A notícia de que Donald Trump e sua esposa, Melania, testaram positivo para o coronavírus caiu como uma bomba na política estadunidense e global. Além das implicações práticas que esse acontecimento traz para as eleições americanas em novembro, a divulgação dessa notícia/evento e suas repercussões são um bom exemplo da condição atualista de nosso tempo.
Mateus Pereira, Valdei Araujo, Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana*
Foi o próprio Trump quem deu a informação, por meio de sua conta no Twitter, na madrugada da última sexta-feira, 2 de outubro. Após subestimar, durante meses, a gravidade da pandemia, o atual presidente americano recebeu o diagnóstico de COVID-19, precisou ser internado e permanecer sob cuidados médicos, depois de apresentar sintomas sérios da doença. Portanto, Trump agora sente, na própria pele, a capacidade de contaminação do vírus que ele tanto subestimou. Só nos EUA, quase 7,5 milhões de pessoas foram atingidas, e mais de 200 mil morreram. De imediato, a imprensa conservadora tratou a questão como o ataque de um inimigo invisível. Certamente, para aqueles que desde o começo se recusaram a percebê-lo.
A notícia da infecção do candidato republicano é mais um ingrediente no caldeirão agitado e cheio de incertezas das eleições presidenciais americanas. Desde o momento em que Trump veio a público informar sobre o seu diagnóstico, muitos se perguntaram se era realmente verdade, ou se seria mais uma fake news do agitador, para mais uma vez conturbar as eleições e alimentar a guerra cultural. Talvez nunca tenhamos uma resposta satisfatória para o fato, porque, paradoxalmente, apesar de sermos parte de um tempo que promete a total transparência e exposição, a verdade ainda é capaz de se esconder.
Nossas dúvidas são mesmo justificáveis, considerando o histórico de mentiras e desinformação do presidente estadunidense. Como mostra a pesquisa feita pela Cornell University, Trump foi a principal fonte para a difusão de desinformação a respeito da pandemia de COVID-19. A pesquisa demonstra que dos 38 milhões de artigos analisados sobre a pandemia, 1,1 milhão continham desinformação, e destes, 38% citavam algo que Trump teria afirmado.[1]
Ainda que os principais veículos de notícias tenham confirmado o diagnóstico positivo de Trump para o coronavírus, não tem sido possível dissipar a densa nuvem de confusão e incerteza que rodeia esse acontecimento.
Argumentamos em livro recente, Almanaque da Covid-19 [2] que uma das características do atualismo é a explosão de notícias em fluxo contínuo, no qual o valor de verdade da informação se confunde com o seu valor de novidade, ou seja, sua atualização. A expansão dos canais de notícia 24 horas e das novas plataformas digitais se alimentam justamente dessa pulsão atualista pela atualização constante. Confirma o nosso argumento o tweet de Trump a respeito da sua contaminação pelo coronavírus: diversas empresas jornalísticas dos EUA disponibilizaram na internet serviços de “atualizações ao vivo” dedicadas somente a esse fato, misturando nessas plataformas informações verificadas, opiniões e especulações sobre o estado clínico do atual presidente e suas repercussões para o processo eleitoral americano.
Sob a estrutura atualista surge a crença de que estar atualizado com as notícias é o mesmo que estar certo. No entanto, ao diluir as fronteiras entre fato e opinião, e pelo próprio fluxo acelerado de produção e circulação da informação – consequência da concorrência feroz por ser mais rápido do que os outros – o resultado é acentuar o ambiente de dúvidas e incerteza, visto que essa estrutura dificilmente contribui para a criação de referências estáveis por meio das quais possamos nos orientar no mundo.
Um sintoma claro desse ambiente atualista é a grande confusão com relação ao real estado clínico do presidente. Inicialmente, a equipe médica de Trump afirmou em entrevista coletiva, no último sábado, dia 3, que o presidente se encontrava em bom estado de saúde, sem dificuldades para respirar ou caminhar, sem a necessidade de suporte de oxigênio, embora sem apresentar alguma previsão de alta.[3]
O próprio Trump gravou um pequeno vídeo, com a clara intenção de despertar a empatia do público, dizendo que estava se sentido bem e disposto a “fazer a América grande de novo”, e que retornará às atividades de campanha em breve.[4] Acrescentou que lutará contra o vírus em nome das milhões de pessoas infectadas nos EUA e no mundo, e afirmou: “Nós vamos derrotar esse coronavírus, ou como quer que queiram chamar isso”. O candidato ainda caracterizou os medicamentos que tem tomado para enfrentar a doença como “milagrosos” – dentre os quais não se encontra a cloroquina, substância xodó da extrema-direita.
