Hoje, 29 de agosto, é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. A data foi escolhida durante a realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que ocorreu 1996. Para ilustrar a importância desta visibilidade, veja três relatos de mulheres lésbicas sobre como é resistir, diariamente, numa sociedade patriarcal.
A volta pra casa
Helena Martins
Muitas vezes eu penso, mesmo ciente de que esta pode ser uma perspectiva informada pela auto sabotagem, que a lesbianidade é algo muito recente em minha vida e por isso não tenho condições ou até mesmo o direito de falar sobre ela e sobre como tem sido experienciá-la.
Depois de mais de 30 anos vividos majoritariamente na heterossexualidade, com inclusive um casamento cristão na conta, como posso de repente me entender como lésbica e falar abertamente sobre isso? É frequente que eu me sinta uma impostora. Tem sido fundamental me voltar para outras mulheres lésbicas em busca de apoio e de trocas que possam me ajudar a entender as nuances desse momento de reconhecimento, que se revela tanto maravilhoso quanto desafiador.
Recentemente li uma entrevista de Linda Bellos ao blog Feminist Current em que ela diz, sobre sua saída do armário, que “tornar-se lésbica era como voltar para casa”. Essa fala me tocou de forma muito especial, pois era precisamente o que já vinha percebendo há pouco mais de um ano, durante a terapia. É como se eu estivesse voltando a ser inteira após o abandono de mim mesma que vivi durante todos os anos de heterossexualidade compulsória.
Me dar conta disso também foi um processo interno conflituoso: como poderia ter sido compulsória, se eu consenti a essas relações? Como poderia ter sido compulsória, se eu me dizia feliz ao lado dos homens que seriam meus maridos (e dariam sentido a minha vida)? A resposta pode parecer clara para quem já é familiarizada com teoria feminista, mas os desdobramentos da socialização feminina são tão complexos quanto cruéis.
Compreender a heterossexualidade como regime político imposto para as mulheres e não apenas uma orientação sexual, bem como a lesbianidade como um posicionamento político feminista que vai além da sexualidade entre mulheres, foi fundamental para entender a minha história, analisando-a com respeito e cuidado, e me ajuda a legitimar quem sou hoje. E eu sou uma mulher lésbica!
Minha vida, assim como a de todas as mulheres, foi marcada por violências masculinas. Sofri abuso sexual no fim da pré-adolescência, praticado por um namoradinho da época, e me calei por falta de educação sexual, rede de apoio e por internalizar que aquele era um comportamento natural dos homens – só entendi que havia sido estuprada 10 anos depois, numa sessão de terapia, e isso impacta em minha vida até hoje.
Me envolvi com algumas meninas na adolescência, sem entender direito o que isso significava, mas sempre voltava minha dedicação não a elas e nem a mim mesma, mas aos homens. Namorei um rapaz da escola por cerca de três anos, depois engatei outro namoro que foi extremamente abusivo por mais sete, entre idas e vindas.
Entendi na terapia que tolerei a violência psicológica, social, sexual e até mesmo uma tentativa de agressão física por desejar a qualquer custo construir a família que julgava não ter tido, pois meu pai morreu quando eu ainda era bem pequena, e meu sonho era me casar com “um bom homem” e ter três filhos até os 28 anos, que não por acaso é a idade em que minha mãe teve sua última filha, eu.
Nessa época, conheci o feminismo pela mídia e comecei a me inteirar mais sobre política e as questões do mundo, já que entendia que minha função de vida não era mais protagonizar uma comédia romântica hollywoodiana. Comecei a namorar outro homem e foi tudo arrebatador, aceitei um pedido de casamento após cinco meses de relacionamento, o que hoje enxergo como um ímpeto de insanidade romantizada, e no ano seguinte estava finalmente casada com “um bom homem progressista” – e presa no conto de fadas heteronormativo, que acabou sendo ainda mais violento do que o relacionamento anterior. Depois de quatro anos veio o divórcio e me percebi vazia de tudo, sem saber quem eu era por nunca ter olhado pra mim, apenas para os homens e o papel que eu deveria desempenhar ao servi-los.
