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Manoel Mattos: o primeiro caso de federalização do país

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O assassinato do advogado e vereador Manoel Mattos, em 24 de Janeiro de 2009, tornou-se um caso emblemático não apenas pela brutal execução de um defensor de direitos humanos. Este foi o primeiro caso de federalização admitido pela Justiça Brasileira desde a criação do instituto, pela Emenda Constitucional 45/2004, conhecida como reforma do Judiciário. A “federalização”, no jargão técnico, é chamada de Instituto de Deslocamento de Competência (IDC), e permite que o Procurador-Geral da República requeira o deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal em casos de grave violação aos direitos humanos. Cabe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidir pela procedência do IDC, levando o caso a tramitar perante a Justiça Federal. A decisão pela federalização do caso do assassinato de Manoel Mattos ocorreu em 27 de outubro de 2010, e transitou em julgado em dezembro daquele ano, quase dois anos após o assassinato de Manoel Mattos.

Um único pedido de federalização havia sido apresentado anteriormente. Trata-se do caso do assassinato da missionária e defensora de direitos humanos Dorothy Stang, assassinada em fevereiro de 2005 no Pará. Este IDC foi negado pelo STJ em junho do mesmo ano, e o caso tramitou perante a justiça paraense.

A importância do caso de Manoel Mattos para a defesa dos direitos humanos no Brasil é lembrada, nesta entrevista, pelo advogado Eduardo Fernandes, professor da Universidade Federal da Paraíba, que atuou como um dos assistentes de acusação pela Dignitatis.

Justiça Global: Como foi o início da sua relação com Manoel Mattos? Você o acompanhou na sequência de ameaças que passou a receber por sua atuação como defensor de direitos humanos?

Eduardo Fernandes: Eu era assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra no início dos anos 2000, trabalhava na Paraíba com questões fundiárias e sabia que existia uma discussão muito grande sobre a atuação de grupos de extermínio na divisa do Estado da Paraíba com Pernambuco. Havia, naquela época, uma CPI da violência no campo na Paraíba, e também uma CPI do Tráfico de Armas e Drogas em Pernambuco. Eu conheci Manoel Mattos quando passei a trabalhar na Justiça Global. Foi por meio do então deputado estadual Luiz Couto, que iniciava uma CPI aqui na Paraíba para complementar a de Pernambuco. Meu trabalho pela Justiça Global era apurar as ameaças contra defensores de direitos humanos que atuavam na divisa – sobretudo contra a Dra. Rosemery, que era Promotora de Justiça, e contra o vereador Manoel Mattos. Essa foi a nossa primeira aproximação. Eu fiz uma entrevista com ele em conjunto com outros pesquisadores da Justiça Global. Fizemos um apanhado de todos os depoimentos e da documentação que ele e a Dra. Rosemery tinham e encaminhamos naquela mesma semana, em 2002, um pedido de medida cautelar à OEA. Em 15 dias, foram concedidas medidas protetivas para ele, para a Dra. Rosemery e para o Lula, que era um ex-membro de um grupo de extermínio. O próprio Lula foi vítima de queima de arquivo anos mais tarde.

JG: As ameaças contra Manoel começaram no início dos anos 2000? Foram coincidentes com o início do mandato de vereador da cidade de Itambé, em 2001?

EF: Foi praticamente isso. Ele já tinha uma atuação junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itambé e também junto ao diretório regional do PT, então ele tinha uma vida política muito ativa que começou a incomodar bastante alguns setores da região. Principalmente por sua atuação junto a trabalhadores rurais – algumas ações de indenização contra as usinas da região paravam no meio do caminho por desistência dos trabalhadores, motivada pelo medo, por ameaças e até mesmo por assassinatos. Então mesmo antes do mandato parlamentar, já havia uma atuação e já havia uma pressão, embora não houvesse algo tão explícito. Tinha uma pressão por ele estar mexendo em uma estrutura arcaica, e ele começou a mapear isso. Em paralelo, a Dra. Rosemery, que era promotora na região, também começava verificar uma tendência, uma continuidade de circunstâncias de assassinatos que ficavam sem explicação. E ainda tinha um agravante, porque muitos desses crimes ocorreram exatamente na divisa entre Paraíba e Pernambuco, então as etapas de execução do crime acabavam divididas entre dois estados. O crime envolve a investigação em dois estados, então é uma situação burocrática muitas vezes indefinida. Até para cumprir as diligências você precisa de autorização do outro estado, e isso vira um facilitador para esses crimes. O corpo poderia, por exemplo, ser desovado em outro estado, então todo procedimento policial era feito de um lado, se fosse ao contrário, da mesma forma. Isso fazia com que a relação ali na divisa se tornasse problemática, até porque na Paraíba, para você ficar um pouco estarrecida, o primeiro concurso para polícia civil só foi em 2002. Então eram cargos de indicação, eram nomeações, o governador do estado escolha um primo, um parente, algum amigo do prefeito, sargento, então a situação era muito complexa lá porque as relações pessoais interferiam no estado da investigação.

