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Visibilidade Lésbica: veja em 3 relatos a importância de se fazer visível

Helena Martins, Fabiana Oliveira e Martha Raquel escrevem sobre como é ser lésbica e resistir numa sociedade patriarcal

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Ilustração especial Visibilidade Lésbica / Bacellar

Hoje, 29 de agosto, é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. A data foi escolhida durante a realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que ocorreu 1996. Para ilustrar a importância desta visibilidade, veja três relatos de mulheres lésbicas sobre como é resistir, diariamente, numa sociedade patriarcal.

Ilustração especial Visibilidade Lésbica / Vilé

A volta pra casa

Helena Martins

Muitas vezes eu penso, mesmo ciente de que esta pode ser uma perspectiva informada pela auto sabotagem, que a lesbianidade é algo muito recente em minha vida e por isso não tenho condições ou até mesmo o direito de falar sobre ela e sobre como tem sido experienciá-la.

Depois de mais de 30 anos vividos majoritariamente na heterossexualidade, com inclusive um casamento cristão na conta, como posso de repente me entender como lésbica e falar abertamente sobre isso? É frequente que eu me sinta uma impostora. Tem sido fundamental me voltar para outras mulheres lésbicas em busca de apoio e de trocas que possam me ajudar a entender as nuances desse momento de reconhecimento, que se revela tanto maravilhoso quanto desafiador.

Recentemente li uma entrevista de Linda Bellos ao blog Feminist Current em que ela diz, sobre sua saída do armário, que “tornar-se lésbica era como voltar para casa”. Essa fala me tocou de forma muito especial, pois era precisamente o que já vinha percebendo há pouco mais de um ano, durante a terapia. É como se eu estivesse voltando a ser inteira após o abandono de mim mesma que vivi durante todos os anos de heterossexualidade compulsória.

Me dar conta disso também foi um processo interno conflituoso: como poderia ter sido compulsória, se eu consenti a essas relações? Como poderia ter sido compulsória, se eu me dizia feliz ao lado dos homens que seriam meus maridos (e dariam sentido a minha vida)? A resposta pode parecer clara para quem já é familiarizada com teoria feminista, mas os desdobramentos da socialização feminina são tão complexos quanto cruéis.

Compreender a heterossexualidade como regime político imposto para as mulheres e não apenas uma orientação sexual, bem como a lesbianidade como um posicionamento político feminista que vai além da sexualidade entre mulheres, foi fundamental para entender a minha história, analisando-a com respeito e cuidado, e me ajuda a legitimar quem sou hoje. E eu sou uma mulher lésbica!

Minha vida, assim como a de todas as mulheres, foi marcada por violências masculinas. Sofri abuso sexual no fim da pré-adolescência, praticado por um namoradinho da época, e me calei por falta de educação sexual, rede de apoio e por internalizar que aquele era um comportamento natural dos homens – só entendi que havia sido estuprada 10 anos depois, numa sessão de terapia, e isso impacta em minha vida até hoje.

Me envolvi com algumas meninas na adolescência, sem entender direito o que isso significava, mas sempre voltava minha dedicação não a elas e nem a mim mesma, mas aos homens. Namorei um rapaz da escola por cerca de três anos, depois engatei outro namoro que foi extremamente abusivo por mais sete, entre idas e vindas.

Entendi na terapia que tolerei a violência psicológica, social, sexual e até mesmo uma tentativa de agressão física por desejar a qualquer custo construir a família que julgava não ter tido, pois meu pai morreu quando eu ainda era bem pequena, e meu sonho era me casar com “um bom homem” e ter três filhos até os 28 anos, que não por acaso é a idade em que minha mãe teve sua última filha, eu.

Nessa época, conheci o feminismo pela mídia e comecei a me inteirar mais sobre política e as questões do mundo, já que entendia que minha função de vida não era mais protagonizar uma comédia romântica hollywoodiana. Comecei a namorar outro homem e foi tudo arrebatador, aceitei um pedido de casamento após cinco meses de relacionamento, o que hoje enxergo como um ímpeto de insanidade romantizada, e no ano seguinte estava finalmente casada com “um bom homem progressista” – e presa no conto de fadas heteronormativo, que acabou sendo ainda mais violento do que o relacionamento anterior. Depois de quatro anos veio o divórcio e me percebi vazia de tudo, sem saber quem eu era por nunca ter olhado pra mim, apenas para os homens e o papel que eu deveria desempenhar ao servi-los.

