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crônica

Parceria ou barbárie

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Acordo cedo e sei que o dia trará duras penas, desatinos, protuberâncias.

 

Os olhos já nem enxergam tanto diante de fac-símiles desfocados, mas a verdade insiste, pedra, diamante duro, não aflora ou se entrega. Sei apenas que há abusos e desfaçatez, ou o que chamavam de cara de pau quando nasci, cinismo, covardia. 

 

Reproduzo aqui o que jornais velhos estamparam um dia.

 

Hoje miopia, desencantos da inteligência ou longa noite apenas. 

 

No fundo do baú encontro, reporto, compartilho:   

Parceria ou barbárieManuela Carneiro da Cunha / Folha de São Paulo, 22/08/1993, pág 3- Tendências e Debates.

 

 

A contagem dos mortos Yanomami nem terminou e já há quem procure lucrar com os cadáveres. Até para se contestarem demarcações  e …(?)… demanda de recursos está servindo o massacre.

 

Não é a marcha inelutável e impessoal da história quem mata os índios, são ações e omissões muito tangíveis, movidas por interesses concretos. Mineradoras, madeireiras, setores das Forças Armadas e políticos locais, de olho na revisão constitucional, acobertados pela falta de vontade política do governo, desencadeiam uma campanha anti indígena na imprensa e estimulam um acerto de contas.

 

Nesta campanha há três ordens de censura que se estão fazendo aos índios: as de fundo, as absurdas e as irrelevantes. Irrelevantes (e mal intencionadas) são as censuras que não tem nada a haver com a verdadeira questão: o que pretendem é confundir a opinião pública e criar um clima, geralmente desfavorável aos direitos indígenas. Faz parte desse conjunto polimorfo a exploração do caso Paiakan.

 

Absurdas são as preocupações de segurança e fronteiras que os índios causam às Forças Armadas. A propósito desses cuidados, bastará repetir o que o senador Jarbas Passarinho escreveu em um número recente da “Revista do Clube Militar”: Qual o risco para a soberania nacional? Nenhum”.

 

Resta a verdadeira questão: a Constituição não proíbe a mineração em áreas indígenas, mas prescreve salvaguardas especiais. Esta é uma questão de fundo que deveria ser discutida em seus próprios termos e não escondida por uma nuvem de fumaça.

 

Justiça, economia e política são os termos da questão. Na ótica da justiça não há o que sofismar. Sacrificar a sobrevivência de sociedades indígenas é inadmissível. Essas populações têm direito a seus territórios por motivos históricos, que foram reconhecidos no Brasil ao longo dos séculos. O que argumento aqui é que essa justiça pode concorrer para interesses nacionais. Falo dos verdadeiros: frequentemente demais, tomam-se os interesses particulares de mineradoras, por exemplo, por interesses gerais do Brasil.

 

É preciso ultrapassar a miopia econômica e estratégica que clama pela exploração imediata de todas as riquezas do país. A riqueza natural da Amazônia não só seus minérios, suas madeiras, seus recursos hídricos: são também sua biodiversidade e os conhecimentos de que se dispõe acerca dela. Existem pelo menos uma 250 mil espécies vegetais, 95% da alimentação mundial repousa apenas sobre 30 espécies, o que torna a humanidade particularmente vulnerável a vírus que as afetem. Daí decorre a importância estratégica fundamental de bancos genéticos e de sementes que permitem novos pontos de partida.

 

As variedades vegetais evoluem e eventualmente co-evoluem com microorganismos. Tão essencial quanto a conservação nos seu local de origem: e esta não é obra simplesmente da natureza e sim de gerações de cultivadores.

 

Tudo isto aponta para duas coisas: primeiro, que a riqueza biológica é uma das mais estratégicas para o século 21. Segundo, que o conhecimento das populações indígenas é fundamental para sua exploração.

