Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Stocker
À direita dizem que não está acontecendo um golpe no Brasil. Afinal, os canhões não estão nas ruas e não tem milico governando. Se não tem milico governando e canhão na rua, os da direita dizem que não é golpe. Pra ter golpe mesmo só com canhões na rua e milico governando. Não pode ser diferente.
À esquerda, por uma lógica inversa, também existe o mesmo fetiche com as baionetas. Os companheiros e companheiras estão sempre à espera da chegada dos canhões. Basta um general de pijamas e sem tropas vomitar meia dúzia de tweets que o pânico se espalha. Afinal, se é golpe, e os da esquerda dizem que é golpe, tem que ter canhão na rua e milico governando. Não pode ser diferente.
Uns e outros erram porque não percebem que os tempos mudaram e os golpes mudaram junto. Mudaram também as formas de resistência. É exatamente disso que quero falar neste ensaio. Novos tipos de golpe exigem novas práticas de resistência. Trato aqui especificamente da resistência que vem sendo organizada pelo Partido dos Trabalhadores.
Antes, alguns esclarecimentos:
“Guerra Híbrida” / “Lawfare”
É impossível entender o que está acontecendo no Brasil sem compreender o que essas palavras significam.
“Guerra híbrida” é um termo usado para definir estratégias de ataque que não se limitam à esfera militar. Na “guerra híbrida” não ouvimos bombas estourando e metralhadoras produzindo o som da morte. Não há vísceras e membros espalhados no chão. A “guerra híbrida” acontece em silêncio e com tom de legalidade. A “guerra híbrida” é tão discreta que nem parece guerra. Mas é guerra sim. É muita guerra.
A “guerra híbrida” envolve ciberataques, difusão de fakenews, espionagem, desestabilização de governos.
Até hoje ainda existe quem acredita que o Lulinha é dono da Friboi. Os donos da Friboi já foram presos, já ficou evidente que o Lulinha nunca teve nenhuma relação com a empresa. Mesmo assim, não é difícil ouvir na rua alguém dizendo “Lulinha era zelador de zoológico e agora é dono da Friboi!”. A “guerra híbrida” também deixa cicatrizes.
Na “guerra híbrida” chefes de Estado são espionados. Foi isso que a CIA fez com Dilma entre 2013 e 2015. Deve ter feito mais, provavelmente fez mais. Deve tá fazendo isso agora com centenas de pessoas ao redor do mundo.
Sabiam não, leitor e leitora? Tão achando que é teoria da conspiração? Não é não. É verdade verdadeira. A CIA espionou a Dilma entre 2013 e 2015, exatamente quando a crise brasileira se tornava mais aguda. Teve maior repercussão na época. Deu até no “Fantástico”. Só googlar aí que vocês acham.
É tática da “Guerra Híbrida” utilizar a lei para perseguir adversários políticos. É isso que chamamos de lawfare. O caso do triplex do Guarujá é o exemplo mais acabado de lawfare. Daqui uns tempos vai ser tutorial de lawfare.
Resumindo, relembrado:
A família Lula da Silva comprou uma quota imobiliária num condomínio. Essa quota foi declarada no Imposto de Renda de Lula e de dona Marisa. Até aqui não existe triplex. É uma quota imobiliária, apartamento na planta, desses que a gente paga as prestações.
Aí, Leo Pinheiro, um “campeão nacional” (termo usado para designar os maiores empresários do país), sabendo que Lula é um ativo político importante, chegou à meia voz e disse:
– Que apartamento chinfrim, presidente. O senhor merece mais. Vamos dar um plus nesse negócio!
Leo Pinheiro, no lugar da tal quota imobiliária, ofereceu um triplex para Lula no mesmo condomínio. Ele queria que Lula pagasse um apartamento normal e recebesse um triplex, com elevador privativo, cozinha planejada, banheira de hidromassagem e um monte de outros luxos que eu nem sei que existem.
Lula visitou o apartamento, foi fotografado. O zelador do prédio disse que a obra estava sendo supervisionada pessoalmente por Marisa Letícia. Essas são as provas mobilizadas por Sérgio Moro: a fotografia e o testemunho do zelador.
Lula aceitaria o regalo? Daria algo em troca? A relação de Lula com os “campeões nacionais” se tornou abusiva e imoral? Lula poderia ter sido mais cuidadoso?
Temos aí conversa pra mais de metro e cada um pode acreditar no que quiser. Fato, fato mesmo é que a família Lula da Silva não ficou com o triplex, nunca morou no triplex. O triplex nunca foi de Lula. Além disso, Sérgio Moro não conseguiu mostrar em quais atos de ofício, Lula, na posição de presidente da República, beneficiou a OAS para fazer por merecer os mimos.
Hoje, Lula está preso, condenado a 12 anos em regime fechado.
Por outro lado, existe um e-mail onde Fernando Henrique Cardoso pede dinheiro a Marcelo Odebrecht, outro “campeão nacional”. Entendam: FHC pediu, textualmente, dinheiro. Tipo, “Ei você aí, me dá um dinheiro aí”.
O Ministério Público e a Polícia Federal não tocaram em Fernando Henrique Cardoso, não relaram nenhum dedinho nele.
É assim que a lawfare está funcionando no Brasil: a ampliação seletiva do conceito de “corrupção” visando a criminalização de determinadas lideranças políticas.
É evidente que estamos vivendo em uma situação de golpe, um outro tipo de golpe, é claro. Sem canhões na rua, sem milico no governo, mas nem por isso menos golpe. Não precisa ter canhão na rua e milico governando para ser golpe.
