Blocolândia, o carnaval da Cracolândia

 

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Foto: Leo Savaris / Coletivo Nação

Já dizia o refrão da marchinha do primeiro desfile do Blocolândia, em 2015:

“Alô família, O bloco da pedra tá na rua

A rua é minha, A rua é sua, Ninguém nunca tá só

Nessa vida crua e nua.”

Se o carnaval é a maior festa de rua do mundo, como se propaga aos quatro ventos, nada mais verdadeiro do que esse bloco criado nas redondezas da Cracolândia, no bairro da Luz. Como disse Cristiano Vianna, da CasaRodante,“se aqui é Cracolândia, aqui também é Luz.”

Imagens: Sato do Brasil / casadalapa para Jornalistas Livres. Edição: Eduardo Nascimento

O bloco foi criado com o fluxo de usuários de crack e o apoio dos vários grupos, coletivos e organizações que povoam o território. O coletivo Sem Ternos, a casadalapa com a CasaRodante e o Cedeca Interlagos com o Projeto Oficinas, juntos à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, CRATOD — Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas, Consultório na Rua, independentes, e a impensável parceria entre o Programa Recomeço, do Governo do Estado, e o Projeto De Braços Abertos, da Prefeitura da Cidade de São Paulo. Como tudo isso se organiza? Raphael Escobar, do Projeto Oficinas, traduz bem: “Todos os trabalhadores da ponta se unindo e pensando em algo em coletivo. Além de ser Recomeço, Governo, Prefeitura, mas é uma coisa que todo mundo tá a fim, sabe? Produzir algo que faça sentido pro pessoal da Craco.”

E o bloco teve de tudo que um bom bloco tem que ter. Teve madrinha de bateria? Sim. Destaques com suas fantasias luxuosas? Também. E diretor de bateria? Um mestre. Ala das passistas? Das boas. Ritmistas do mundo do samba? Também. Puxadores ensandecidos? Claro! Carro alegórico? Às pampas. Até a ala dos garis fechando o desfile teve.

Aqui é Cracolândia, aqui é Luz

O bairro da Luz é uma região complicada da cidade, centro de uma disputa política clara. Mas os problemas do bairro vão muito além do crack, um lugar envelhecido onde a solidão e o alcoolismo são muito perceptíveis. Se existe uma iniciativa inovadora de Redução de Danos, existe também uma especulação imobiliária gigantesca se aproveitando de uma vizinhança frágil. Contribui também a entrada de empresas predadoras na região, impedindo o livre acesso às ruas pelos seus próprios moradores, através de milícias de seguranças de calçada. Abandonada depois de vários anos em que a sua estrutura foi sendo metodicamente comprometida, vários esforços isolados vêm acontecendo na região para combater esse cenário. Mas os esforços não se complementavam e em muitos momentos, atrapalhavam uns aos outros. Com a entrada de novos atores de coletivos e esforços que já se movimentam no território há mais de dois anos, como a CasaRodante, o coletivo Sem Ternos e o Projeto Oficinas, as pontas que trabalham nas instituições governamentais se aproximaram e os trabalhos de inclusão no fluxo de usuários se intensificaram.

Pra estar aqui tem que ser gente da gente

Consideremos nossa cidade, nossa vizinhança. Todos somos vizinhos. E para vizinho a gente dá bom dia, a gente para e olha nos olhos, a gente aperta as mãos, a gente abraça, a gente cuida. E todo vizinho tem sua história. Respeitemos, então, cada história. Quem nunca teve seus problemas que achava ser impossível resolver? Às vezes, as coisas saem do controle. Não nos compete julgar, nos compete não abandonar a nossa cidade, as nossas ruas e quem faz parte dela. Todos somos vizinhos.

Em 2014, muitos eventos aconteceram na Luz e formaram um sentimento de pertencimento que o fluxo nunca teve. O cinema na rua e os mutirões de arte e jardinagem, produzidos pela CasaRodante ajudaram muito. Em 2015, as atividades aumentaram e surgiu o primeiro carnaval na Cracolândia, junto ao Projeto Oficinas, de forma ainda bem tímida, com a participação de ritmistas contratados e tudo feito com a ajuda dos carroceiros e das pessoas mais próximas. Aconteceu também a Festa da Primavera, a mobilização contra a apreensão das carroças da região feita pelo Coletivo Sem Ternos, e a Semana da Consciência Negra, quando aconteceram as rodas de Capoeira do Mestre Baiano e ensaios de bateria do Mestre Anderson.

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Foto: Gabriella Moura / Outros Carnavales

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Fotos: Sato do Brasil / Jornalistas Livres

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Foto: Leo Savaris / Coletivo Nação

Blocolândia: Coração Valente!

A ideia de uma bateria no fluxo foi sempre do Mestre Anderson, que tentou sua implantação durante um bom tempo até conseguir o apoio do Programa Recomeço. Ali, conseguiu uma sede e espaço para guardar os instrumentos doados. Nesse momento, os coletivos e as pontas dos projetos de Saúde permitiram a maior cartada de um programa de Redução de Danos. Só poderiam participar da bateria os usuários que estivessem cadastrados e trabalhando no De Braços Abertos. O nome foi dado pelos próprios usuários na época da campanha presidencial do ano passado, mesmo que isso não signifique um apoio uníssono: Bateria Coração Valente. Toda semana tinha ensaio.

O fluxo sempre respirou samba. Tem hip-hop, tem funk, mas o samba impera. Uma radio sintonizada e o batuque começa. Esse é o ritmo do fluxo. Assim, muitos ritmistas que já defenderam outras agremiações do samba paulista aportaram na Coração Valente. Colorado do Brás, X-9 Paulistana, Peruche, Camisa Verde, Vai-Vai. As escolas mais tradicionais do carnaval paulista dando um pouco de seu ritmo para o carnaval da Cracolândia.

