Um dia o engenho das ‘Donatas’ pega fogo

“The Cocoon of Dread”, gravura de 1831 referente à Revolta de Nat Turner, rebelião escrava ocorrida na Virgínia

 

Por Marcos Rezende*

Foram muitas as justificativas da “Casa Grande” para manter as suas posturas de mitológicos(as) democratas raciais. Ouvimos dizer que Donata, a diretora da Vogue é “boa e carinhosa” (Ivete Sangalo), que o sentimento dos críticos e das críticas era algo de rancor ou desrespeito, algo de quem os olhos “espreitavam por detrás do buraco da fechadura das redes sociais, muitos indignados, […] porque privados de participação no convescote […]” (Raul Monteiro, jornalista baiano).

Achando pouco concordar com o projeto punitivo de Moro que amplia o excludente de ilicitude para policiais e reforça o extermínio do povo negro, Rui Costa, o governador do Estado mais negro do Brasil, participa da festa faz dancinha e posta nas redes sociais.

Bom senso mesmo quem teve foi o Terreiro do Gantois, que cancelou a continuação da festa (sim, a última etapa do aniversário seria no espaço religioso) em respeito à ancestralidade do nosso povo.

Enquanto isso, nessas últimas duas semanas, nos Estados Unidos, vários fatores demonstram como personalidades negras tem se comportado ou deveriam se comportar. A exemplo da cantora Rihanna, que não aceitou cantar no maior evento esportivo do País, a final do Superbowl, em respeito e homenagem ao jogador Kaepernick, que durante a execução do hino nacional se ajoelhava em sinal de protesto contra o racismo existente nos Estados Unidos e acabou sendo criticado por Trump e hoje está sem contrato.

Também o rapper Drake protestou, ontem à noite, ao ganhar o Grammy e, ao aparecer de surpresa na premiação, estabeleceu forte crítica à indústria da música e valorizou as pessoas que reconhecem os artistas. O mesmo fez o ator e cantor Childish Gambino, que ganhou 2 Grammys e não foi buscar. Kendrick Lamar também não compareceu em protesto.

Inclusive os três foram convidados para se apresentar na cerimônia e não aceitaram acusando a instituição Grammy de racista.

Com certeza os brancos no Brasil fazem questão em não tratar disso. Como se essa realidade não existisse.

Estamos cansados deste racismo que prega uma bondade que nunca inclui negros e negras, salvo quando na condição de serviçais, aqueles que sempre são dignos dos subcontratos, ou ainda quando na condição de quem conseguiu se adequar às regras da “Casa Grande” (por uma questão de sobrevivência, eu prefiro pensar). Não adianta pregar (falso) altruísmo, quando não se abre mão de seus próprios privilégios para que haja reparação.

As críticas não se dão pela pobreza da Bahia, Raul Monteiro, pois ela não é pobre. Muito pelo contrário! A Bahia é de uma riqueza incomparável, seja pela grandeza de sua população, composta majoritariamente por mulheres negras, seja pelas suas riquezas naturais. As desigualdades que existem na Bahia, no Brasil e em grande parte do mundo se dão pelo racismo e pela concentração das riquezas nas mãos de uma minoria branca, ainda resquício do patriarcado de um Brasil colonial e escravocrata.

Afeto, amor ao próximo ou qualquer altruísmo não são compatíveis com um país que foi o último a abolir o trabalho escravo. Ou melhor, a abolir o trabalho escravo do ponto de vista formal, já que a escravização dos corpos e da força de trabalho da população negra ainda se mantém como uma constante no Brasil. Negros e negras não são alvo da afetividade da elite branca brasileira, pois uma relação afetiva não permite a concentração de tantos privilégios para uns (umas) em detrimentos de outros (as). O nome que se dá a isso é subjugação, como estratégia do racismo de manter negras e negros no lugar do ostracismo serviçal.

A perversidade é tão grande que as profissionais, baianas negras, sentem-se obrigadas a sair em defesa dos seus algozes, assim como negras e negros eram “obrigados” a serem “pretos (as) da “Casa Grande”. Assim, o racismo se retroalimenta, com um altruísmo deletério e seletivo, onde negras e negros são queridos quando se encontram nas “senzalas” contemporâneas, preferencialmente com vestes e poses que fazem alusão à condição de mucamas. O racismo que estrutura o nosso País não pode se naturalizar nem muito menos ser atenuado por um pedido de perdão e sob a justificativa de (falso) afeto.

Já que não abrem mão das heranças e privilégios do processo de escravização, se assumam racistas e entendam que um dia o engenho pega fogo!

*Marcos Rezende, Ogan, Historiador, Mestre em Gestão e Desenvolvimento Social pela UFBA e Coordenador de Relações Internacionais do Coletivo de Entidades Negras (CEN)

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