Na nova ordem da informação, a cloroquina sai de cena sem que Trump e seus apoiadores façam qualquer autocrítica aos seus discursos anteriores. Assim, ela foi relegada ao museu dos bagulhos, para usarmos uma expressão da tradução brasileira do romance que serviu de base para o filme Blade Runner. No romance, bagulho é explicado como um tipo de lixo futurista, que ganha vida própria e entulha o mundo conhecido tornando-o inabitável para os humanos. Hoje, replicantes são as fake news e estamos todos em busca de bons caçadores.
Nessa situação, a cloroquina guarda também alguma semelhança com a ideia de obsolência programada, tal como é definida pela Wikipédia, a saber: “Obsolescência programada é a decisão do produtor de propositadamente desenvolver, fabricar, distribuir e vender um produto para consumo de forma que se torne obsoleto ou não funcional especificamente para forçar o consumidor a comprar a nova geração do produto.” No caso, o vendedor é o presidente da maior democracia do mundo.
No livro Espaços da Recordação, Aleida Assmann, desenvolve uma interessante relação entre o arquivo e o lixo a partir da ideia de que, em nosso tempo, o que não é guardado é descartado. A esse respeito ela cita o trabalho do artista russo-americano Ilya Kabakow que criou um pequeno museu de “bagulhos” e “lixo”, onde encontramos objetos esquecidos e rejeitados. Parece ser o destino da cloroquina, que afetou, das mais diversas formas, a vida de inúmeras pessoas? Talvez. Mas, só depois que algumas “autoridades” mundiais conseguiram “descartar” a superprodução do medicamento. Sabemos que, em um grande país do sul do mundo, o exército nacional tem um estoque para 18 anos, considerando a produção dos anos anteriores, utilizada para o combate contra a malária.[1]
Mas, no mesmo sábado, dia 3, surgiu uma notícia divergente sobre a saúde do presidente estadunidense. Desta vez, o chefe de gabinete da Casa Branca, Mark Meadows, disse a repórteres que Trump não estava em um caminho claro de recuperação da COVID-19, e que, nas últimas 24 horas, alguns de seus sinais vitais eram “muito preocupantes”.[5] Além disso, o jornal The New York Times divulgou a informação, coletada a partir de duas fontes próximas ao presidente americano, que Trump teve problemas para respirar durante a última sexta-feira, levando os médicos a darem a ele oxigênio suplementar e, por esse motivo, levaram-no para o hospital militar Walter Reed, em Maryland, onde o presidente encontrava-se internado.[6]
No fim da tarde de segunda-feira, dia 5, Trump recebeu alta hospitalar e deixou o hospital Walter Reed. A partir de agora, o presidente dos EUA seguirá com o tratamento na Casa Branca. Chegando na residência oficial, Trump posou para os fotógrafos e tirou a máscara. Mas o médico oficial da Casa Branca, Sean Conley, declarou que a saúde de Trump ainda não está totalmente controlada.
Diante de informações tão confusas e discrepantes, como podemos nos situar com relação à infecção de Trump pelo vírus a partir de uma base de referência minimamente estável e segura? Frente a esse quadro, somos empurrados a continuar acompanhando o fluxo de notícias a respeito de como o atual presidente americano efetivamente está, pois essa questão é decisiva para o modo como o processo eleitoral americano irá transcorrer daqui em diante.
Aliás, os impactos do diagnóstico de Trump para a campanha eleitoral é tema de muitas dúvidas e especulações entre os analistas estadunidenses e brasileiros, pois uma das bases fundamentais de sua campanha era, justamente, a realização de comícios com a presença física de seus apoiadores – inclusive, Trump se gabou desse fato durante o último debate presidencial, sugerindo que Joe Biden não fazia o mesmo porque “ninguém quer ouvi-lo”. Nesse sentido, a contaminação do atual presidente pelo vírus traz certamente grandes impactos para a sua campanha, pois afeta a sua agenda de comícios e o força a se ausentar durante o período de quarentena.
