por Mateus Maciel
“Tenho apenas 14 anos de idade e moro no Complexo da Maré. Eu só quero pedir uma coisa a vocês, policiais e bandidos: por favor, parem de matar inocentes”. “Acham que a gente está acostumado com os tiroteios, mas todos os dias de confrontos são uma nova aventura de terror”. “De tiros eu não tenho medo, mas o helicóptero me deixa em pânico”. As frases, escritas por crianças e adolescentes entre 11 e 15 anos, da Maré, são uma resposta à iniciativa do governador Wilson Witzel de criar cartilha com instruções a moradores de favelas sobre como agir durante operações policiais. A ‘‘cartilha’’ dos jovens será entregue no Palácio Guanabara na próxima segunda-feira.
Por volta das 11h30 desta quinta-feira, mais um tiroteio entre facções criminosas começava na Nova Holanda, onde jovens do Projeto Uerê, que idealizaram a cartilha, conversavam com a equipe do EXTRA. Uma das meninas, de 13 anos, pediu licença para ir embora. Ela precisava chegar em casa a salvo antes que o confronto se espalhasse pelo restante da comunidade.
A iniciativa começou com Manoela (os nomes nesta reportagem são fictícios para preservar os estudantes). Aos 15 anos, ela disse que já teve a casa invadida por policiais durante uma incursão. Ao ler no jornal a ideia de Witzel, decidiu escrever uma cartilha com papéis invertidos: ‘‘O que os policiais não devem fazer quando entram nas comunidades?’’.
— Lido com isso todos os dias. São situações que me deixam em pânico e me sinto impotente. Vivendo na favela a gente aprende — disse ela.
A realidade incomum para boa parte da população do Rio é corriqueira para os moradores de favelas: tanto em confrontos entre traficantes como em operações policiais. A plataforma Fogo Cruzado mostra que houve 5.513 disparos na Região Metropolitana de janeiro a agosto deste ano.
— Aqui a situação é muito complicada. Montamos uma metodologia especialmente para crianças e jovens de escolas públicas da comunidade que têm bloqueios cognitivos e emocionais devido à exposição constante a traumas e violência — explicou Yvonne Bezerra de Mello, criadora do Projeto Uerê.
A sede da ONG tem no telhado uma placa amarela com o alerta ‘‘Escola. Não atire’’. O objetivo é evitar tiros de policiais em helicópteros. O projeto informa que já ajudou mais de 3 mil estudantes desde 1998 e hoje tem cerca de 300 nos turnos da manhã e da tarde.
O termo ‘‘guerra’’ é utilizado repetidamente pelas crianças e adolescentes em sala de aula para se referir ao clima na Maré. A apreensão é tanta que todos estão em grupos de conversas em aplicativos de mensagens e se comunicam quando começam as operações.
Matheus, de 14 anos, lembra a primeira vez em que ficou na linha de tiro entre criminosos e a polícia. Ele estava em uma van com a mãe, voltando da escola:
— Não sabia como reagir e só conseguia pensar no meu pai que trabalha fazendo transporte escolar pela Maré. Tive muito medo de nunca mais vê-lo.
No último mês, enquanto tomava banho para ir a escola, Vitória, de 14, ouviu o helicóptero sobrevoar sua casa. Não durou muito e as rajadas começaram. De repente, uma bala atravessou a janela do banheiro, a menos de 1m de onde ela estava.
— Vou para a escola porque quero tentar melhorar de vida e sair daqui — disse Vitória
Apesar de ainda estarem na época de estudar e brincar, a infância e adolescência desses jovens têm uma realidade muito diferente do ideal. Kauan mora com os pais e a irmã mais nova, de dois anos. Ele conta que no início do ano, durante uma operação policial, recebeu um telefonema do pai pedindo para ele correr para casa.
— Ele me ligou desesperado, busquei minha irmã e corri por dez minutos até a minha casa. A operação estava acontecendo em uma outra parte da Maré e não podia deixar ela sozinha na creche — relata o menino, explicando que o pai ficou no meio do fogo cruzado.
Traumas são algo corriqueiro e muitas das crianças sofrem de insônia, crises de ansiedade e tem acompanhamento psiquiátrico. Tudo decorrente dos incessantes tiroteios na disputa dos territórios entre criminosos e das operações policiais.
A professora Joseanne Ferreira, de 56 anos, dá aula há 15 anos no Projeto Uerê. Segundo ela, os diálogos são o melhor remédio para acalmar os alunos.
— Aqui ficamos na divisa entre facções rivais. Quando não são confrontos entre eles, temos as operações em horários escolares. Isso precisa mudar, as crianças ficam escondidas no corredor e as pessoas têm tratado isso como se fosse algo natural. Não é normal. Eles deveriam estar brincando e estudando sem preocupações — afirma a professora.
Segundo o governo do estado, a cartilha citada por Witzel faz parte do Plano de Segurança e Defesa Social, elaborado pelas secretarias de Polícia Civil e Polícia Militar, Defesa Civil, Ministério Público e Judiciário, e será validada pelo Conselho de Segurança Pública do estado. Procurado pelo EXTRA, o gabinete do governador orientou que as secretarias das polícias comentassem. Até o fechamento desta reportagem, os órgãos não se pronunciaram sobre a cartilha dos jovens da Maré.
Uma resposta
Que tristeza! Que país é esse?