Por Denise Ribeiro, especial para os Jornalistas Livres
Thádia Justino de Oliveira Marques, 30 anos, acordou feliz na segunda-feira, 19 de agosto, pronta pra exercitar seu talento como gerontóloga num novo trabalho. Salário um pouco melhor, carga horário um pouco menor do que no emprego anterior, era o que lhe havia sido prometido. Na Home Angels, maior franquia de cuidadores da América Latina, ela atuaria na unidade do Jabaquara, supervisionando o trabalho dos cuidadores e interagindo com 20 famílias-clientes. O entusiasmo durou pouco. Cinco dias depois ela havia sido demitida pelo gestor da unidade, Sergio Koh. O motivo? Ele achou por bem acobertar um caso escancarado de racismo, que Thádia, uma profissional negra, preferia enfrentar.
No caso dela, enfrentar seria deixar de visitar clientes que pediam para Sergio não enviar cuidadores negros para suas casas. Ao ler a restrição, anotada no prontuário de um idoso, Thádia sentiu o estômago revirar. O pedido, apesar de absurdo –e criminoso– foi atendido pela Home Angels com a maior naturalidade. Como se fosse a coisa mais normal do mundo escolher um prestador de serviços pela cor e etnia.
“Como pode uma empresa aceitar esse tipo de condição? Não sabem que racismo é crime inafiançável, punido com 2 a 5 anos de prisão?”, pergunta estarrecida.
No início, ela pensou que aquele fosse um caso isolado. Mas depois leu a mesma observação num outro prontuário e, ao comentar sua estranheza com a gerontóloga Juliana, a quem substituiria, ficou sabendo que eram três as famílias com esse tipo de ‘restrição’. “Conversei com o Sergio, expliquei que meu objetivo não era atrapalhar o negócio dele, mas disse que não me sentiria à vontade para visitar aquelas três famílias. Eu faria meu trabalho com prazer nas outras 17 residências, mas, naturalmente, me sentiria constrangida naquelas três casas”, conta.
Sergio tentou amenizar o problema, dizendo que os moradores iriam respeitá-la, por sua condição de “supervisora e gerontóloga” – ou seja, mais uma discriminação, agora em função do cargo e da profissão. Ela contra-argumentou, reiterando que preferia não ter de passar por nenhum tipo de constrangimento:
“Já sofri com tantas situações de racismo, por que vou correr o risco de ser humilhada, indo a um local onde não somos aceitos?”
O gestor insistia para que ela fizesse as visitas: “Assim você me quebra as pernas”, teria dito Sergio a Thádia, que repetiu a expressão de desagrado do gestor no depoimento prestado a Eduardo Valério, promotor de Justiça e Direitos Humanos, do Ministério Público do Estado de São Paulo.
O imbróglio estava formado. O patrão dizia que a acompanharia naquelas três visitas e que ela não teria com o que se preocupar, porque teria pouco contato com as famílias. Thádia não se sentiu confortável com a proposta. Sugeriu que a gerontóloga responsável pela área administrativa se incumbisse daquela tarefa, sob a supervisão remota dela. Em todo o processo, Thádia deixou Sergio ciente de que, ao acatar a “restrição” imposta pelos clientes, ele havia sido conivente com a discriminação.
Descartar o problema, a solução mais fácil
Inconformado com a situação criada por ele mesmo, Sergio pediu um tempo pra pensar e, na sexta-feira, 23 de agosto, mandou para ela a seguinte mensagem de whattsApp demitindo-a:
“Boa noite Thádia. Pensei ontem e hoje e teremos de abortar nossa negociação infelizmente. Muito obrigado. Por favor, me encaminhe os seus dados bancários para eu depositar esses dias em que me ajudou”.
Trata-se de uma clara mensagem de dispensa, embora Sergio sustente, por intermédio da advogada Ivone José, que foi Thádia quem pediu demissão. “Saí muito desamparada, muito machucada. Disse a ele que, se eu não houvesse passado pela empresa, eles nem iriam perceber o quanto é grave uma família impor esse tipo de condição. Ele pediu desculpas. Em seguida passamos a negociar os valores que eu tinha a receber”, recorda.
Começou, então, o que o promotor Eduardo Valério chama de “leilão de direitos”. Sergio queria pagar apenas os cinco dias em que Thádia “o ajudou” na empresa. Thádia, no entanto, soube pelo grupo do facebook, Garotas no Poder, onde postou sua história, que o correto seria receber ao menos 15 dias, porque, além de não fazer o contrato provisório de trabalho, conforme a legislação trabalhista exige, ele rescindiu o acordo.
Ao perceber que Thádia estava a par dos seus direitos, Sergio teria perguntado a ela: “Não dá pra melhorar esse valor pra mim?”. Ela argumentou que não, porque estava sem perspectiva de arrumar outro emprego a curto prazo e havia sido bastante prejudicada com a demissão. “Eu disse que, além da perda financeira, sentia que a cor da minha pele havia influenciado na decisão dele de me dispensar”, conta. Sergio insistia em negociar, para menos, o valor devido mas, diante da firmeza de Thádia em não ceder, acabou lhe pagando os 1.100 reais equivalentes a 15 dias de trabalho.