Falo sempre da terapia, pois ela foi uma ferramenta fundamental em todo esse processo. Terapia, o feminismo radical e o continuum lésbico, que eu nem sabia que existia enquanto conceito, mas que de alguma maneira inicial já estava presente na minha vida desde os últimos meses do meu casamento, que foram de extrema solidão doméstica, e foi essencial para que eu tomasse posse de mim pela primeira vez. Mulheres me acolheram, ergueram, apoiaram, encorajaram, instigaram, inspiraram. Tudo começou a mudar, pois eu não me dedicava mais aos homens e eles não sugavam mais de mim.

Eu descobri coisas sobre mim que nunca tinha me dado conta, descobri também sobre as mulheres ao meu redor. Passei a verdadeiramente apreciar sua companhia e tudo o que trocávamos e notei também que não faltava mais nada, que essas relações eram completas. Perceber essa genuína admiração por mulheres me levou de volta pra casa, como Linda menciona, e a descobrir todas as maravilhosas possibilidades de afeto entre nós, nesse processo que me havia sido impedido pela heterossexualidade quando ainda era muito jovem. Nada disso se dá por trauma de homens, como me acusaram em um ataque meses atrás. Não é sobre homens de forma alguma, na verdade, mas sim sobre amar mulheres e também sobre a potência revolucionária que há nas relações entre nós.

Ainda há um caminho longo pela frente, a começar pelo enfrentamento da minha família, que é muito conservadora, mas sigo me preparando para trilhá-lo quando estiver pronta para as dificuldades que possivelmente virão. Namoro uma mulher que me olha com interesse genuíno sobre mim e minhas minúcias, não pela lente de expectativas do que espera que eu seja, e isso tem me inspirado a exercitar o vislumbre de novas possibilidades para mim mesma, em diversos campos da vida. Esse é o primeiro relacionamento verdadeiramente saudável que tenho. Minhas relações de amizade foram apuradas, muitas vezes de forma dolorida pela lesbofobia de algumas delas, e minha visão de mundo mudou completamente, o que considero uma consequência natural da escolha de focar a vida em mulheres, em plena sociedade patriarcal.

Escrevo tudo isso para organizar meus pensamentos e reconhecer o que percorri até agora, mas também por imaginar que talvez existam outras mulheres de trinta e tantos anos (ou mais!) se questionando e buscando um relato similar. Eu não “nasci assim”, eu não sabia desde pequena que era lésbica, mas entendi que nunca é tarde para olhar pra si e se permitir viver num modelo diferente do que os homens planejam para nós.

Entender que toda mulher é uma lésbica em potencial não é mera propaganda, mas um convite para uma análise criteriosa de si mesma e de sua vida afetivo-sexual, que inevitavelmente é moldada pelo patriarcado. Não romantizo a jornada, pois sei que não é fácil, mas pela primeira vez me sinto verdadeiramente viva e empolgada pelo que virá.

Ilustração especial Visibilidade Lésbica

Somos muitas e estamos por todas as partes

Fabiana Oliveira

1.      Ocasiono o desaparecimento de alguma coisa sem que ninguém dê falta ou perceba.

2. Afano algo de modo sorrateiro; furto.

3. Dissimulo (alguma coisa) através de desculpas ou subterfúgios, escondo.

4. Saio sem que ninguém perceba; escapo sorrateiramente.

Uma busca rápida em um site popular de pesquisa apresenta essas significações para a palavra escamoteio. Muita gente nunca ouviu falar dela, não sabe o que significa. Tendo a acreditar, entretanto, que toda mulher lésbica sabe o que escamoteio quer dizer. Talvez a palavra seja desconhecida, mas seus significados ressoam em múltiplas experiências de uma mulher que ousou amar a outra.

