Não era bandido, era trabalhador

Por Natália Martino e Leo Drumond | Projeto Voz para os Jornalistas Livres

Um salário mensal que pode ser recebido pela família de alguém condenado à privação de liberdade. Trata-se do auxílio-reclusão, tão maltratado por aqueles que se referem a ele como “bolsa bandido”. Digo “pode” porque os requisitos necessários para conseguir tal recurso são tão amplos que apenas 24 mil famílias conseguem acessá-lo – em um universo de mais de 600 mil detentos, ou seja, não chega a mais de 4% da população carcerária. O pagamento desse benefício causa um impacto de menos de R$ 2 milhões nos gastos da Previdência Social brasileira, o que corresponde a cerca de 0,5% do total, de acordo com relatórios do governo federal de 2014, últimos dados disponíveis. O que disse até aqui já é informação suficiente para desbancar tantos ataques a esse instituto, mas é melhor explicar cada um deles mais detalhadamente.

Itauna_MG, 30 de janeiro de 2014. Modelos alternativos de presidios Na foto, a APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policias e armas Foto: LEO DRUMOND / NITRO
Na foto, padaria da APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policias e armas

Comecemos pelos requisitos. São muitos e eles podem ser conferidos aqui, mas vale um destaque. O ponto de partida é a contribuição previdenciária do agora condenado, antes trabalhador. Ao contrário do que muito se propaga, a dicotomia trabalhador versus criminoso não existe. Grande parte da população carcerária brasileira é formada por pessoas que possuíam algum tipo de ocupação legal antes da prisão, mesmo que isso acontecesse paralelamente a atividade ilícitas. Se a maioria não acessa o auxílio-reclusão, é porque a ocupação tantas vezes não se concretiza em empregos formais e sim em bicos e similares. Isso sem contar a impossibilidade de algumas famílias conseguirem vencer a burocracia e apresentar certos documentos exigidos quando tantas vezes nem mesmo endereço reconhecido pelo poder público possuem.

A história do auxílio-reclusão é uma evidência de que cometer atos ilícitos não é uma exclusividade de “vagabundos que não trabalham”. Foi instituído pela primeira vez pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), em 1933, seguido pelo também extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), em 1934, autarquias que substituíram as antigas Caixas de Aposentadorias, mantidas pelas empresas. Nasceu, portanto, do reconhecimento de categorias profissionais da sua vulnerabilidade frente ao Sistema de Justiça Criminal. Em 1960, foi incluída na Lei Orgânica da Previdência Social e, mais tarde, em 1988, foi reconhecido pelaConstituição da República, no artigo 201.

Ribeirao das Neves_MG, 09 de Janeiro de 2014 Imagens do primeiro presidio construido e administrado no regime de PPP (Parceria Publico Privada) no estado. Foto: LEO DRUMOND / NITRO
Detentos em oficina de trabalho no primeiro presidio do regime de PPP (Parceria Publico Privada) em Minas Gerais

O fato de se tratar de um auxílio previdenciário também faz com que seja necessário se destacar o seguinte: a Previdência Social é um fundo conhecido como solidário. Isso significa que empregados, empresas e Estado contribuem para garantir o bem-estar daqueles que ficarem impedidos de trabalhar por um período, seja por estarem sob a custódia do Estado, seja por estarem doentes, seja por terem alcançado uma idade avançada. Esses, por algum momento, também contribuíram para garantir o bem-estar de outros enquanto trabalhavam e contribuíam. O benefício recebido é proporcional ao que foi pago ao fundo anteriormente. Não há que se falar, portanto, em “homens de bem sustentando vagabundos”. E, claro, ninguém vai dizer que a culpa do tão alardeado “rombo da Previdência” é de um benefício que consome menos de 0,5% dos seus recursos, correto?

Quem ajudar: agressores ou vítimas?

Superada, então, a classificação de “bolsa-bandido”, já que estamos falando de trabalhadores, é preciso esclarecer outras questões fundamentais. Em primeiro lugar, aqueles que atacam o beneficio usam com frequência o subterfúgio de dizer que a vítima ficaria desamparada enquanto os bandidos seriam beneficiados. Pretendem, assim, garantir a empatia dos interlocutores, que, obviamente, tendem a ser mais condescendentes com os agredidos. É, como tantos outros, um argumento superficial que não leva em consideração que a mesma Previdência Social garante auxílios como pensão por morte ou aposentadoria por invalidez para as vítimas – esses responsáveis por aproximadamente 9% e 4%, respectivamente, dos gastos do fundo (lembrando que nem todos os casos tiveram como causa atos de violência). Em outro texto, podemos tratar também do trabalho realizado atrás das grades, que gera um salário do qual é retirado um terço para assistência de vítimas de violência.

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Na foto, recuperando do regime fechado na APAC de Itauna

Por último, a alegação de que o benefício seria um incentivo ao crime ao criar condições para que o “bandido” usufrua do dinheiro do Estado para sustentar a si e a sua família é, no mínimo, inocente – e, em muitos casos, demagoga e maldosa. Como se não bastasse estar enclausurado diariamente, obrigado a conviver em celas superlotadas, sem circulação de ar ou luz do sol, com pessoas com as quais não se possui vínculos afetivos e que, em tantos casos, têm histórico de violência, as celas brasileiras são absolutamente insalubres em sua maioria.

De acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, realizada nos presídios paulistanos, 58% dos detentos afirmam que não há água suficiente para beber, 95,3% disse ter sido agredido dentro das unidades prisionais e 58,7% alega não ter acesso a atendimento médico. Por causa dessas condições, a infecção por tuberculose, por exemplo, é quase 30% maior do que no restante da população. Se alguém acha um bom negócio trocar um trabalho de 8h diárias por um situação dessas 24h por dia, que se habilite no posto policial mais próximo.

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