JG: Após o relato de todo esse conjunto de ameaças à OEA e a concessão de medidas cautelares, Manoel e os outros beneficiários contaram com proteção efetiva?

EF: Em um primeiro momento foi complexo porque se tratava de um governo de transição no ano de 2002 – saía o presidente Fernando Henrique e assumia o presidente Lula, então teve uma situação de vácuo mesmo de decisão. No outro ano, começou o comprimento das medidas e ela durou de uma forma ou de outra. No caso da Dra. Rosemery, ela contou com proteção da polícia militar, já no caso de Manoel ele não queria proteção da Polícia Militar, mas sim da Polícia Federal, aí demorou mais para ser consolidado. Ele contou com proteção, nós renovamos as medidas a cada dois anos, mas depois a proteção foi retirada. Nesse momento, havia as primeiras discussões sobre o desenvolvimento do Programa de Proteção a Defensores Direitos Humanos, e a concepção do programa é que o defensor de direitos humanos não deve ser retirado do local a não ser em caso de emergência. Ele exercia um mandato parlamentar e não poderia ser abarcado por uma concepção de proteção a testemunhas, que ocorre no Provita, um programa que já estava consolidado. O Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos engatinhava naquele momento. E a polícia colocava dificuldade de fazer esse acompanhamento dele e de outras pessoas, de outros defensores, que faziam atuações em áreas periféricas. A proteção acabava comprometida porque o programa ou quem executava o programa não conseguia entender qual era a atuação de um vereador que se compromete com a proteção de direitos humanos. A ideia não é ficar preso dentro de casa, né? Foi nesse momento que Manoel também decidiu colaborar com CPI nacional que investigava a questão dos grupos de extermínio no nordeste. Aí a coisa ficou realmente bem mais tensa.

JG: No momento em que ele foi assassinado ele estava na Paraíba. Ele contava com proteção policial nessa ocasião?

EF: Não, ele já estava há cinco ou seis meses sem proteção.

JG: E como foi o processo na justiça estadual e a posterior decisão de federalização, ou de deslocamento de competência para a justiça federal?

EF: Logo quando houve execução, no dia 24 de janeiro de 2009, a gente ficou bastante atordoado. No primeiro momento entramos em contato com pessoal da Justiça Global para pensar como acompanhar investigação. Quando ocorre um crime dessa natureza, você já não tem mais nenhuma confiança na investigação que é feita naquele momento, porque foi a polícia da Paraíba que primeiro chegou lá, então a gente achava que poderia haver algum tipo de manipulação do local do crime. Então resolvemos oficiar de pronto o Ministério da Justiça para que a investigação fosse conduzida pela Polícia Federal, em especial por se tratar de um crime ocorrido na divisa entre dois estados, o que não foi acatado no primeiro momento. Nós acionamos diretamente a Procuradoria Geral da República e 20 dias depois iniciamos esse processo de federalização, pegando como exemplo o caso da Dorothy Stang que tinha sido negado pelo STJ em 2005. Então precisava ser feito um enfrentamento, por acharmos que poderia haver entraves não apenas no que se refere à Justiça estadual, mas especificamente no procedimento investigativo adotado pelo estado da Paraíba. Teve repercussão internacional e os próprios poderes da Paraíba e de Pernambuco entenderam que era melhor não estarem envolvidos nesse caso. O problema é que demorou quase dois anos para sair a federalização, e o processo judicial continuou correndo. Diversos procedimentos ocorreram enquanto o caso ainda não tinha sido federalizado, a parte inicial da investigação, os interrogatórios, tudo foi feito na Justiça Estadual da Paraíba. Quando houve a federalização, todo o processo foi para a Justiça Federal do estado da Paraíba, e o julgamento começou no estado da Paraíba.