A versão do outro lado
Procurado pela reportagem, Sergio Koh, a princípio, se recusou a falar. Uma semana depois, pediu para a advogada Ivone José divulgar sua versão da história. Segundo ele, a restrição que incomodou Thádia é um caso isolado “de um idoso senil, que sofre de Alzheimer” e que foi aceita pela empresa “para proteger seus cuidadores de eventuais constrangimentos”. Afirmou, ainda, que foi Thádia quem “manifestou o desejo de sair da empresa”, porque se sentiu desconfortável com a situação.
Já a Home Angels enviou uma nota protocolar, via assessoria de imprensa, lamentando o ocorrido. A franqueadora afirma condenar “qualquer prática de preconceito e discriminação seja por raça, cor e/ou religião na rede”, diz que defende o “respeito às pessoas” e trabalha para que todos os franqueados “atuem da melhor forma possível em suas unidades”. A empresa também pede “sinceras desculpas para a colaboradora que se sentiu ofendida” e reitera que “não apoia ou incentiva esse tipo de prática”.
No entanto, ao visitar a página no facebook do sócio-diretor da Home Angels, Marco Imperador, fica claro que ele, assim como a maioria dos eleitores do Bolsonaro, acha que o racismo perdura por culpa da esquerda. Num vídeo postado por ele, um homem negro elegante e bem articulado afirma que “a esquerda não quer resolver o racismo”. Só falta dizer que a situação de pobreza e martírio a que a população negra vem sendo submetida desde os tempos da escravidão é um delírio da esquerda.
Desigualdade ignorada pelos brancos
Apenas para ilustrar a precariedade em que vivem os negros brasileiros, relatório da Oxfam revelou alguns dos aspectos da desigualdade salarial que os afeta. A Oxfam Brasil faz parte de uma confederação global de 19 organizações que atuam em 93 países. Seu objetivo é combater a pobreza, as desigualdades e as injustiças em todo o mundo.
Usando como base a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a Oxfam demonstrou que, em média, os negros ganhavam, em 2016, 57% dos salários dos brancos (R$ 1.458 contra R$ 2.567). A desigualdade aumentou em 2017 (essa proporção caiu para 53%), quando o salário médio de um negro (R$ 1.545) era praticamente a metade do de um homem branco, que recebia R$ 2.924.
Entre os mais ricos, a diferença é maior que o dobro: R$ 13.754 de salário dos brancos contra R$ 6.186 dos negros. Até entre os mais pobres, os negros ficam em desvantagem: o salário de um branco é, na média, 46% maior do que o rendimento de um negro pobre: R$ 965 contra R$ 658.
O que diz a legislação
Ao tomar conhecimento da história de Thádia, a OAB-SP se manifestou em nota assinada pela advogada Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da entidade. A OAB entende que, “caso os fatos imputados sejam comprovados” todos os envolvidos praticaram discriminação racial, nos termos do Estatuto da Igualdade Racial.
Na visão da entidade, o tipo de conduta adotada pela Home Angels “atinge todos os funcionários da empresa que se autodeclaram negros, pois eles estão sendo discriminadas em razão de sua cor”. Caso sejam comprovados os fatos narrados, o empregador deverá responder por crime de racismo, conforme previsto no art. 4º, §1º, III da Lei 7716/89 – mais conhecida como Lei Caó, em homenagem ao autor da proposta, o ex-vereador, jornalista e advogado Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos.
Não enviar cuidadores negros para as casas dos clientes, por motivo de discriminação de raça ou cor caracteriza “tratamento diferenciado no ambiente de trabalho” e incita o preconceito étnico-racial, que por sua vez é vedado pelo art. 20 da Lei Caó. Importante notar, se comprovados os fatos, que a empresa está sujeita aos termos da Lei nº 14187/2010, que proíbe atos de coação direta ou indireta sobre o empregado em razão de discriminação étnico-racial em seu art. 2º, VI. E, pela CLT, a empresa é expressamente proibida de conduzir as relações de trabalho desta forma, nos termos do art. 373. A Home Angels poderá ter de responder por todos estes crimes. Já o gestor Sergio Koh, que reforçou tudo isso contra Thádia e ainda a dispensou em razão da situação, se condenado, pode vir a ser preso.
No entanto, parece muito distante a probabilidade de qualquer um dos envolvidos ser punido, em razão da dificuldade de se comprovar a prática de racismo no Brasil. Em 2017, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) reuniu no livro Acusações de racismo na capital da República estatísticas dos crimes raciais no DF. Entre 2010 e 2016, o número de denúncias subiu 1.190%, chegando a 129. Destas, apenas sete foram de racismo. As outras 122 eram de injúria racial.
No entender da OAB, o Brasil protege ativamente o sistema que torna essa estrutura discriminatória possível. “É difícil mudar um sistema fundado e desenvolvido na necropolítica, ou seja, a gestão da morte como modelo de governança”, afirma a nota. Em 2006, o Brasil, inclusive, foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a indenizar uma mulher vítima de racismo. Dentre outras medidas de reparação, o país teria de realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para o combate ao racismo e se comprometer a educar funcionários de justiça e da polícia para evitar discriminação nas investigações.