 

Resumindo: numa perspectiva tanto estritamente econômica quanto estratégica, é irracional querer abrir todas áreas da Amazônia à exploração indiscriminada. Os direitos dos índios podem assim coincidir com os interesses da sociedade brasileira. Foi nessa mesma perspectiva que, na Constituinte, a Coordenação Nacional dos Geólogos defendeu(contra mineradoras) que áreas indígenas fossem reservas minerais, ou seja as últimas a serem exploradas.

 

Para a conservação da riqueza biológica, o raciocínio deveria ser semelhante: avalia-se que se a floresta tropical for preservada apenas nos parques e reservas ambientais existentes, 66% das espécies podem se extinguir. Tanto para evitá-lo quanto para preservar conhecimentos, é preciso estabelecer um novo pacto com populações indígenas. Nada há a alterar na Constituição, que já contém essa postura.

 

O Ano Internacional do Índio, que foi colocado sob o lema”Povo indígena: uma nova parceria”, está manchado pelo massacre Yanomami. Há o risco de que seja também lembrado por uma ardilosa destruição dos direitos indígenas na Constituição. Ou por uma nova e enfim civilizada parceria.

 

 

 

 

Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha é antropóloga, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1976) é graduada em matemática pela Faculté des Sciences de Paris (1967). Fez pós-doutorado na Universidade de Cambridge. Foi professora doutora da Universidade Estadual de Campinas e professora titular da Universidade de São Paulo, onde, após a aposentadoria, continua ativa. Foi full professor da Universidade de Chicago de 1994 a 2009, onde é professora emérita. Foi professora visitante na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, na Universidade Pablo de Olavide, na Universidade de Chicago (antes de ser contratada); no PPGAS do Museu Nacional (UFRJ). Foi titular da cátedra “savoirs contre pauvretés” no Collège de France em 2011-2012. É membro da Academia Brasileira de Ciências, e da Academia de Ciências do terceiro mundo; foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia (1986-88) e representante da comunidade cientifica no CD (conselho deliberative) do CNPq, onde foi bolsista na categoria A1. Atuou como juri dos Programas do Milênio (2001), e fez parte do International Advisory Group (IAG) do Pilot Program to Conserve the Brazilian Rain Forest (PPG-7). Foi indicada em 2014 pelo Governo Brasileiro para compor a Força Tarefa da IPBES (Plataforma Inter-governamental da Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos). É membro da (ILK Work Force) Força Tarefa de Conhecimentos de Povos Indígenas e Comunidades Locais da IPBES (2014-2019) e Overall Review Editor do Global Assessment dessa plataforma (2017-2019). Colabora também na Plataforma Brasileira da Biodiversidade e é membro, desde 2018, do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Recebeu várias distinções, entre as quais a Ordem do Mérito Cientifico na Classe Grã Cruz, a Légion d´honneur da França, a medalha Roquette-Pinto da Associação Brasileira de Antropologia e a medalha da Francofonia da Academia Francesa. Em 2018 recebeu o Prêmio de Excelência Gilberto Velho para Antropologia conferido pela ANPOCS. Publicou 12 livros, 38 artigos em Periódicos especializados e 32 capítulos em livros, e organizou quatro livros. Seus livros receberam prêmios da ANPOCS, Jabuti e da Biblioteca Nacional. Sua atuação distribui-se pela etnologia, história e direitos dos índios, escravidão negra, etnicidade, conhecimentos tradicionais e teoria antropológica. Entre suas publicações constam os livros “Cultura com aspas”; “Negros, estrangeiros” e “Os mortos e os outros” ; organizou entre outras obras “História dos índios no Brasil” e “Enciclopédia da floresta”. Na Universidade de São Paulo, fundou em 1986 o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo e dirigiu um projeto temático sobre História Indígena. Foi PI (Principal Investigator) de um projeto colaborativo financiado pela Fundação MacArthur (1992-1995) sobre conhecimentos tradicionais no alto rio Jurua, Acre; PI de projeto no CEBRAP financiado pela Fundação Ford sobre Políticas Culturais Indígenas (2009-2014); recebeu encomenda do Ministério de Ciência Tecnologia e Inovação (2014-2017) para estabelecer bases de um programa sobre conhecimento indígena, e, recentemente, para construir diagnóstico sobre as contribuições dos povos indígenas e comunidades locais no Brasil para a geração, manutenção ou conservação da biodiversidade e a recuperação de solos e outros serviços ecossistêmicos. Formou mais de 30 mestres e doutores em sua atuação na Unicamp, na USP e na Universidade de Chicago. Faz parte de numerosos conselhos editoriais de revistas científicas.