Não por menos, falar de lesbianidade sempre demanda muito esforço. Talvez porque o apagamento seja tão grande que é preciso, antes de tudo, romper com os próprios silêncios para escrever sobre o tema. Talvez porque, muitas vezes, ele soe tão desimportante para a maior parte das pessoas, que se torna exaustivo afirmar – com o corpo, as palavras, a política, a raiva e o afeto – que esse é um assunto da maior importância.

Indizível. É assim que Adrienne Rich – poeta, escritora, professora, feminista e lésbica – descreve aquilo que não é nomeado, é censurado, se “disfarça com um nome falso” e é enterrado na memória. Não se trata apenas de um não-dito. Transforma-se em um indizível. Toda lésbica já foi a “amiga” próxima, muito próxima, sempre presente, quase família e depois sumiu. Já foi uma “colega de trabalho” ou qualquer classificação que falseie a verdade. A verdade é que, todos os dias, por todos os cantos, mulheres se deitam juntas e acordam para construir outros modos de se relacionarem e de se tornarem visíveis.

Ou invisíveis. Dias desses, uma amiga me narrou a desconfiança de que duas mulheres que moravam juntas e diziam serem irmãs, seriam, na verdade, namoradas. Se a afirmação fosse de que eram amigas, poderia haver mais risco de desconfiança. Optaram por mentir que eram irmãs. Se fazer invisível é violento e constrói muito profundamente a subjetividade de mulheres lésbicas. Para manter algumas das relações mais importantes que uma pessoa comumente tem, é preciso sublimar uma parte central de nossas vidas. Já estive casada com uma mulher sem que ninguém da minha família soubesse. E sou só mais uma.

Nesse mês da Visibilidade Lésbica e, mais precisamente, no Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto), os modos de apagar nossas existências se refinam e são reinventados, mas não são exatamente novos. Um deles é nos nomear como LGBT, simplesmente, estabelecendo simetria entre os preconceitos e discriminações sofridos por mulheres e homens. A socióloga, lésbica e feminista, Jules Falquet afirma que simetrizar as experiências de mulheres e homens homossexuais é ignorar o peso das normas patriarcais. Embora haja, de fato, pontos em comum nas duas experiências, desconsiderar o duplo estigma vivenciado por lésbicas é contraproducente, injusto e reducionista.

Outra forma “sutil” de nos reduzir é nos taxar como sujeitas da diversidade. Cito novamente Adrienne Rich, que afirma que a suposição de que a maior parte das mulheres é naturalmente heterossexual é um problema teórico /político até mesmo para a teoria /movimento feminista. Esta naturalização aconteceria em parte pelo apagamento da existência lésbica e em parte por ser tratada como algo excepcional, diverso, mais do que intrínseca da experiência das mulheres, já que esta classificação pressupõe que haja uma norma.

Convido todas as mulheres a se perguntarem por qual razão, supostamente, a maioria das mulheres que conhecem seja heterossexual. Se a história da nossa sociedade, tal qual conhecemos hoje, é uma história de desigualdade, não haveria uma razão calcada em valores que sustentam tais desigualdades para que fosse assim? A sexualidade hegemônica não contribuiria para essa sustentação? Se a resposta for sim ou talvez, está feito o convite para refletir sobre a naturalização desta “preferência”.

Ao se debruçar sobre as medidas que asseguram o direito dos homens de acessar o corpo, o trabalho e a subjetividade das mulheres, Adrienne Rich conclui que um dos meios que reforçam esta licença é deixar invisível outra possibilidade, a das experiências amorosas entre mulheres. As práticas de reciprocidade entre mulheres somente são toleradas, de maneira geral, quando tratadas como concernentes à vida privada e separadas de práticas sociais. No entanto, é justamente a partir da conexão consciente entre práticas sexuais, amorosas e materiais entre mulheres que se produzem verdadeiras revoluções no pensamento e nas práticas, de acordo com Jules Falquet.

Encerro esse breve amontoado de palavras que são um convite, um desabafo e uma afirmação de que existimos onde querem nos soterrar, com um poema de Cheryl Clarke, feminista, negra e lésbica que fez tudo isso antes e muito melhor do que eu. Somos muitas e estamos por todas as partes.

