O Encontro de cerca de 50 pessoas ativistas e educadores populares no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular – CDHEP, no Capão Redondo , ocorrido nos dias 31 e 1º de novembro, reanima a esperança.
Muitos militantes, lideranças e educadores populares dispostos a lutar por um mundo com dignidade, justiça, menos violência e mais políticas sociais, se debruçaram nestes dois dias para trocar experiências, refletir sobre suas práticas e melhor se articularem nesta longa trajetória das lutas de resistência.
Apresentações do Sarau do Capão Redondo no decorrer dos dois dias chamaram atenção para a realidade do povo da periferia, através das manifestações culturais.
Os depoimentos do cotidiano de lutas ocorreram em subgrupos: Educação, Moradia e Saúde, Cultura e Comunicação, apontando a riqueza e diversidade das experiências em Direitos Humanos, Educação Popular, Justiça Restaurativa, Cursinhos Populares, Saraus de Poesia, Mutirões de Moradia, Enfrentamentos da Saúde, Comunicação Popular, Lutas pelo Meio Ambiente, Documentários.
A periferia pulsa, Paulo Freire se perpetua através de ações que levam ao questionamento da realidade e se articulam para a sua transformação. De acordo com uma das últimas entrevistas do Paulo Freire, é importante fazer muitas marchas, “marchas dos que querem ser e são Impedidos de ser, contra a violência histórica da opressão”.
A mesa sobre Paulo Freire composta por Ednéia, Sérgio Haddad e Pedro Pontual veio reforçar alguns princípios e dar luz às praticas cotidianas que precisam ser reinventadas sempre.
Paulo Freire, uma forma de lutar pela libertação dos oprimidos
Mais do que um método Paulo Freire é uma filosofia, uma forma de ver o mundo e o oprimido em relação com ele, com poder de inserção e como agente de transformação no mundo. Contra o determinismo histórico que pressupõe numa sociedade de classes apenas adaptação e ajuste dos corpos e dos seres, ao meio ambiente e ao status quo.
A educação popular é um ato político, na sua intencionalidade (por que educamos?), democrática (ninguém detém o saber sozinho, cada um tem um saber, professor e alunos aprendem uns com os outros, na sua inter-relação), calcados em valores de solidariedade, respeito e do diálogo procurando compreender a realidade das pessoas, seus valores e sua cultura. Teoria e prática se complementam e se reinventam. Educação é um direito humano. A partir do chão dos alunos e dos moradores de um bairro, com suas vivências, expressões, manifestações culturais, o conhecimento do educador se coloca a serviço do conhecimento dos outros. A partir dos depoimentos do povo, com suas demandas, se constroem outros itinerários, se constroem outros conhecimentos.
Desafios da Educação Popular
Na conjuntura atual, de avanço do neoliberalismo e de dilapidação de nosso patrimônio, de perda de direitos sociais e das liberdades democráticas, o desafios para a educação popular são muitos, não só no Brasil mas em todo o mundo e, especialmente na América Latina:
Reinventar a democracia fortalecendo a democracia participativa e direta da sociedade civil; – Combater o ódio na sociedade em geral, nas escolas com a negação da ciência e censura à crítica e à liberdade de expressão e nos sindicatos e nos movimentos com a censura e repressão à organização; na criminalização dos movimentos sociais; – Promover uma educação que desconstrua o racismo estrutural, o patriarcalismo e que valorize o reconhecimento dos povos originários; – Combater a violência, buscar o diálogo e a justiça restaurativa; – Construir novas utopias que tragam horizonte de esperanças como o “bem viver”, em contraposição aos excessos da sociedade de consumo; – Incentivar a agroecologia e o cooperativismo; – Reafirmar valores de solidariedade, criatividade e de partilha; – Valorizar nossa cultura e diversas formas de expressão; – Valorizar a troca de experiências geracionais; – Articular as ações e os movimentos no território para fortalecer as lutas de libertação.
Território e Identidade
Extremamente proveitosas e muito instigantes foram as apresentações de Rose (Cooperifa de Sérgio Vaz), Lucila (CDHEP) e Ana Dias (militante do movimento de mulheres e viúva do operário assassinado Santo Dias, há 40 anos atrás, vítima da Ditadura), sobre Território e Identidade.