Certificado pelo autor em 27/01/2020.

 

Manuela: vivemos em mundo ao contrário

crônica

Provocação acerca do egoísmo

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Após feridos e mortos, e em dia de eleição do presidente americano, estamos próximos ao final do ano de 2020. Adquiri novos livros, reviro outros antigos, sei que de tudo fica um pouco, tudo vira história. 

Na pandemia encontrei desenhos belíssimos de Noemia Mourão, artista plástica e esposa de Di Cavalcanti. Mistura-se, enlaça papéis, pensamentos atuais sobre desenhos antigos.

Recorte no texto de Ailton Krenak e desenho de Noemia Mourão* 

  “Outro dia fiz um comentário público de que a ideia de sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou muitas pessoas. Disseram que eu estava fazendo uma afirmação que desorganiza uma série de iniciativas que tinham como propósito educar as pessoas sobre o gasto excessivo de tudo. Eu concordo que precisamos nos educar sobre isso, mas não é inventando o mito da sustentabilidade que nós vamos avançar. Vamos apenas enganar, mais uma vez, quando quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo no ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto.

 Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma compreensão sobre a vida na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo – isso é uma mentira bem embalada.

 A própria ideia de certificação, dos teste que são feitos com materiais que consumimos, desde a embalagem até o conteúdo, deveria ser posta em questão antes de a gente abrir a boca para dizer que existe qualquer coisa sustentável neste mundo de mercadoria e consumo. Estamos transformando oceanos em depósitos de lixo impossíveis de tratar, mas vocês, certamente, vão escutar um bioquímico  ou um engenheiro espertalhão dizendo que tem uma startup que que vai jogar um negócio na água, derreter o plástico e resolver tudo. Essa pilantragem orienta, inclusive, a escolha de jovens que vão fazer especialização na Alemanha, na Inglaterra, ou em qualquer lugar,e voltam ainda mais convencidos do erro. Voltam, assim, transbordantes de competência para persuadir os outros de que comer o mundo é uma ótima ideia.

 Enquanto as bases materiais da nossa vida cotidiana estão funcionando, operantes, a gente não se pergunta de onde vem as coisas que consumimos. Na maioria de tempo, as pessoas mal respiram ou têm consciência do que põem na boca para comer. Apenas quando há um desastre, os indivíduos, desplugados das fontes de suprimentos, começam a sofrer e a se questionar. Quem sobrevive a uma grande catástrofe costuma pensar em mudar de vida porque teve uma breve experiência do que é, de fato, estar vivo. Existem muitos povos vivendo situação de perdas, de catástrofe, de guerra. Ouvir sobre como essas pessoas agem para sair de um trauma profundo, olhar ao redor de si e recomeçar sua jornada nisso que chamamos “seguir vivendo”, pode ser instrutivo, mas não substitui a experiência.