Falo sempre da terapia, pois ela foi uma ferramenta fundamental em todo esse processo. Terapia, o feminismo radical e o continuum lésbico, que eu nem sabia que existia enquanto conceito, mas que de alguma maneira inicial já estava presente na minha vida desde os últimos meses do meu casamento, que foram de extrema solidão doméstica, e foi essencial para que eu tomasse posse de mim pela primeira vez. Mulheres me acolheram, ergueram, apoiaram, encorajaram, instigaram, inspiraram. Tudo começou a mudar, pois eu não me dedicava mais aos homens e eles não sugavam mais de mim.
Eu descobri coisas sobre mim que nunca tinha me dado conta, descobri também sobre as mulheres ao meu redor. Passei a verdadeiramente apreciar sua companhia e tudo o que trocávamos e notei também que não faltava mais nada, que essas relações eram completas. Perceber essa genuína admiração por mulheres me levou de volta pra casa, como Linda menciona, e a descobrir todas as maravilhosas possibilidades de afeto entre nós, nesse processo que me havia sido impedido pela heterossexualidade quando ainda era muito jovem. Nada disso se dá por trauma de homens, como me acusaram em um ataque meses atrás. Não é sobre homens de forma alguma, na verdade, mas sim sobre amar mulheres e também sobre a potência revolucionária que há nas relações entre nós.
Ainda há um caminho longo pela frente, a começar pelo enfrentamento da minha família, que é muito conservadora, mas sigo me preparando para trilhá-lo quando estiver pronta para as dificuldades que possivelmente virão. Namoro uma mulher que me olha com interesse genuíno sobre mim e minhas minúcias, não pela lente de expectativas do que espera que eu seja, e isso tem me inspirado a exercitar o vislumbre de novas possibilidades para mim mesma, em diversos campos da vida. Esse é o primeiro relacionamento verdadeiramente saudável que tenho. Minhas relações de amizade foram apuradas, muitas vezes de forma dolorida pela lesbofobia de algumas delas, e minha visão de mundo mudou completamente, o que considero uma consequência natural da escolha de focar a vida em mulheres, em plena sociedade patriarcal.
Escrevo tudo isso para organizar meus pensamentos e reconhecer o que percorri até agora, mas também por imaginar que talvez existam outras mulheres de trinta e tantos anos (ou mais!) se questionando e buscando um relato similar. Eu não “nasci assim”, eu não sabia desde pequena que era lésbica, mas entendi que nunca é tarde para olhar pra si e se permitir viver num modelo diferente do que os homens planejam para nós.
Entender que toda mulher é uma lésbica em potencial não é mera propaganda, mas um convite para uma análise criteriosa de si mesma e de sua vida afetivo-sexual, que inevitavelmente é moldada pelo patriarcado. Não romantizo a jornada, pois sei que não é fácil, mas pela primeira vez me sinto verdadeiramente viva e empolgada pelo que virá.
Somos muitas e estamos por todas as partes
1. Ocasiono o desaparecimento de alguma coisa sem que ninguém dê falta ou perceba.
2. Afano algo de modo sorrateiro; furto.
3. Dissimulo (alguma coisa) através de desculpas ou subterfúgios, escondo.
4. Saio sem que ninguém perceba; escapo sorrateiramente.
Uma busca rápida em um site popular de pesquisa apresenta essas significações para a palavra escamoteio. Muita gente nunca ouviu falar dela, não sabe o que significa. Tendo a acreditar, entretanto, que toda mulher lésbica sabe o que escamoteio quer dizer. Talvez a palavra seja desconhecida, mas seus significados ressoam em múltiplas experiências de uma mulher que ousou amar a outra.
Não por menos, falar de lesbianidade sempre demanda muito esforço. Talvez porque o apagamento seja tão grande que é preciso, antes de tudo, romper com os próprios silêncios para escrever sobre o tema. Talvez porque, muitas vezes, ele soe tão desimportante para a maior parte das pessoas, que se torna exaustivo afirmar – com o corpo, as palavras, a política, a raiva e o afeto – que esse é um assunto da maior importância.