Para uma maioria de jovens, Lucila reconstruiu a história do CDHEP, que se instalou na região por ocasião da ditadura militar. Os enfrentamentos contra a ditadura daquele momento, são muito próximos dos desafios que temos hoje pela frente. Santo Dias foi uma liderança operária importante na região. O final da década de 70 e começo dos anos 80, foi um momento muito forte e significativo de enfrentamento da ditadura e de organização das periferias, juntamente com a Igreja impulsionada pela Teologia da Libertação.
Dom Paulo Evaristo Arns, bispo à frente da Arquidiocese de São Paulo, Pe. Jaime, Pe. Luís, tiveram papel decisivo na criação de um movimento de Direitos Humanos na região composto por religiosos, leigos, lideranças populares, educadores para o enfrentamento da violência policial, extermínio, Esquadrão da Morte, moradia, contra a carestia, por melhorias do bairro.
O CDHEP desde sua origem foi um ponto de encontro importante da população da região, de lideranças, juristas, universidades e desde seu início participou destes enfrentamentos e de formulação de políticas públicas e de lutas que foram conquistas para o bairro: metrô, linhas de ônibus, creches, hospital, escolas. Ao mesmo tempo contribuiu para construção de Legislação que garantia acesso à Justiça, Combate À Violência através da Justiça Restaurativa; Proteção à Vitimas, Pedagogia da Proteção.
A força das mulheres e o papel da cultura
O depoimento de Ana Dias, história de compromisso e de luta. Vinda de uma cidadezinha do interior, trabalhou no campo desde os 6 anos. Santo Dias trabalhador rural muito respeitado por sua competência pelo dono da fazenda, foi expulso do trabalho quando se envolveu com o Sindicato dos trabalhadores rurais. Vieram para São Paulo e em 1971, “o dia 15 de novembro, na Igreja Santa Margarida, marcou minha vida. Com a igreja cheia, o padre falou que “a pessoa tinha valor, a gente tinha que se unir e se organizar. Isso ensinou a gente a brigar, nunca mais parei” “No dia em que Santo foi assassinado eu fui antes com ele no carro, fazer panfletagem em porta de fábrica e horas depois vieram me avisar que ele tinha morrido. Foi tudo muito duro e muito difícil, mas eu não abandonei a luta. Santo era uma liderança muito querida, companheiro e pai muito presente. Fiquei sozinha com meus dois filhos um de 13 e outro de 12 anos. Santo só não foi enterrado como indigente porque me avisaram, fui reconhecer o corpo no IML e Dom Paulo interferiu”.
Rose participa do Cooperifa há 18 anos, quando conheceu o Sérgio Vaz através de uma apresentação em uma fábrica. Com ele, Binho, Gog, Marcos Brandão eu conheci o lado da cultura e da poesia como expressão e manifestação de tudo que nos oprime. A poesia me fez retornar aos estudos que eu havia abandonado e hoje digo que não consigo entender a vida sem ter passado por uma professora, profissão que deveria ser a mais valorizada. Sérgio Vaz diz que com a poesia “está em busca do artista cidadão, e que através da Cooperifa as pessoas começam a falar”. “A cultura vai criando dentro da gente a identidade, traz a dimensão da solidariedade e da proteção, ao falar a gente vai elaborando as próprias histórias, se reconhece e consegue perceber os avanços da sociedade a nosso favor… Através da poesia a gente passa a ouvir o tom da própria voz…”.
O debate suscitou ainda algumas questões – quantos jovens estão se perdendo pela droga e pelo envolvimento com a polícia podem ser recuperados pelo movimento de cultura, pela poesia, por atividades que lhes fortaleçam e deem um novo sentido à vida; – todo ser humano merece respeito e oportunidades de se desenvolver e de ser, independente de classe, cor e gênero, precisamos estar todos juntos nesta luta, o feminismo precisa ir além da discussão de gênero, os homens podem ser grandes parceiros, o movimento negro precisa estar mais desarmado e se inserir, estar junto nas lutas de outros movimentos ; – a importância do diálogo e do cuidado com as pessoas ; a esquerda precisa se unir para fortalecer a nossa luta, precisamos estar cada vez mais juntos em torno daquilo que nos unifica.