 Estou há dois anos vivendo na margem esquerda de um rio junto com outras famílias do meu povo que, do ponto de vista prático, tinham que ter sido removidas daqui, como o que aconteceu com o pessoal de Brumadinho, de Bento Rodrigues e outros lugares. Os Krenak não aceitaram ser retirados, quisemos ficar no local do flagelo. “Ah, mas vocês não tem água!” E daí? “Ah, mas vocês podem morrer aí!” E daí? Sabemos que esse lugar foi profundamente afetado, virou um abismo, mas estamos dentro dele e não vamo sair. É uma questão que incomoda, mas é preciso estar nessa condição para poder produzir uma resposta em plena consciência. Consciência do corpo, da mente, consciência de ser o que se é e escolher ir além da experiência da sobrevivência.”

in A vida não é útil – Companhia das Letras

*  Ailton Krenak, líder indígena, pensador, ambientalista e escritor,66 anos, escolhido intelectual do ano, ganhador do prêmio Juca Pato, premiação realizada pela União Brasileira de Escritores, que reconhece autores que contribuem para o desenvolvimento da democracia brasileira.

 *Noemia Mourão(1912/1992), pintora, cenógrafa e desenhista. Estudou e casou-se com Di Cavalcanti.

*imagens por Helio Carlos Mello

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crônica

Boi bombeiro, boi de piranha na terceira margem

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Baixo Xingu, Kawaiweté

Cantou o poeta Gilberto Gil, certa feita, que sentir é questão de pele e amor é movimento. Sempre, aqui e agora, estanca-se amor.

coração e pele de uma gente de origem

A pele da terra é sua floresta, sua caatinga ou cerrado, mangue, restinga. Nada disso sabem no ringue, imbecis apostadores. Como tu és ou não, eu já não santo ou saberei. Sei de mim, filho da terra, Terra, como ti.

Querem fazer do boi um ser que combate o fogo. Tadinho do boi, na Índia ser tão respeitado, as vacas da maternidade, tolerância, mansidão, sustento do humano. 

Aqui, profana vaca muge heresias. Novos ventos, leitos banais na ocupação de nossa equação? Estranha aritmética no fogo da razão.

Baixo Xingu, Kawaiweté
Crianças Kawaiweté, em
feliz pedagógica canoa e exercício de equilíbrio, prumo e rumo.

Resta-nos apenas a terceira margem do rio, penso como Guimarães Rosa, mandar fazer uma canoa. Aprendi que coisa séria em canoa é o remo, seu rumo.

Sem fim seguem absurdas afirmações da função dos animais. Atribuem qualidades ao gado de corte. De fato é o boi nosso churrasco, mas fogo não é seu apreço.

Preço da carne são outros 500. Índio pensa no desequilíbrio da água e seu brilho.

Aldeia Capivara
À margem do Xingu, na pesca diária da vida e educação indígena.

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crônica

Raoni, da paz de origem, do guerreiro à ciência da vida

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Fico pensando na paz, ausência de excitação, estado de calma. Não o Buda e seu prêmio de afastamento do mal e a eliminação dos demônios, mas o largar as armas, entender a palavra. É prêmio da paz a serenidade? Creio que sim, tal lavar a roupa da noite à beira de rio, tão puro, na alvorada de cada dia.

Alto Xingu
Alvorada entre os povos tradicionais e seus asseios e gratidão, ciência de quem sabe.

Quando nasci havia um pedido de paz, recordo bem nas igrejas da época. Vivi dia assim de paz apenas entre indígenas, homens fortes de luta, luto e senha. Há uma paz entre grandes guerreiros, por mais que ameacem. Descobrimos quando velhos que as armas apenas entristecem, vingam, atiçam a sanha.

Cacique Raoni em sua juventude
Raoni e sua juventude

https://www.facebook.com/watch/live/?v=251647662554241&ref=watch_permalink

Ropni, o cacique Raoni, o mestre das palavras e seus calibres no alvo de nosso peito, representa 5 séculos do brado dos povos nativos daqui, de um planeta Terra. Raoni sempre disse aos kuben, nós mesmos, os homens brancos, que os espíritos lhe dizem sobre a destruição das florestas e suas consequências.

A paz do cacique é a saúde da Terra. Sempre voltamos ao começo na esperança da paz.

live

http://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html

*imagens por helio carlos mello

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