Tribadismo* é uma panacéia ancestral

Intimidade não é luxo aqui.
Não mais telefones pendurados
ou linhas sempre ocupadas
ou conversas ainda censuradas.

Não mais mirar nossas mãos
temendo dá-las
ou se dadas
temendo soltar.

Nós estamos aqui.
Após anos de separação,
mulheres tomam seu tempo
dispensam velhas animosidades.

Tribadismo é uma panaceia ancestral e vale o risco
uma panaceia ancestral e vale o risco.

*Tribadismo = esfregar buceta com buceta.

Ilustração especial Visibilidade Lésbica

Eu não quero mais forjar nada 

Martha Raquel 

A dificuldade para escrever sobre um tema vivenciei durante toda a vida diz muito sobre  as podas que sofremos enquanto mulheres lésbicas. Falar sobre lesbianidade me faz revisitar momentos, sentimentos e angústias que por anos evitei. Não é simples relembrar de todas as vezes que me forcei ficar com homens que não me despertavam nenhum interesse, das vezes que tive que fingir gostar de alguém ou inventei algum nome para que saíssem do meu pé ou não me classificassem como sapatão. 

Não que tivesse algum problema ser vista como sapatão, mas por um tempo lutei muito para forjar a imagem da hetero legal, que vive rodeada de amigos gays e amigas lésbicas, que não tem preconceito. Me apelidaram de “rainha das bichas”. Não era sobre medo da aceitação, porque sempre tive um ambiente familiar muito acolhedor neste aspecto, era sobre uma tentativa de acreditar que as pessoas poderiam ser boas, legais, compreensivas. Eu me forjava nesse papel de pessoa hetero compreensível mesmo tendo consciência de que eu não gostava de homens. 

Numa conversa recente sobre a esperança de um mundo menos violento, um amigo que vivenciou boa parte da minha adolescência ao meu lado comentou sobre como tentei me transformar na mudança que eu queria ver no mundo. Claro que de uma forma negativa, reprimindo meus sentimentos, quereres, vontades. Uma perspectiva bem diferente da que estamos acostumados a relacionar esse ímpeto de transformar o mundo a partir de nós mesmos. 

Essas angústias, que eu pensava terem ficado para trás, vira e mexe me visitam através de inseguranças, receios, auto-sabotagem. É como se a todo momento eu precisasse me convencer que, sim, sou uma mulher lésbica. Sim, eu destino meu carinho, admiração, respeito, amor, desejo às mulheres. E não há nada errado nisso. Não é porque um dia eu senti que precisava fingir ser alguém que eu tinha plena consciência que não era que isso invalida o que eu sou. 

O mundo é um lugar inóspito para as lésbicas. Mas com o tempo a gente vai se encontrando, se reconhecendo, se fortalecendo. Priorizar mulheres, em todas as esferas da vida, numa sociedade que grita que você deve tudo aos homens é ter que fazer uma revolução diária. É ir contra tudo e todos, é desafiar a lógica patriarcal e impor que mulheres lésbicas também existem e não vão mais se forjar nesse lugar que não as representa. 

Eu não quero mais forjar nada. Eu quero viver sem medo, angústia, insegurança. Eu não quero mais viver frustrada. Eu mereço ser feliz. Eu mereço estar num relacionamento com alguém que me respeita, me admira, se importa comigo. Mereço ser amada. Sou digna de andar de mãos dadas, de levar minha namorada para almoçar na casa da minha mãe num domingo, de viver esse amor tão revolucionário. 

Não aceito mais migalhas. Não vou viver na sombra, não vou me adaptar, não vou me esconder. Ser lésbica é ser quem eu sou e isso não é motivo de vergonha. Ainda que às vezes eu me sinta como alguém que precisa sair do armário todos os dias, farei isso com orgulho, pois sei que não estou fazendo só por mim. Que o mundo seja um lugar mais acolhedor para as próximas lésbicas que o habitarão. 

Ilustração especial Visibilidade Lésbica

Veja também: Dia da Visibilidade Lésbica e a luta por dignidade no ambiente de trabalho

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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Geral

O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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