O período da tarde do dia 01/11 foi dedicado à construção coletiva de encaminhamentos e articulações para fortalecer as diversas práticas de educação popular e unificar as lutas. Como resoluções: a construção de um núcleo/coletivo de educadores populares que se encontrará mensalmente na sede do próprio CDHEP a partir de fevereiro de 2020; encontros mensais para estudo coletivo da obra de Paulo Freire também a partir de fevereiro de 2020; continuidade do mapeamento das práticas de educação popular e saúde que acontecem na Zona Sul de São Paulo, já em andamento.
Em sala à parte, exposição em homenagem a Santo Dias, líder metalúrgico e militante da Zona Sul, resgatou a história de sua vida e morte, assassinado em 1979, pela ditadura militar. Que isto nunca mais se repita.
Ainda como parte da programação do encontro ocorreu a 24ª Caminhada Pela Paz e Pela Vida com o tema “levante a tua voz a favor de nossas vidas” no dia 2/11, dia de finados. A caminhada acontece a 24 anos na periferia Sul de São Paulo rumo ao cemitério do Jardim São Luiz e é articulada pelo Fórum em Defesa da Vida – Vidas negras, femininas e periféricas importam e é por isso que a periferia caminha junta.
A periferia pulsa! Articular, Ocupar e Resistir. Vamos à Luta!
O músico mineiro Djonga foi indicado para concorrer ao troféu de melhor artista internacional no BET Hip Hop Awards, especializado em hap e hip hop. O rapper, compositor e historiador é o primeiro brasileiro a ser reconhecido pelo evento. O BET Hip Hop Awards é uma premiação norte-americana anual realizada pela Black Entertainment Television e voltada para rappers, produtores e diretores de videoclipes de hip hop e Rap.
Ele vai disputar o prêmio com Kaaris (França), Khaligraph Jones (Quênia), Meryl (França), MS Banks (Reino Unido), Nasty C (África Do Sul) e Stormzy (Reino Unido). O BET Hip Hop Awards revelará os vencedores do ano no dia 27 de outubro.
Neste ano, Djonga lançou seu quarto álbum de estúdio, Histórias da Minha Área, onde conta um pouco sobre o bairro Santa Efigênia, onde mora em Belo Horizonte. O trabalho conta com participações de MC Don Juan, Bia Nogueira, Cristal, NGC Borges e FBC.
Depois de surgir como grande astro na cena do hip hop nacional e colocar seu nome entre os principais personagens da cena do rap no país, Gustavo Pereira Marques (seu nome de batismo) acaba de fazer história aos 26 anos tornando-se o primeiro brasileiro a ser indicado ao prestigiado BET Hip Hop Awards, premiação musical focada na cultura negra.
A indicação de Djonga aconteceu nesta terça-feira, 29, e ele concorre na categoria Melhor Artista Internacional. “Cravando o nome na pedra, sem emocionar!”, escreveu Djonga no Twitter ao dar a notícia. Na postagem, ele publicou um vídeo em que fala à MTV sobre a importância do rap no período da pandemia: “O rap tem que continuar fazendo o papel de sempre. O primeiro papel, e mais importante, é o papel de arte, de música, de levar alegria e reflexão para as pessoas. Em segundo lugar, continuar denunciado o que a gente sempre denunciou. Dedo na ferida, dedo na cara de quem tá errado”.
A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República, que mudou seu nome para homenagear o inconfidente
Não é possível comemorar a Independência do Brasil hoje sem pensarmos sobre um dos temas mais debatidos em nossa relação com a história: a polêmica das estátuas. Em 22 de junho de 2020, por exemplo, o Museu de História Natural de Nova York anunciou a retirada de uma estátua equestre de Theodore Roosevelt localizada em frente ao museu desde 1940. Vejam na fotografia acima que razões não faltaram, pelo modo subalterno com que negros e índios são representados.
Por Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo (UFOP)*
O diretor do Museu afirma que a recusa é ao monumento, e não à figura de Roosevelt, que continuará sendo homenageado pela instituição por seu pioneirismo na luta pela conservação do meio ambiente. Segundo a reportagem, um dos descendentes do ex-presidente, declarou:
“O mundo não precisa de estátuas, relíquias de uma outra era, que não refletem os valores das pessoas que pretendem honrar, ou os valores de igualdade e justiça”.