Mas, como falamos em nossa última coluna [7], Trump é um exímio surfista em nosso tempo atualista. Apesar de ver seu plano de campanha colapsado, em função do coronavírus, esse fato dá a ele uma superexposição na mídia, ao passo que a campanha de Biden e seu nome tendem a perder bastante espaço na cobertura dessas eleições. Isso permite, ao atual presidente, a chance de chegar ao dia da eleição como o assunto principal do país, em uma pauta que não é diretamente negativa, em especial, entre seus apoiadores e potenciais simpatizantes.
Se por um lado, pode-se cobrar de Trump a prestação de contas por sua conduta de menosprezo à gravidade do vírus, por outro, o seu diagnóstico pode motivar a sua base de apoiadores a comparecer às urnas e a engaja-los, ainda mais, na tarefa de convencer alguns eleitores indecisos. Isso pode ser decisivo em um processo eleitoral tão caótico e acirrado, como o dos EUA. Votos que podem ajudar Trump a questionar uma eventual vitória apertada de Biden, produzindo uma crise sem precedentes e com impactos no Brasil, inclusive. Afinal, ele tem ameaçado dar um golpe caso perca de forma apertada. E é justamente disso que se trata.
Guardadas as devidas proporções, podemos traçar uma relação entre o diagnóstico de Trump, isto é, o acontecimento dele ter se contaminado pela COVID-19 a menos de um mês da eleição e o episódio da facada de Jair Bolsonaro, durante a campanha de 2018, no Brasil. Além de ter provocado a empatia em parte importante do eleitorado brasileiro, que o viu como uma vítima, aquele fato colocou Bolsonaro no centro das atenções da mídia por muito tempo. Essa superexposição midiática o fez ser mais conhecido entre o eleitorado nacional, e foi um fato decisivo para a sua vitória na última eleição – como afirmou o cientista político Jairo Nicolau em entrevista recente.[8]
Há, certamente, diferenças importantes entre o episódio da facada de Bolsonaro e a infecção de Trump pelo novo coronavírus. A começar pelo fato de Trump já ser o atual presidente do país. Mas a questão é que, em nosso mundo atualista, estar constantemente exposto na mídia pode ser definidor. Assim, a própria confusão a respeito de seu estado clínico, como dissemos acima, contribui para a sua superexposição, pois na configuração atualista, a produção constante de notícias (verdadeiras ou simuladas) é o que importa. E mesmo dentro de um hospital, e em tratamento, o presidente americano conseguiu alcançar esse objetivo.
Em pouco tempo saberemos as consequências, pois ao contrário do que a condição atualista pode querer nos iludir, as ações têm consequências. O problema é que a “névoa” produzida pela desinformação, simbolizada aqui pela exposição da cloroquina no “museu dos bagulhos”, tem como um de seus objetivos nos impedir de perceber as consequências de determinadas ações – mesmo que seja muito difícil imaginar hoje a extensão de tais consequências, dada as especificidades do atual desenvolvimento técnico, em especial, em tempos de revolução digital. Como destaca o filósofo Günther Anders, nós somos cada vez mais incapazes de imaginar o que estamos de fato produzindo em termos de técnica e governo. As vidas perdidas, tanto nos EUA como no Brasil, durante essa pandemia, são uma prova disso, infelizmente. A democracia está em risco em muitos lugares, inclusive no Império Norte-Americano! E para terminar: os familiares das vítimas da ilusão da cloroquina jamais esquecerão esse crime!
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=bYz-D0mefxI
[2] https://www.amazon.com.br/Almanaque-COVID-19-esquecer-hist%C3%B3ria-presidente-ebook/dp/B08BX1CX55/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&dchild=1&keywords=almanaque+da+covid&qid=1601822251&sr=8-1
[3] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/03/donald-trump-covid-19-coronavirus-medicos-eua.htm
[4] https://www.youtube.com/watch?v=0n4D8QyRmsQ
[5] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/03/trump-saude-covid-19.htm
[6] https://www.nytimes.com/2020/10/03/us/politics/trump-covid-updates.html
[7] https://jornalistaslivres.org/o-primeiro-debate-presidencial-nos-eua-e-a-crise-da-democracia/
[8] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-09-27/jairo-nicolau-bolsonaro-e-uma-lideranca-inequivoca-e-um-lula-da-direita.html
[1] https://extra.globo.com/noticias/brasil/exercito-brasileiro-tem-estoque-de-cloroquina-para-18-anos-rv1-1-24500378.html