Mamba Negra e o protagonismo político da música eletrônica em São Paulo

Por Monica Ferreira, Maíra Vargas e Paula Pretel, especial para os Jornalistas Livres.

Mamba negra, uma das cobras mais venenosas do continente africano, também é o nome do coletivo de música eletrônica mais popular da emergente cena underground paulistana. Capaz de reunir em um único espaço o que há de mais moderno e inclusivo na cidade, já firmou seu nome na noite, dando voz à luta dos marginalizados, e é protagonizado por mulheres, transexuais, negros e identidades diversas que foram historicamente excluídas dos ambientes conservadores e heteronormativos.

Se representatividade importa, o coletivo é liderado por duas mulheres. Carol Schutzer, dj internacionalmente conhecida como Cashu, e a cantora, atriz e militante Laura Diaz, que também dá voz ao Teto Preto, grupo conhecido pelo single GASOLINA. Precursoras do movimento de ocupação dos espaços públicos como forma de lazer e sociabilidade no centro, a Mamba Negra começou em 2013, “em uma conjuntura de bastante efervescência política, urbana e cultural em São Paulo. Todo esse circuito mais independente e de festas menores começou a se reaquecer, muito além dos clubes”, completa Laura.

 

DJ Cashu

Ela também destaca que as ocupações de moradia influenciaram essa movimentação cultural, pois “sempre foram pontos muito importantes do centro de São Paulo, de resistência, e de atividade para crianças e pessoas carentes de programação cultural”, diz. O palco da Mamba Negra quase sempre é a rua, e os eventos fechados costumam ocorrer em prédios degradados ou locais ignorados pelo poder público. A Mamba Negra já esteve presente na ocupação das escolas secundaristas, em 2016, no Cine Marrocos, prédio tombado nos arredores do Teatro Municipal de São Paulo, e na Cracolândia.

Embalada pela sonoridade techno, o coletivo já atraiu atenção de festas consagradas no exterior, a exemplo da Dekmantel, na Holanda. O que tornou possível até mesmo a participação de Mirik Milan, prefeito da noite de Amsterdam, em evento realizado em São Paulo no último mês, quando foi debatida a dificuldade encontrada pelos coletivos de cultura independente em estabelecer um debate frutífero com a Prefeitura Municipal. Debate este que inclui discussões acerca da regulamentação das festas e formalização por alvarás.

A Prefeitura precisa democratizar a informação básica para legalização dos eventos de coletivos como a Mamba Negra, que esbarram na burocracia e na necessidade de emissão de muitos laudos técnicos – de órgãos distintos – para a formalização de um único ato. Isso sem falar nos ditos imóveis “inalvaráveis”. Acerca disso, Laura Diaz propõe a criação de uma espécie de aluguel social que permita a utilização de imóveis abandonados, direcionando o valor arrecadado ao abatimento das dívidas fiscais e tributárias dos seus proprietários. De quebra, tornaria possível fugir dos preços exorbitantes das locações firmadas nos últimos três anos.

 

 

 

 

Cantora, atriz e militante, Laura Diaz

O processo de desestatização do Governo Dória trouxe ainda mais dificuldades para coletivos como a Mamba Negra, visto que ampliou a atuação das parcerias público privadas e ainda criou a ANEP – Associação da Noite e Entretenimento Paulistano, que representa o alto empresariado de casas noturnas, dificultando ainda mais o diálogo entre a cultura independente e a Prefeitura.

Os atentados à existência e à legitimidade do movimento provocaram uma onda de resistência da contracultura, uma vez que o público vê ameaçado esse ambiente de acolhimento e liberdade. Dani Ishikawa, 38, diz que frequenta as festas desde que elas começaram a ocorrer fora do circuito de clubes. “Acho que isso representa mais o underground. Me sinto melhor, sim, como mulher”, fala a respeito, ressaltando que todas as festas possuem recomendações e regras contra machismo, abuso e homofobia. Guilhermina Biazzon, 24, que se identifica como travesti, acredita que a Mamba é indispensável à continuidade do protagonismo de minorias. “É nessa cena que me sinto livre para ser quem eu sou”, garante Gui.

Pela porta que eu escancarei passarão todas as minhas irmãs

Euvira começou a carreira fazendo Artes Visuais na UFBA, com o coletivo artístico Baphão Queer. Depois de viajar pelo Brasil e América do Sul, retornou a Salvador, onde a cultura drag é muito influente. A personagem foi criada completamente avessa aos padrões comuns daquela localidade, que até o momento exacerbavam o feminino e limitavam-se a reconhecer como drag apenas quem se montasse dentro do estereótipo de beleza imposto à mulher. Foi no Âncora do Marujo, bar soteropolitano, que encontrou espaço para mostrar sua personagem de novo conceito ao público. Após um ano performando, Euvira decidiu vir a São Paulo.

