Mecenato é uma atividade de apoio artístico e cultural antiga. O mecenas escolhia e escolhe a quem patrocinar de acordo com suas crenças, valores, escolhas políticas e estéticas. Políticas públicas, por sua vez, devem responder às necessidades do setor artístico-cultural e do público, da cultura de um país, das pessoas que merecem e desejam a fruição. Políticas públicas devem, portanto, ter critérios e orientação política nítida, planejamento no tempo, mecanismos de monitoramento e participação popular para alicerçar e alavancar as funções distributiva, redistributiva ou regulatória que as embasa.
As políticas públicas são a concretização da ação governamental pelo bem de todos, conceitualmente. No Brasil de hoje, por exemplo, vivemos dois movimentos sincrônicos e contrários a essa máxima: o primeiro aniquila as políticas públicas existentes; o segundo, implementa projeto político orientado para a morte, para o extermínio dos indesejáveis, de todas as pessoas do país em situação de vulnerabilidade, a saber, indígenas, negros, idosos, populações LGBT, os mais atingidos pela letalidade do Covid-19. A relação (opressora e genocida) entre Estado e sociedade está suficientemente explicita nos números desesperadores do Covid-19, aos quais o comando genocida central interpela com um desprezível “e daí”?
O campo estatal da arte e da cultura orienta-se a mesma cartilha. A trilha sonora de fundo é uma canção imposta às crianças durante a ditadura civil-militar: “esse é um país que vai pra frente / de uma gente unida e tão contente / esse é um país que vai pra frente / de um povo unido de grande valor / é um país que canta, trabalha e se agiganta”… leve, sereno, porque milhares de corpos nas costas desse desgoverno não pesam. E, segundo o entendimento manifesto por eles, gente vive é pra morrer mesmo, é o fim de todo mundo, e não importa que seja em condições indignas e sofridas, impondo aos profissionais de saúde a decisão sobre quem viverá e quem morrerá na ocupação dos poucos leitos de UTI e respiradores existentes no Sistema Único de Saúde.
Não havendo políticas públicas para a arte e a cultura, o setor privado entra no jogo com as suas políticas, programas e projetos próprios (essa é a natureza do setor privado), seu mecenato, e nós, agentes da arte e da cultura, abandonados pelas políticas públicas que deveriam garantir nossa existência nos tempos de vacas magras ou de quando a vaca vai pro brejo, como agora na quarentena, produzimos distorções apaziguadoras como “o Sesc é o nosso ministério da cultura”. Ora, o Sesc é o Sesc, é Sistema S, não faz parte da estrutura do Estado como um ministério ou secretaria nacional de cultura; recebe dinheiro público, é verdade, e em diálogo/tensão com as demandas sociais diversifica programações, atende interesses de diversos públicos, abre espaço para as novidades, resgata artistas consagrados que, entretanto, não têm segurança material, às vezes, sequer segurança alimentar, contudo, isso não se confunde ou não pode se confundir (aos nossos olhos de artistas) com a ação esperada de um ministério da cultura.
Os bancos, ah os bancos, aqueles que, de acordo com o ministro da economia do governo genocida — são apenas seis no Brasil, para os quais duzentos milhões de idiotas (nós) dão o seu dinheiro — os bancos também constroem a própria política de apoio artístico-cultural, de acordo com sua orientação interna, pela escolha da arte e da cultura à qual queiram associar sua marca. Isso pode acontecer por meio de convites personalizados, concursos, apoios pontuais direcionados a certos grupos, editais públicos de empresa privada (abertos a participantes de perfil determinado pelo instrumento de seleção). Tais editais podem ser frequentes (aqueles que a gente espera ansiosamente todos os anos), eventuais e/ou emergenciais.
Artistas brasileiros, como é de conhecimento público, sobrevivem em níveis diversos de precariedade, na literatura, por exemplo, volta e meia recebemos notícias de escritores consagrados (mulheres pouco chegam à consagração) que precisam de apoio financeiro de amigos, leitores e outras pessoas solidárias para pagar aluguel e outras contas básicas, por vezes até para comer. Trata-se de escritores consagrados pela crítica e pelo público, estudados nas universidades, reconhecidos no exterior, com obras traduzidas, mas sem condições mínimas de sobrevivência garantidas em fases da vida marcadas pela senioridade, fragilidade física e doenças, para as quais não se dispõe de recursos (financeiros, cuidadores, medicamentos) para enfrentar. Compositores reconhecidíssimos e fundamentais para a história da canção brasileira, que formaram gerações de outros músicos e a consciência política de um país inteiro, cujas famílias são obrigadas a recorrer a vaquinhas virtuais para cobrir despesas de saúde oriundas de processos agudos e/ou longos de adoecimento. Esses são casos extremos de artistas que conseguiram se realizar no ofício. Há também os milhares que nunca alcançaram a consagração e estão igualmente jogados às traças.