Indizível. É assim que Adrienne Rich – poeta, escritora, professora, feminista e lésbica – descreve aquilo que não é nomeado, é censurado, se “disfarça com um nome falso” e é enterrado na memória. Não se trata apenas de um não-dito. Transforma-se em um indizível. Toda lésbica já foi a “amiga” próxima, muito próxima, sempre presente, quase família e depois sumiu. Já foi uma “colega de trabalho” ou qualquer classificação que falseie a verdade. A verdade é que, todos os dias, por todos os cantos, mulheres se deitam juntas e acordam para construir outros modos de se relacionarem e de se tornarem visíveis.
Ou invisíveis. Dias desses, uma amiga me narrou a desconfiança de que duas mulheres que moravam juntas e diziam serem irmãs, seriam, na verdade, namoradas. Se a afirmação fosse de que eram amigas, poderia haver mais risco de desconfiança. Optaram por mentir que eram irmãs. Se fazer invisível é violento e constrói muito profundamente a subjetividade de mulheres lésbicas. Para manter algumas das relações mais importantes que uma pessoa comumente tem, é preciso sublimar uma parte central de nossas vidas. Já estive casada com uma mulher sem que ninguém da minha família soubesse. E sou só mais uma.
Nesse mês da Visibilidade Lésbica e, mais precisamente, no Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto), os modos de apagar nossas existências se refinam e são reinventados, mas não são exatamente novos. Um deles é nos nomear como LGBT, simplesmente, estabelecendo simetria entre os preconceitos e discriminações sofridos por mulheres e homens. A socióloga, lésbica e feminista, Jules Falquet afirma que simetrizar as experiências de mulheres e homens homossexuais é ignorar o peso das normas patriarcais. Embora haja, de fato, pontos em comum nas duas experiências, desconsiderar o duplo estigma vivenciado por lésbicas é contraproducente, injusto e reducionista.
Outra forma “sutil” de nos reduzir é nos taxar como sujeitas da diversidade. Cito novamente Adrienne Rich, que afirma que a suposição de que a maior parte das mulheres é naturalmente heterossexual é um problema teórico /político até mesmo para a teoria /movimento feminista. Esta naturalização aconteceria em parte pelo apagamento da existência lésbica e em parte por ser tratada como algo excepcional, diverso, mais do que intrínseca da experiência das mulheres, já que esta classificação pressupõe que haja uma norma.
Convido todas as mulheres a se perguntarem por qual razão, supostamente, a maioria das mulheres que conhecem seja heterossexual. Se a história da nossa sociedade, tal qual conhecemos hoje, é uma história de desigualdade, não haveria uma razão calcada em valores que sustentam tais desigualdades para que fosse assim? A sexualidade hegemônica não contribuiria para essa sustentação? Se a resposta for sim ou talvez, está feito o convite para refletir sobre a naturalização desta “preferência”.
Ao se debruçar sobre as medidas que asseguram o direito dos homens de acessar o corpo, o trabalho e a subjetividade das mulheres, Adrienne Rich conclui que um dos meios que reforçam esta licença é deixar invisível outra possibilidade, a das experiências amorosas entre mulheres. As práticas de reciprocidade entre mulheres somente são toleradas, de maneira geral, quando tratadas como concernentes à vida privada e separadas de práticas sociais. No entanto, é justamente a partir da conexão consciente entre práticas sexuais, amorosas e materiais entre mulheres que se produzem verdadeiras revoluções no pensamento e nas práticas, de acordo com Jules Falquet.
Encerro esse breve amontoado de palavras que são um convite, um desabafo e uma afirmação de que existimos onde querem nos soterrar, com um poema de Cheryl Clarke, feminista, negra e lésbica que fez tudo isso antes e muito melhor do que eu. Somos muitas e estamos por todas as partes.
Tribadismo* é uma panacéia ancestral
Intimidade não é luxo aqui.