Não demorou muito para captar a atenção das curadorias artísticas das festas do circuito de música eletrônica. Começou a atuar como performer nas festas ODD, Mamba Negra e Capslock. Num processo de tornar crítica a sua atuação e de enriquecer a diversidade nos meios em que estava, Euvira notou que a cena tinha muito a caminhar quando o assunto era representatividade.  “Só o fato de eu ser negro, bicha, pobre, nordestino, da periferia e ocupar um lugar de destaque em uma festa onde majoritariamente as pessoas são brancas, de classe média, sulistas, héteras, já é um grande diálogo, já tô falando muita coisa. Porque não era pro meu corpo estar ali, era pra eu estar ou num presídio, ou num caixão, ou limpando vidro de carro, ou vendendo bala. Enfim, este foi o lugar escolhido pra mim e este é o lugar que habitam a maior parte das pessoas que eu vivi próximo… vizinhos, amigos, primos…“.

Sob a percepção de que o negro ocupava somente demandas braçais e que não habitava um lugar de protagonismo na cena, nasceu a Coletividade Namíbia.

Formada por artistas visuais, djs, produtores e performers, a Coletividade tem como símbolo um raio, sinônimo de propagação, e procura inserir esses profissionais nas cenas que antes não manifestavam preocupação em, de acordo com Euvira, “desembranquecer” o seu pessoal. Com isso, uma gama de artistas que não viam seus trabalhos contemplados puderam desfrutar de visibilidade no underground.

Sobre o assunto, Euvira ainda destaca que “A música eletrônica é tão negra quanto atabaque”, e traz à tona o fato da house e do techno terem por base artistas negros, como os pioneiros Frankie Knuckles, Juan Atkins e Kevin Saunderson. Após a difusão desses estilos musicais pela mídia e a popularização das festas eletrônicas em clubes, a periferia se distanciou dessa cultura. Agora, quem não desfrutou desse protagonismo reescreve sua própria história. “Pela porta que eu escancarei passarão todas as minhas irmãs”, finaliza.

Euvira é a idealizadora da Coletividade Namíbia

Já, Ana Giselle começou sua carreira discotecando em Recife no ano de 2014. A convite de Euvira veio para São Paulo, lugar onde encontrou uma forma remunerada de expressar-se artisticamente, como dj e performer.  Para Gisa, que se identifica como travesti e “transalien”, quando está performando no palco leva consigo a luta diária de todas as travestis, pretas e periféricas que almejam serem reconhecidas civil e profissionalmente. Estar em lugar de destaque nestas festas e exercer uma função artística é mostrar a toda uma comunidade que é possível galgar um caminho diferente daquele que a sociedade historicamente induz. “Na minha época eu não tinha nenhum exemplo e foi bem mais difícil aceitar quem eu sou, porque o medo de sofrer o tanto que uma travesti sofria, e ainda sofre, sempre vinha em primeiro lugar. Mas viver uma vida numa pele que não é a sua é, na realidade, a maior violência que podemos cometer conosco. Enfrentar o mundo sendo quem se é de verdade é incrivelmente mais poderoso”, acrescenta.

Ana Giselle é performer

A “lista trans”, que concede acesso gratuito aos transexuais em festas, surgiu nesta efervescência de protagonismos, fruto de um diálogo aberto sobre inclusão. Da mesma forma que Euvira se incomodava com negros exercendo papéis condicionados, as pessoas trans cansaram de ser vítimas da transfobia estrutural, responsável por marginalizar a comunidade no mercado de trabalho. Segundo Gisa, a lista trans não é mais que um processo de regularização do acesso ao lazer e cultura. E mais, a oportunidade de trabalhar em festas garante às pessoas trans a sua própria subsistência.

Este momento de representatividade trans na noite tem trazido muitos artistas pra contribuir com a cena. Porém, segundo Ana Gisa, é preciso disseminar este exemplo e exigir que mais espaços sejam abertos, não apenas de maneira paliativa. “Representatividade trans é muito sobre o processo de humanização dessa população na sociedade. É sobre ver uma pessoa trans ou travesti, enquanto um ser humano que pode transitar em todo e qualquer espaço como qualquer outro. Fora da margem, fora das ruas, fora da prostituição, lugares estes para onde sempre fomos empurradas, onde acostumaram a nos ver e acreditaram que estávamos por opção. Quando eu estou performando, às vezes passa pela minha cabeça quantas Ana Giselles não poderiam estar lá brilhando tanto quanto eu, mas não tiveram a chance porque a sociedade as tirou todas as expectativas de uma vida melhor e as mataram antes, mataram seus sonhos”, completa Ana Gisa.

Tantos feitos devem ser comemorados, mas a Mamba Negra constata que a sobrevivência da cena está diretamente ligada ao reconhecimento da música eletrônica como cultura. Além disto, a não abrir mão dos espaços que já conquistou, mas expandí-los.

Frente às dificuldades criadas pela especulação imobiliária e a ausência de interesse do Estado em dialogar com o movimento, o futuro da festa pode parecer incerto. Diferente disso, acabou despertando um sentimento de urgência e resistência. Verbalizando a postura que a Mamba Negra tomará ante esse painel, Laura Diaz é incisiva em sua última mensagem para os Jornalistas Livres: “Bate mais!”.

Fotografias: Núbia Fernandes Moraes / @nubiafernandesmoraes

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