Em 2017 uma comissão estabelecida pela cidade de Nova York para reavaliar a pertinência de monumentos públicos havia decidido, em votação dividida, pela manutenção da estátua, apesar dos protestos de que já vinha sendo alvo e das promessas do museu em “atualizar” (update) suas exibições. Em 2019 o museu tomou a iniciativa de promover um debate com a comunidade e inserir elementos que pudessem contextualizar e criticar os aspectos racistas e colonialistas do monumento, bem como reavaliar as posições do próprio Roosevelt.
A iniciativa ficou registrada no projeto “Addressing the Statue”, que pode ser ainda visitado no site da instituição. O projeto é um excelente exemplo de como o interesse renovado pelos monumentos e personagens históricos, provocados por polêmicas, podem ser respondido pela produção de conhecimento e diálogo com a comunidade em busca de atualização. Algo que poderia não acontecer se a estátua tivesse que ser removida violentamente.
Com a onda de protestos que se seguem após o assassinato de George Floyd, os administradores do museu decidem finalmente retirar a estátua, em um desfecho que exemplifica como a atualização da monumentalização pública pode ocorrer em um ambiente democrático ampliando o seu sentido histórico, no lugar de apagá-lo, como acusam ligeiramente alguns críticos.
Estátua equestre de Theodore Roosevelt, a ser removida da frente do museu de História Natural de Nova York
Esse fato, que tem como centralidade a figura e a estátua de Roosevelt, nos remete à também polêmica estátua equestre de Pedro I, que se encontra na atual praça Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Ela carrega a mesma estrutura evolucionista e hierarquizante criticadas na estátua de Roosevelt.
Estátua como “mentira de bronze”
O monumento comemorativo da Independência foi erguido em 1862, e desde seu nascimento provocou fortes protestos, ainda que por razões diferentes. Mesmo que sua instituição tivesse por objetivo a consagrar Pedro I como o herói que libertou a nação, dando-lhe uma carta constitucional, ela não deixa de materializar as concepções evolucionistas e racistas das elites brasileiras. Ao mesmo tempo, esse episódio nos mostra a complexidade da instituição de monumentos: desde o início a estátua foi vista por grupos liberais como uma impostura contra a memória de outros movimentos e heróis da independência, o liberal mineiro Teófilo Ottoni lança no mesmo dia da inauguração um panfleto crítico em que chama a estátua de “a mentira de bronze”, ao mesmo tempo em que recuperava a figura de Tiradentes como o verdadeiro herói da Independência.
A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República. Nesse caso, no lugar de remover a estátua do ex-imperador, bastou às elites republicanas ressignificar o contexto da praça em um gesto ao mesmo tempo provocativo e de conciliação. Deixava de ser praça da constituição para ser Praça Tiradentes. Ironia ou conciliação?
Até hoje a posição subalterna da população indígena no monumento permanece invisibilizada, e sua atualização poderia passar, também, pela promoção de debates e, mesmo, pela remodelagem documentada do monumento. A estátua equestre, com o Imperador segurando a constituição, poderia, por exemplo, descer de seu pedestal evolucionista-racista e, em paralelo, outras formas de comemorar/celebrar os povos indígenas e denunciar sua opressão poderiam ser produzidas.
Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro
Retirar as referências de um passado sensível não nos deixaria com uma falta de “locais de memória” nas ruas? A solução, neste caso, seria a sua substituição e/ou convivência com novos monumentos aos grupos historicamente oprimidos e sub-representados, como mulheres, indígenas e negros. Mas é preciso pensar em que tipo de monumentos seriam esses.
Estátuas como selfies de celebrities
Segundo o crítico de arte britânico Jonathan Jones, derrubar estátuas é uma performance admirável, mas a ideia de substituir as estátuas derrubadas por outras de pessoas mais “merecedoras” da homenagem seria fruto de um pensamento artístico conservador. A estátua, para Jones, já não seria uma forma artística adequada para homenagens desde que Marcel Duchamp enviou um urinol para uma exposição de arte em Nova York. O mais adequado seria, então, dar espaço para que a arte contemporânea pudesse representar as vidas roubadas pela escravidão, pois a estátua reduz a história a apenas um rosto, um personagem, podendo apenas reforçar uma concepção simplista e conservadora de como a história acontece.
