em plena turbulência sanitária. Foi Marcim quem recolocou cruz por cruz na areia e, se não me engano, ele não estava entre os pais que as puseram ali. Estava sim, com a mulher Jane, caminhando, de máscara, pelo calçadão, certamente levando a dor pra tomar um pouco de sol, quando viu a violência e o desrespeito com as cruzes in memorian, e corajosamente agiu.

Marcim mostra o retrato com o filho morto, depois de recolocar cruzes arrancadas por “cidadão de bem”

Só hoje retomo o texto. Tudo isso que digo agora desse ser humano da melhor qualidade combina muito com toda a linhagem de onde ele veio. Trata-se do famoso Quilombo da Sacopã. Marcim é deste clã especial. Quem foi no Samba lá sabe: Sua estirpe é de altíssima voltagem de bondade e espírito coletivista; ou seja, aquele que não encontra sossego enquanto seu irmão, que ele nem conhece, não tiver dignidade pra viver. Digo que nem conhece porque somos todos irmãos no mundo, somos da família mundo. E até quem não presta faz parte. Fomos vizinhos na Sacopã. Marcinho também é excelente professor de dança e me deu a honra de me apresentar a Hugo e de dançar com ele algumas vezes. Maravilhoso. Marcinho é meu herói de hoje. Sua grandeza é maior, muito maior que estas páginas. Quando me mudei para Copacabana, há pouco tempo, foi ele quem fez uma assessoria impecável de instalação de vários fios e iluminação pra mim. Numa conversa me disse, entre tomadas, martelos, pregos e parafusos:

—Eu tava pensando uma coisa aqui comigo. Quando vi a Jane, minha mulher, fazendo faculdade, eu achei ela corajosa. Depois quando ela fez mestrado eu achei muito mais ainda. Aí, veio a pós-graduação, e aí me deu em mim a injeção de fazer faculdade, fazer um concurso público, algo em que eu pudesse servir às pessoas da melhor maneira, e estudar bem pra isso. Agora, só agora, minha amiga, que eu percebi que o racismo fez eu pensar que eu só podia ter o curso técnico, no máximo.

Ontem mesmo em suas postagens ele ainda disse: são cem mil mortos porque erramos nas últimas eleições. Carismático professor de humanidades, o Marcim, como carinhosamente é chamado pelos que desfrutam de sua existência diretamente, é gente pra ser imitada, seguida. Um verdadeiro influenciador. Vou falar uma coisa por final: amo meu pai, amo o pai do meu filho e admiro muitos pais atuantes que conheço e com os quais vibro. Mas no dia de hoje, dia dos pais, o Márcio é a bola da vez! É o representante da importância da paternidade no mundo, seja ela exercida por quem for. O importante é que consiga encher de amor essa paternidade. Tudo que nos espantou, tudo que fez o cara ser notícia internacional e personagem principal da minha crônica, atende simplesmente pelo nome de amor. Foi o amor dele, sua alta dosagem, seu fundamento na filosofia Ubuntu é que provocou o espanto. Marcinho pai de Hugo, que é pai de Mateus, está metido nesse trançado etnológico amoroso que bate seu tambor contra o ódio. Sou do seu Quilombo, Marcinho, e nossa dinastia vencerá.

Elisa Lucinda, Inverno quente de 2020

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