A gente acredita que poderia ter sido melhor, porque as investigações poderiam ter sido aprofundadas na esfera Federal, mas boa parte do que foi aproveitado pela denúncia do Ministério Público Federal foi eu que tinha sido produzido nesses anos pelo estado da Paraíba. Nós, pela Justiça Global, pela Dignitatis, entramos como assistentes de acusação, e desta forma a gente fica restritos, do ponto de vista legal, ao que o Ministério Público conduz. Ele é o titular da ação, nós como assistentes não poderíamos ir além do que foi apresentado na denúncia. As nossas solicitações foram apensadas à denúncia. Isso fez com que o caso viesse, em um primeiro momento, a ser julgado na Paraíba. Utilizou-se, por exemplo, a lista dos jurados da Justiça da Paraíba. Mas para nós isso impunha limitações – se o caso foi federalizado, então todo o procedimento deveria ter sido federalizado, não poderia pegar emprestado o que viria da justiça estadual. Se você tirou o caso da ordem estadual e levou para federal, e usou as mesmas coisas que o estado estava usando, qual é a diferença, afinal? Então solicitamos que o júri fosse retirado do estado da Paraíba e fosse para o estado de Pernambuco.

Todo esse procedimento foi muito duro de ser feito, porque como disse todos os procedimentos que deram base à denúncia foram feitos pela polícia da Paraíba, depois ratificados pelo Ministério Público do estado da Paraíba, e depois pelo Ministério Público Federal da Paraíba. Mas, mesmo com todas as limitações que ocorreram,

estávamos diante de um caso emblemático, e a possibilidade de ter conseguido a federalização era algo muito importante no cenário nacional. Nós colocamos muita energia nesse julgamento com o trabalho de assistência da Justiça Global, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, tivermos a participação de muitos Procuradores Federais, como a Deborah Duprat.

JG: E como você avalia o resultado deste julgamento e do processo de deslocamento de competência?

EF: Eu acho que, do ponto de vista do que tinha, da investigação que foi feita ela, o julgamento atingiu o objetivo, que era que o caso não ficasse como mais um caso impune. Foi um passo importante na busca de resolutividade em um caso de grave violação de direitos humanos. Ao mesmo tempo, a gente sabe que poderia ter ido além, porque existe uma rede de financiadores desses casos aqui na Paraíba. Havia indícios de que poderia ter o envolvimento de outras pessoas, e isso ficou em aberto, o que deixa um pouco frustrado a essência do mecanismo de federalização. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que abriu uma oportunidade para que outros casos fossem levados à Procuradoria Geral da República e ao STJ depois, porque se tornou um caso de referência para a aplicação do instituto de deslocamento de competência.

Então tem dois aspectos que eu gostaria de salientar. Foi muito importante nós termos conseguido garantir que o júri ocorresse e condenasse pessoas que estavam envolvidas com este crime, e criar o primeiro precedente de federalização desde que o instituto foi previsto, em 2004. Por outro lado, fica essa sombra sobre o que poderia ter ido além. Uma delas é: onde essas pessoas estão dentro do sistema carcerário? Nós pedimos que os executores fossem enviados para presídios federais, mas eles não foram.

As instâncias estaduais, por vezes, apresentam sérios entraves para que esses casos sejam levados adiante. É o que se vê, hoje, com o caso da Marielle, por exemplo. Você dialoga às vezes com pessoas que estão possivelmente envolvidas no crime. Então a federalização serve para lidar com essa questão, quando se tem a percepção de que as autoridades locais, por mais que não estejam totalmente envolvidas, abarcam setores, abarcam estruturas com envolvimento direto que podem atrapalhar a investigação. Isso também influi na segurança e na proteção daqueles que atuam no caso, tanto advogados assistentes, assessores de Organizações Não Governamentais… No caso de Manoel, nós tivermos a sede da nossa ONG invadida, tivermos apartamentos invadidos, então lidar com essas circunstâncias do ponto de vista local é muito complicado. Você está dialogando com quem potencialmente cometeu o delito.

*Eduardo Fernandes foi advogado assistente do caso de Manoel Mattos. É professor na Universidade Federal da Paraíba.

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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Mariana Ferrer chora durante julgamento em que foi humilhada o ofendida

A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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