Os coletivos e os próprios usuários deram gás para a criação do bloco carnavalesco. Oficinas de máscaras e de instrumentos reciclados foram produzidos. Também rolou uma oficina de confecção de fantasias e adereços e, assim, o Blocolândia surgiu no cenário do carnaval paulista. Tudo dominado e produzido pelos usuários e amigos da região. O samba-enredo foi composto junto ao fluxo, músicos, artistas, moradores das redondezas e a Coração Valente deu o tom.

O Blocolândia e a Coração Valente são um organismo só. Vivo e pulsante. Assim, essa parceria construiu um dos mais belos e interessantes causos do carnaval paulista.

Chegou, chegou, chegou! A nossa comunidade firmou

Como diziam os antigos.. Até do lixão nasce flor

Venha conhecer a nossa nova comunidade

De braços abertos.. É o recomeço da liberdade

Pra viver aqui .. Tem que ter coração valente

Por isso eu digo ao mundo ..Para estar aqui

Tem que ser gente da gente!

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Foto: Sato do Brasil / Jornalistas Livres
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Foto: Leo Savaris / Coletivo Nação
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Foto: Leo Savaris / Coletivo Nação

De braços abertos é o recomeço da liberdade

Quem vive a rua merece se divertir nela também. Num território em que a polícia constrói um quadro permanente de tensão e violência e as empresas criam um exército de seguranças, a melhor cena foi a de um ritmista que saiu de sua posição na bateria, se dirigiu à porta de vidro de uma empresa em que os seguranças, do lado de dentro, não tinham nenhum receio de mostrar a sua indisposição com o bloco, e com as mãos desenhou um coração no vidro. Uma demonstração de cidadania muito maior que qualquer ação dessas empresas que invadiram o bairro de forma danosa e virulenta.

Talvez o que Carlão, um dos foliões que carregou o tempo todo um cetro de realeza, resumiu, contemple essa ideia: “Pra mim, tá aqui, nesse Blocolândia… é uma mudança, uma mudança na vida. É uma luta, brincando.”

Todo o dia no fluxo é um dia de luta. Combater o preconceito, o desconhecimento, é fundamental nessa alegria contagiante para rebater os incrédulos. Muitos moradores se juntaram à folia como em qualquer outro bairro da cidade. Dona Carmen, uma senhora que mora no bairro há tanto tempo que nem se lembra mais, nem sabia que era o bloco dos usuários: “Meu filho, tá tudo bonito, tá todo mundo se divertindo, né mesmo? Que diferença faz?” Novamente Escobar, também um dos puxadores do bloco complementa:“Com o preconceito todo que tem na vizinhança, quando você vê, tá todo mundo com a cabeça pra fora na janela, dançando junto, descendo junto pra dançar com a galera, é um ressignificar do que pensam sobre eles e acho isso importantíssimo. É um ocupar a cidade, ocupar o espaço que eles tem, mas com empoderamento deles.” O outro puxador do bloco, o Macaco Louco emendou: “É tudo nosso! Aqui tem história.”

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Foto: Leo Savaris / Coletivo Nação

Em tempos que a grandiosidade do carnaval de São Paulo está tomando conta das ruas, nós sempre pensamos naqueles blocos tradicionais, de amigos e de amigos de amigos, uma verdadeira festa de comunidade, uma família. Aqueles pequenos blocos, onde todo mundo se conhece e canta e dança junto. O verdadeiro carnaval de rua na sua essência. Nada mais verdadeiro, nada mais comunitário, nada mais familiar que o cortejo do Blocolândia e Coração Valente. Pontuou Julio Dojcsar: “Quem tá na rua, tomando a rua, não tem Portolândia aqui não, é mostrar que por mais que a galera seja usuária de drogas, tá todo mundo vivo. Antes de ser usuário, já era uma pessoa, continua sendo uma pessoa.” Simplesmente a alegria estampada no rosto, no ritmo, na batucada e no sorriso como qualquer morador dessa cidade merece ter. Como a madrinha de bateria, que sempre que a Coração Valente se ajoelhava, numa convenção inventada pelo Mestre Anderson, ela, impávida e dona de si, evoluía maravilhosa por entre os integrantes da “furiosa”. Como a ala dos tamborins, que abria a frente da bateria com 3 ritmistas grávidas. A molecada já nascendo no ritmo. E a felicidade dos foliões que, de mão em mão, empunhava com respeito e alegria, o estandarte do bloco.

Ao terminar o circuito, duas horas de batucada e samba no pé, muitos ritmistas e foliões pararam pra se abraçar. Agradecimentos mútuos e a certeza de terem feito algo belo nessa cidade. A última ala, feliz da vida, foi a dos garis da Prefeitura. Acompanharam todo o trajeto varrendo, sambando, dançando.“Valeu, hein, gente?”, gritou um deles ao guardar seus instrumentos de trabalho. No fim do cortejo, dois ritmistas se abraçavam em meio à lágrimas e pulos de alegria. Foi então que um se virou pro outro e disse baixinho: “O baguio é nosso!”

Ano que vem tem mais!

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Foto: Leo Savaris / Coletivo Nação

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Fico emocionado de ler essa matéria, no epicentro de escândalos milionários, realizados pelos nossos “escolhidos”, me deparo com esse antagonismo. Precisamos mais do que nunca de assumir nosso Estado, assumir nossas responsabilidades de cidadãos, essa causa é de todos nós. O movimento se torna grande quando nosso olhar se torna simples.

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