As estátuas, de modo parecido com as selfies, fazem parte de uma cultura de celebridades que não faz sentido para retratar horrores como a escravidão ou o Holocausto. De algum modo, a representação monumental dos personagens históricos parece evocar a concepção de um indivíduo linear, solar, sem falhas.
Considerando as cidades ou os países como grandes museus, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.
Sobre essa questão o historiador Fábio Faversani nos lembra que, na Roma Clássica, a noção de cidadão era excludente, o que significa que as representações eram, apenas, de pessoas consideradas cidadãos importantes. Assim, a questão sobre quem deve ser homenageado com uma estátua ou com um monumento está diretamente relacionada ao fato de se ter reconhecidamente o direito a ocupar os espaços da cidade, isto é: quem, por algum critério de legitimidade, é reconhecido como cidadão. A cidadania, na nossa democracia contemporânea, deve ser abrangente, não porque sejamos todos iguais, mas justamente por sermos diferentes – e, por isso, é preciso reconhecer e escrever as várias histórias que constituem a nossa sociedade. A derrubada violenta pode ser reconhecida como a forma radical de determinados grupos sociais chamarem a atenção dos políticos e da sociedade em geral. A derrubada violenta faz sentido quando não há oportunidade de diálogo. É preciso reconhecer que as tradições não são boas por si mesmas, pelo simples fato de serem uma herança de nossos antepassados; elas são mutáveis e só permanecem vivas se formas capazes de atualizar nossa história (nosso passado-presente-futuro) a partir delas de modo plástico e criativo.
Alguns críticos consideram a derrubada e/ou atualização de estátuas um tipo de anacronismo, no sentido de que reduziriam a história ao universo de valores do presente. Não estaríamos tirando estes personagens de seus contextos históricos? Diante de tais questões devemos nos lembrar que o racismo não é algo do passado; ele ainda está presente e tem consequências significativas nas nossas vidas. Muitos dos personagens que são hoje alvo de crítica cometeram ações que mesmo em suas épocas poderiam ser consideradas infames, mas acabaram tendo suas memórias protegidas por suas ligações com os poderosos da vez.
Estátuas como forma de criar mitos
Apenas tornando a história menos eurocêntrica e heteronormativa é possível evitar que as extremas-direitas usem referências do passado como forma de recrutamento e propaganda, como se o passado fosse homogêneo e sem disputas. E isto não significa negar a história ou falseá-la; a pluralidade é uma realidade, basta trazer à luz histórias esquecidas ou suprimidas das várias nações e povos que formam a nossa sociedade.
A divisão entre aqueles que defendem o patrimônio a qualquer custo e os que gritam “deixa quebrar” só ocorre porque não há políticas públicas efetivas de monumentalização voltadas para a reparação histórica, como aponta, também, Fernanda Castro. Vale notar que em países como o Brasil há uma grande dispersão de autoridades com mandato que permite gestos de celebração e monumentalização. A emergência do bolsonarismo, por exemplo, acontece em “paralelo” a uma epidemia de medalhas e outras celebrações de aliados cujas biografias se confundem com uma vasta lista de crimes.
Assim, os protestos nos quais estátuas são derrubadas ou depredadas podem ser uma forma de manifestação que surge de situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando de que problemas graves não encontram políticas públicas adequadas.
Destruir estátuas por si só não tornará as sociedades menos racistas, mas deve servir de estímulo para a identificação do que deve ser feito, como o combate à violência policial contra negros, por exemplo, bem como a implementação de políticas públicas de memória e antirracistas. Além de políticas públicas cujo objetivo seja a redução da desigualdade socioeconômica dos negros em relação aos brancos. Cabe enfatizar que a normalização da violência é amplamente utilizada pelos grupos de direita, como vimos no caso da destruição da placa da Rua Marielle Franco, que se tornou um símbolo de extremistas de direita na campanha eleitoral de 2018. Portanto, é preciso entender o contexto e o sentido da destruição de monumentos antes de fazer qualquer juízo definitivo.
O historiador Marcelo Abreu nos chama a atenção para o fato de que a desigualdade social presente no mundo precede as estátuas e os patrimônios que buscam moldar as identidades nacionais. Por isso, embora uma estátua possa representar uma identidade local ou nacional, a revolta contra o racismo desses “heróis” homenageados transpassa as fronteiras, já que a desigualdade não está presente em apenas um país. Nessa direção, a luta contra todas as formas de opressão nunca deveria fugir do horizonte de todos e todas que formam e lutam dentro do campo progressista.
