Proteger as crianças

A antropóloga Adriana Facina, da UFRJ, reflete sobre a ‘sexualização’ das crianças no funk, que virou polêmica após Ministério Público abrir investigação sobre MCs mirins

Nos ano 1980, com roupas mínimas, Xuxa comandava o programa infantil de maior audiência da TV brasileira e Sandy e Junior, bem pequenos, cantavam em rede nacional a música de duplo sentido “Maria Chiquinha”, que foi o início de uma bem sucedida carreira de estrelato mirim.

Nos anos 1990, foi a vez do É o Tchan e Companhia do Pagode botarem as meninas para rebolar em roupas curtas e descer na boquinha da garrafa, simulando ato sexual. Tudo isso nas tardes de domingo, em atrações como o Domingão do Faustão.

De lá pra cá, foram incontáveis os comerciais de cerveja exibindo fartamente corpos femininos de modo sensual. Publicidade disponível a qualquer horário, para quem quiser ver. A ampla indústria pornográfica também exibe há décadas suas publicações em bancas de jornais de modo livre e desinibido. Busdoors de propagandas de motéis e lingerie ocupam as janelas dos ônibus que carregam entre seus passageiros crianças em idade escolar. Sem falar em filmes, novelas e todo um amplo cardápio de produtos em que o sexo é prato principal, oferecido cotidianamente aos cidadãos e cidadãs brasileiras de todas as idades.

Podemos dizer, sem medo de errar, que estamos imersos numa cultura do corpo que não somente objetifica o corpo feminino como fonte de prazer sexual como também naturaliza esse papel da mulher. Quanto mais sexualmente desejada, mais bem sucedida.

Não é de se espantar que as meninas em nosso país aprendam essa lição a cada dia mais cedo. Sobretudo as meninas das camadas populares que, desde pequenas, assumem muitas tarefas como cuidar de casa, dos irmãos e de si mesmas, já que a rotina de trabalho dos pais e a ausência de um sistema de educação pública de qualidade que funcione em tempo integral lhes impõe isso. São elas também que, pelos mesmos motivos, mais tempo ficam expostas às mensagens dos meios de comunicação que mencionei acima. É aí que começa a chamada adultização.

MCs Melody e Belinho, filha e pai — Reprodução Facebook

O que quero dizer é que a performance da MC Melody expressa processos mais profundos. Criminalizar seu pai (MC Belinho) é abafar, com farta dose de sensacionalismo, as questões que afetam a infância e juventude popular no nosso país. Um dos grandes méritos do funk como arte e manifestação cultural é trazer essas contradições que ninguém quer ver e que nossa sociedade prefere enfrentar apoiando a redução da maioridade penal.

Criança dançando sensualmente é algo visto com horror, mas menores de idade enviados para as abjetas e desumanas prisões brasileiras é aceito. De que e de quem queremos proteger nossas crianças? É preciso que a sociedade se mobilize para fazer esse debate de modo democrático e qualificado, pois da resposta a essa pergunta depende nosso futuro como país. Que o caso da pequena MC possa servir para isso, o que só será possível se superarmos o elitismo, o preconceito e o moralismo com que usualmente são tratadas as produções culturais das periferias.

Enquanto isso, o C.A.I.C. Theóphilo de Souza Pinto, escola estadual situada no Complexo do Alemão, abriga uma base da UPP desde 2011. Como resultado, o prédio está cravejado de tiros, pois a escola tornou-se abrigo para policiais militares durante trocas de tiros com traficantes. De 1.330 alunos, restaram 700 que muitas vezes ficam sem aulas. Recentemente, foram divulgadas inscrições feitas por esses alunos em volta dos buracos de balas nas paredes de sua escola. Uma delas me marcou e trazia a pergunta: “Como estudar assim?”

O medo dessas crianças e jovens é real. Afinal, segundo a Anistia Internacional, só em 2012 foram 30 mil jovens assassinados no Brasil, 77% deles eram negros, em sua maioria moradores de favelas e periferias do país. Os alunos da escola do Alemão sabem que podem se tornar parte dessa estatística. Até agora o Ministério Público ainda não se pronunciou sobre o caso.


Adriana Facina é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ. Desenvolveu pesquisa de pós-doutoramento sobre música e lazer popular no Rio de Janeiro, com ênfase no funk. Atualmente pesquisa arte, produção cultural e práticas de letramento em favelas cariocas

 

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