Segundo a OAB, houve muito pouco avanço no que diz respeito a essas recomendações, a vítima naquele caso não foi indenizada e a falta de esclarecimento entre os agentes da justiça e da segurança pública é gritante. “A violência policial só aumenta contra pessoas negras, advogadas negras são algemadas no exercício de suas funções. Chegamos ao cúmulo de ter uma juíza registrando o racismo em sentença, afirmando que o réu branco não podia ser facilmente confundido porque não tinha o estereótipo de bandido”, exemplifica a nota.
O Ministério Público acompanha de perto o caso de Thádia, até porque a denúncia independe da vontade da vítima de prestar queixa. É o que se chama no jargão jurídico de “ação penal pública incondicionada”, por afetar não apenas um indivíduo, mas toda a coletividade. Nos crimes de injúria racial, em que o agressor utiliza aspectos raciais para ofender a vítima, a intervenção do Ministério Público depende da manifestação expressa da vítima.
Um caminhão de provas
Para que um caso de racismo no trabalho se transforme em ação, é necessário que a vítima colete o maior número de evidências possível: emails corporativos contendo ofensas, prints de telas, mensagens de whatsApp, gravações, fotos de documentos em que apareçam anotações discriminatórias. No caso de Thádia, as provas apresentadas parecem não ser suficientes para abrir um processo contra a Home Angels.
O promotor Eduardo Valério, que está há 10 anos à frente da Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, admite que as provas apresentadas por Thádia são frágeis. “O documento mais contundente que ela tem é a cópia do prontuário em que consta o pedido de restrição aos cuidadores negros. No entanto, não posso usar essa prova para não prejudicá-la profissionalmente. Prontuários de pacientes são sigilosos”, explica.
Antes de ir prestar depoimento no Ministério Público, Thádia tentou fazer um boletim de ocorrência na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI), no centro de São Paulo. Ali também foi informada de que as provas coletadas eram insuficientes.
O Ministério Público está analisando os fatos e espera que Thádia consiga convencer ao menos uma gerontóloga ex-funcionária da Home Angels a depor em seu favor. “Seria um avanço significativo ter o depoimento de mais uma pessoa reiterando a versão dos fatos narrados por ela”, argumenta Eduardo Valério.
Enquanto isso não acontece, Thádia aguarda uma luz no seu caminho. Um novo emprego já seria de bom tamanho para tirá-la do desânimo e da desesperança.
3 respostas
#LULALIVRE!
Para essas pessoas que dizem que Lula roubou demais!
Eu digo o seguinte: vocês só parece que não tem um pingo de miolo na cabeça. Só acreditam em tudo, o que esses corruptos parciais e partidários de toga dizem. (Pensam só um pouco). Se Lula tivesse roubado mesmo, assim como dizem, então: como é que poderia o Lula ter sido o melhor presidente em nosso país?… Essa história, gente, é inventada pelo Moro e Dallagnol. O maior desejo Deles em conluio, era: forjar e fabricar as provas de crime com os delatores, para ganhar delações premiadas. Aí o ‘Vasa Jato”, se encarrega de vazar para toda Imprensa, e emissora de TV, para manipular todo povo brasileiro. Aí o povo fica dizendo: (Eita PT dos ladrões). Quando naverdade, os maiores ladrões estão em outros partidos, que: para constatar seus crimes? Nem precisa delação premiada. Só que os corruptos da justiça de toga, protegem todos. Cadê que essa corja mexe com o Queiroz, e o laranjal do governo? Nunca!… Esses São protegidos! Que coisa! Hein?…
É por isso amigos, é que, The Intercept BRASIL, hoje, está descobrindo toda maracutaia dessa corja de malignos, que se diz da justiça de toga. Eles pensavam que eram os maiores poderosos do mundo, que nunca ninguém iria descobrir nada DELES. Quebraram a cara!
Mesmo preso, com a sua consciência de honestidade! Lula é inocente, e dorme tranqüilo. Quanto os crapulas heróis poderosos malignos de toga? Só dorme com remédio em efeito calmante para dormir!…
DEUS É PODEROSO!
#LULALIVRE!
Enquanto isso, uma modelo negra segue presa acusada de roubo de carro, apenas por ter sido reconhecida pelo cabelo cacheado. Quem a acusa, alega que o cabelo da modelo è identico ao da pessoa que praticou o crime. Detalhe: a modelo tem provas concretas (fotos e testemunhas) que não estava no local que a vítima afirma que sofreu o assalto. Difícil aceitar os rombos (não são brechas) no não-cumprimento da lei
Toda forma de racimo deve ser combatida. Não existe essa de ”casos isolados de apenas três famílias”.
E a abominação seguida da publicação do sócio voltando a sua responsabilidade para a política partidária em vez de fazer o que é ético.
Lugares desse tipo não serve pra mim. Menos ainda para os meus familiares.
Parabéns pela entrevista, Denise Ribeiro.