De outro lado, na França, sem esquecer a exploração contínua de colônias e ex-colônias, existem políticas para os artistas desempregados ou em períodos de licença criativa, nos quais o Estado os subsidia; em contrapartida, quando estão trabalhando, um percentual dos rendimentos desses profissionais é recolhido para um fundo comum que lhes dará suporte quando necessário.
O desemparo social e o desespero de criar contando com alguma remuneração que nos deixe em paz para fazê-lo, nos leva a esperar que o setor privado ocupe esse espaço deixado pelo Estado insuficiente e neoliberal. Os editais dessas instituições privadas não darão conta de todos os artistas relegados a níveis diversos de vulnerabilidade e escutaremos reclamações distintas e defesa de pontos de vista baseados na trajetória pessoal, muitas delas justas.
Para enfrentar esse problema, penso que os editais das instituições privadas voltados ao setor deveriam realizar dois movimentos simultâneos: o primeiro, estudar as políticas de ação afirmativa e buscar consultorias nessa área, pois seria a forma mais eficaz de não colocar em concorrência, principalmente por pequenos montantes financeiros, artistas que conseguem pauta em teatros com capacidade para centenas de pessoas, patrocínio de empresas poderosas, bons rendimentos pela utilização da imagem e artistas que se apresentam em saraus, escolas, bibliotecas, botecos, casas ou outros espaços periféricos mantidos com recursos dos próprios grupos; tampouco misturar escritores que estão publicando o primeiro livro ou mesmo que ainda não publicaram e outros que já têm várias obras publicadas; autores que bancam os próprios livros ou publicam por editoras independentes e aqueles de editoras que pagam adiantamento para o/a profissional, que têm banners e espaço comprado para exposição de livros nas livrarias da moda; dinheiro polpudo para publicidade do livro e circulação de autores.
A concorrência deve acontecer entre artistas de trajetórias similares, assim, você diferencia o artista consagrado que não tem onde cair morto (tem prestígio e reconhecimento dos pares, da crítica e do público, mas não tem trabalho remunerado que lhe permita viver com conforto ou pelo menos com dignidade) do artista consagrado que, numa situação de exceção como a que vivemos, pode cobrir despesas de seus auxiliares forçosamente inativos. Exemplo interessante foi dado pela cantora Ludmilla. Logo que começou a quarentena e os shows foram cancelados, a artista adiantou valor equivalente a dez cachês para a equipe que lhe dá sustentação. É assim que ela trata seus colaboradores, como gente que lhe dá sustentação para ser quem é e para ter o desempenho artístico que tem, pessoas pelas quais, ela, na condição de timoneira do Transatlântico Ludmilla, é responsável. É bom um exemplo, quem sabe inspira a alguém?
No audiovisual existe um procedimento muito comum que é o seguinte, a área de captação de recursos inscreve-se em todos os editais possíveis para alcançar o orçamento final da película. Desse modo, um filme orçado em três milhões de reais, não participa apenas de editais de grandes somas como trezentos, quinhentos mil reais. Se houver um edital de cinquenta mil reais e eles estiverem dentro do perfil, concorrerão e, a depender da comissão julgadora, ganharão. Aqui entra o segundo movimento que as instituições privadas promotoras dos editais precisam fazer, quer seja, compor comissões de seleção multifacetadas, nas quais haja profissionais capazes de fazer leitura social e política das obras e de seus proponentes, não apenas do valor estético.
Imaginemos um edital amplo, daqueles que cabem tudo (em certos casos isso é uma conquista, abre possibilidade para projetos interdisciplinares e outros que carecem de bordas mais fluidas para serem analisados),de apoio à cultura negra, por hipótese. Suponhamos que haja propostas tecnicamente viáveis, criativas, inovadoras, feitas por cineastas e equipes de primeira viagem, que se apresentam para realizar o primeiro filme. Na mesma palheta, cineastas consagrados que, de maneira honesta e tecnicamente competente, propõem-se a utilizar aquele pequeno valor para o pagamento de consultores na realização de filme sobre um personagem fundamental para a compreensão do Brasil negro. Será preciso contar com uma comissão julgadora apta a ponderar: “minha gente, vamos destinar cinquenta mil reais pra um projeto de curta metragem muito legal e viável, de uma equipe iniciante ou que ainda não contou com aportes financeiros significativos na carreira, ou para o cineasta fantástico que tem parceria com a Globo Filmes e usará esse dinheiro para pagar o cachê dos consultores de sua megaprodução?” Tudo é importante, os consultores, inclusive, mas não gastemos mais tempo e teclado discutindo a obviedade do que acabei de argumentar. É preciso separar as coisas e colocar em avaliação trajetórias similares.
No mais, que tratemos de lutar para derrubar esse desgoverno e para voltarmos a ter condições de discutir políticas públicas para a arte e a cultura.
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