Não mais telefones pendurados
ou linhas sempre ocupadas
ou conversas ainda censuradas.
Não mais mirar nossas mãos
temendo dá-las
ou se dadas
temendo soltar.
Nós estamos aqui.
Após anos de separação,
mulheres tomam seu tempo
dispensam velhas animosidades.
Tribadismo é uma panaceia ancestral e vale o risco
uma panaceia ancestral e vale o risco.
*Tribadismo = esfregar buceta com buceta.
Eu não quero mais forjar nada
A dificuldade para escrever sobre um tema vivenciei durante toda a vida diz muito sobre as podas que sofremos enquanto mulheres lésbicas. Falar sobre lesbianidade me faz revisitar momentos, sentimentos e angústias que por anos evitei. Não é simples relembrar de todas as vezes que me forcei ficar com homens que não me despertavam nenhum interesse, das vezes que tive que fingir gostar de alguém ou inventei algum nome para que saíssem do meu pé ou não me classificassem como sapatão.
Não que tivesse algum problema ser vista como sapatão, mas por um tempo lutei muito para forjar a imagem da hetero legal, que vive rodeada de amigos gays e amigas lésbicas, que não tem preconceito. Me apelidaram de “rainha das bichas”. Não era sobre medo da aceitação, porque sempre tive um ambiente familiar muito acolhedor neste aspecto, era sobre uma tentativa de acreditar que as pessoas poderiam ser boas, legais, compreensivas. Eu me forjava nesse papel de pessoa hetero compreensível mesmo tendo consciência de que eu não gostava de homens.
Numa conversa recente sobre a esperança de um mundo menos violento, um amigo que vivenciou boa parte da minha adolescência ao meu lado comentou sobre como tentei me transformar na mudança que eu queria ver no mundo. Claro que de uma forma negativa, reprimindo meus sentimentos, quereres, vontades. Uma perspectiva bem diferente da que estamos acostumados a relacionar esse ímpeto de transformar o mundo a partir de nós mesmos.
Essas angústias, que eu pensava terem ficado para trás, vira e mexe me visitam através de inseguranças, receios, auto-sabotagem. É como se a todo momento eu precisasse me convencer que, sim, sou uma mulher lésbica. Sim, eu destino meu carinho, admiração, respeito, amor, desejo às mulheres. E não há nada errado nisso. Não é porque um dia eu senti que precisava fingir ser alguém que eu tinha plena consciência que não era que isso invalida o que eu sou.
O mundo é um lugar inóspito para as lésbicas. Mas com o tempo a gente vai se encontrando, se reconhecendo, se fortalecendo. Priorizar mulheres, em todas as esferas da vida, numa sociedade que grita que você deve tudo aos homens é ter que fazer uma revolução diária. É ir contra tudo e todos, é desafiar a lógica patriarcal e impor que mulheres lésbicas também existem e não vão mais se forjar nesse lugar que não as representa.
Eu não quero mais forjar nada. Eu quero viver sem medo, angústia, insegurança. Eu não quero mais viver frustrada. Eu mereço ser feliz. Eu mereço estar num relacionamento com alguém que me respeita, me admira, se importa comigo. Mereço ser amada. Sou digna de andar de mãos dadas, de levar minha namorada para almoçar na casa da minha mãe num domingo, de viver esse amor tão revolucionário.
Não aceito mais migalhas. Não vou viver na sombra, não vou me adaptar, não vou me esconder. Ser lésbica é ser quem eu sou e isso não é motivo de vergonha. Ainda que às vezes eu me sinta como alguém que precisa sair do armário todos os dias, farei isso com orgulho, pois sei que não estou fazendo só por mim. Que o mundo seja um lugar mais acolhedor para as próximas lésbicas que o habitarão.
Veja também: Dia da Visibilidade Lésbica e a luta por dignidade no ambiente de trabalho
Uma resposta
Nunca me senti tão acolhida e compreendida como quando li estes textos, acho que tem um pouco de mim em cada um deles… foi um deleite para a alma ler isso e agradeço imensamente a vocês mulheres inspiradoras. Beijos!