Se os lugares de memória existem para nos recordar, constantemente, de quem somos nós, é muito natural que o valor desses lugares se transforme com o tempo, na mesma medida em que a própria sociedade se transforma. Já não aceitamos o racismo como em tempos bem próximos, logo, não faz sentido que queiramos deixar para o futuro homenagens a pessoas que defenderam esta forma de discriminação e dela se aproveitaram. Lutas como essas podem ajudar para a construção de pautas comuns no interior do campo progressista. Disputas e divergências sempre haverá, mas é preciso não perdermos o horizonte do comum.
O que vemos hoje é a reivindicação, muito justa, dos grupos que tiveram suas memórias e identidades subjugados, o que faz com que se reconheça que a nossa sociedade é composta por variadas memórias e identidades – muito diferente do “povo brasileiro” homogêneo que defendeu, em sua “atualização regressista”, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, durante a famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020. Em sua análise, relativa a esse “povo” ao qual faz referência a extrema-direita brasileira, a historiadora Luísa Pereira escreve: “O verdadeiro povo seria formado pelo homem simples, cristão, conservador, heterossexual, casado, pai de família, provedor, empreendedor e patriota […]. O verdadeiro povo é, portanto, homogêneo”. Uma ideia de povo e heróis celebrados pela atual propaganda política desse governo para o 7 de Setembro este ano.
Os protestos atuais nos quais estátuas são derrubadas em nome da luta contra o racismo e o colonialismo são formas de manifestação que surgem em situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando. Antes de condenar, a cidadania precisa se perguntar sobre o que está errado e precisa ser feito.
Como afirma Adam Prezeworski, em Crises da democracia: “A persistência da desigualdade é uma prova irrefutável de que as instituições representativas não funcionam, pelo menos não como quase todo mundo acha que deveriam. Portanto, o avanço do “populismo” — resultado da insatisfação com as instituições políticas que reproduzem a desigualdade e não oferecem alternativa — não deveria nos surpreender”.
Assim, no dia em que os mais diversos brasileiros rememoram sua Independência não custa lembrar que enfrentar as diversas opressões e desigualdades que marcam esse país é um desafio que nosso passado nos legou e que deve ser assumido coletivamente.
*Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.
100 mil mortos. Uma ação chamada Lute apesar do luto aconteceu na manhã deste sábado em São Paulo, num momento em que chegamos à essa triste marca pela pandemia do novo Coronavírus.
32 cruzes pretas foram colocadas aos pés de cada mastro de bandeira do Brasil, que estão localizadas na ponte da Cidade Jardim, Marginal Pinheiros.
100 mil mortos. Num momento como esse, a pergunta é: porque as bandeiras do Brasil que estão por todos os lados, não estão a meio-pau? Não existe normalidade, quando chegamos a 100.000 mortos. Não existe.
Cada morte tem nome, história, trajetória, família, filhas e filhos, pais, avós, netas e netos, amigas e amigos, tem rosto, sorrisos apagados, marcas do tempo, da vida. Não podemos esquecer e achar que estamos a caminho da normalidade.
Não.
100 mil mortos. Um governo que nunca prestou solidariedade a ninguém, que brinca descaradamente com a situação que passamos, que inventa curas milagrosas com remédios cuja ineficácia é cientificamente comprovada, um governo que nem ministro da saúde tem, sem vergonha na cara de espinafrar a ciência, os próprios médicos, que incita a invasão e violência a hospitais, e deixa as populações mais pobres à sua própria sorte, sem medidas mínimas para combater essa pandemia com sabedoria e inclusão.
A tristeza se torna mais forte ainda, quando nem o luto de cada perda pode ser respeitado. Quando os mortos não podem ser velados, perde-se a despedida, o fim da trajetória, o recomeço, a memória e as lembranças.
100 mil mortos. Toda bandeira do Brasil, em todo o território nacional, deve ser colocada a meio-pau. Para lembramos sempre de quem não está mais entre nós, mas que merecem que nós sigamos lutando para que o Brasil não seja lembrado como o País que enterrou mais vidas em todo o mundo, por egoismo, negacionismo e incompetência de um Governo.