Como é possível reagir a esse novo tipo de golpe?
Luta armada? Fugir da polícia? Milhões de pessoas nas ruas protestando?
No dia da prisão de Lula, muitos companheiros e companheiras, tomados pela emoção, prometiam resistência direta. Outros diziam que Lula deveria fugir para uma embaixada. Todos estavam equivocados.
Politicamente é melhor ser mártir do que ser fugitivo. É melhor estar preso do que estar foragido. É mais seguro também. Duvido que alguém tenha coragem de matar Lula numa prisão brasileira. Agora, em qualquer outro lugar do mundo….
Milhões de pessoas nas ruas protestando seria algo maravilhoso de ver. Mas essa não é a nossa realidade. Não vivemos, no Brasil e no mundo, tempos de mobilização. As agendas coletivas não afetam mais as pessoas. As pessoas olham umas para as outras e enxergam mais diferenças que semelhanças.
O que fazer, então, diante de um cenário tão complexo? Como reagir a esse novo tipo de golpe?
Estou convencido de que a direção do Partido dos Trabalhadores encontrou a estratégia adequada: insistir nos trâmites institucionais.
Trata-se de uma crença ingênua na legalidade?
Não, de forma alguma. O objetivo é esgotar as instituições, levando-as ao seu limite, obrigando-as a adotar medidas de exceção. O Partido dos Trabalhadores obriga os golpistas a deixarem no chão as suas pegadas. Destaco três momentos em que a estratégia ficou muito clara.
1) O processo de impeachment da presidenta Dilma
Desde a admissão do pedido de impeachment na Câmara dos Deputados já estava claro que Dilma seria afastada. Mesmo assim, o Partido dos Trabalhadores foi até o fim, esgotando os mecanismos institucionais. Isso não foi feito para permitir que José Eduardo Cardozo desse seus showzinhos de eloquência. O objetivo era fazer com que os deputados, em rede nacional, encenassem aquele espetáculo grotesco que vimos em 17 de abril de 2016. O objetivo era forçar os senadores a dizerem com clareza que não estavam a favor do impedimento por causa das pedaladas fiscais, mas, sim, pelo “conjunto da obra”.
Apenas no parlamentarismo é possível derrubar um governo ruim. No presidencialismo, somente crime de responsabilidade derruba governo. O impeachment de Dilma é um golpe parlamentarista contra uma República presidencialista.
Tá tudo gravado, registrado em nota taquigráfica. O golpe de 2016 talvez seja o evento mais documentado da história política brasileira. É fácil, fácil contar essa história.
2) A ofensiva de Rogério Favreto
Ainda está fresco na memória de todos nós o dia 8 de julho de 2018, um domingo, quando Rogério Favreto, desembargador do TRF-4, ligado ao Partido dos Trabalhadores, autorizou um habeas corpus em benefício de Lula.
Nenhuma ilegalidade aqui. O desembargador de plantão é soberano e sua decisão somente pode ser anulada pelos outros juízes. Nesse dia, as forças do golpe agiram à revelia da lei e, informalmente, ordenaram que a PF descumprisse a ordem de soltura. Qualquer outro preso seria solto, nem que fosse para prende outra vez no dia seguinte, quando o habeas corpus fosse derrubado.
O que vale para todos não vale para Lula. No dia 8 de julho de 2018, o Partidos dos Trabalhadores obrigou os golpistas a saírem daquela tradicional preguicinha de domingo para mostrar ao mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.
3) A representação na ONU
A notícia de que a ONU havia feito uma recomendação pela garantia dos direitos políticos de Lula caiu como uma bomba em 15 de agosto de 2018, provocando reações apaixonadas por todos os lados.
Na letra fria da lei, a recomendação não altera em nada a situação do presidente Lula. Porém, a manifestação da ONU, provocada pelo PT, irá obrigar as forças do golpe a descumprirem tratados internacionais que o Brasil, no exercício de sua soberania, assinou.
Isso pode se desdobrar em sanções comerciais, em constrangimento diplomático, além de desgastar a imagem de algumas lideranças do Judiciário brasileiro, especialmente de Luís Roberto Barroso, que é o relator do caso Lula no TSE. Barroso é aquele típico bacharel tropical colonizado: adora pagar de civilizado no centro do mundo, como quem diz “Vejam como sou limpinho”.
Se fosse outro preso, o golpe não sacrificaria o pouco de credibilidade internacional que ainda lhe resta. Lula vale o esforço. Com Lula, tudo é diferente. É que Lula não é um preso comum, é um preso político.
De burro, nosso povo não tem nada. As pessoas viram isso tudo, estão vendo o que está acontecendo e essa percepção se traduz em manifestação eleitoral.
Tá tendo golpe, tá tendo muito golpe. Mas tá tendo resistência também. Uma resistência possível e adequada aos novos tempos. Não é a resistência dos nossos sonhos. Todos sonhamos com resistência direta e épica. Nossos sonhos estão ultrapassados.
Ao que parece, a resistência está dando resultado, um resultado possível: Dilma lidera com folga para o Senado em Minas Gerais. Lula, no calabouço de Curitiba, sem fazer campanha, cresce a cada pesquisa. Tudo indica que Haddad herdará uma quantidade suficiente de votos para chegar pelo menos ao segundo turno. A situação não está fácil também para os golpistas.
Penso que há motivo para termos algum otimismo, nem que seja para preservar a saúde mental. Além disso, como já disse Frei Beto, mais vale deixar o pessimismo para dias melhores.