Eu não fui… Onde mesmo?

Por Fernando Sato, especial para os Jornalistas Livres

Acordei às 6 da manhã. Domingo, 6 da manhã. Sacanagem. É desumano acordar às 6 da manhã. Desumano é acordar domingo às 6 da manhã. Acordei confuso. Faz dias que não durmo direito. Bom. Segui o padrão. Abri a porta pras cachorras, pus o rango, tomei água. Abri as janelas do quarto do fundo, a porta da sala e a porta do meu quarto. Peguei a toalha da mureta do corredor, entrei no banho. Banho rápido. 10 Minutos. Acordo finalmente.

Dia cheio. Logo, logo vou pra Igreja Anglicana da rua Coropé, Pinheiros. Setenta anos de Hiroshima. Setenta anos de Nagasaki. Muito tempo. Acordo pensando em Hiroshima e Osasco. De repente 200 mil mortos, de repente 18 mortos. A única conclusão a essa hora da manhã. As coisas continuam acontecendo. A imensa deterioração do significado da vida. A cultura do medo recriando mártires. Todo santo dia.

Enquanto me enxugo com a toalha nova que não enxuga nada, lembro do que fiquei pensando essa noite. Eu conheço Osasco. Já trabalhei em Osasco. Tenho amigos em Osasco. Não conheço ninguém de Hiroshima. Nem de Nagasaki. Penso também no que me toca mais. Qual desses dois absurdos me dilacera mais. Liguei pro meu pai.

— Pai, me fala de Bastos? (cidade da Alta Paulista, onde meu pai participou ativamente na história dos derrotistas e vitoristas do interior paulista durante a Segunda Guerra). Meu pai, que não era muito de telefone em 1980 imagina agora aos 90 anos… Nada. Falou pra eu passar na casa dele. Ok.

Tomo mais água. Chamo o tx. Enquanto não chega, vejo o feed do instagram. A foto com Emir Sader bombando. O tx chega. Pego tudo, faço o check list três vezes, não dou falta de nada, ponho a vasilha d’água das cachorras pra fora, tranco a porta e desço correndo. Abro e fecho o cadeado, entro no tx e bora pra missa.

No caminho, Osasco veio mais forte. Pensando em intervenção. Precisamos lembrar sempre. Os 18 de Osasco… Hiroshima me pareceu distante. Liguei pro Julinho da casadalapa. Contei a parada da intervenção. Combinamos pra essa semana. Vai rolar…

Chego em Pinheiros. Igreja Anglicana. Ninguém tinha chegado. Na placa, a primeira missa só iria começar às 9h. Errei feio. Podia ter dormido uma hora a mais. Seria quase uma noite inteira. Passei pra turma dos Jornalistas Livres pelo whasapp o erro. Fui tomar café na casa da Marlene. Água de coco, pão com manteiga e queijo (nada de mortadela).

Volto para a igreja. Assisto a primeira missa do dia, celebrada em japonês. Penso na bobagem que eu fiz de não me esforçar pra aprender japonês. Erro. Agora fico aqui, caçando as palavras no meio do sermão. Entendi umas boas cinco frases completas. Traição? Não. Tolice de criança mesmo.

Acendemos as velas, distribuímos pela escadaria da entrada. O vento que estava parado, de repente, resolveu brincar com a gente. Uma fotógrafa, que conheci ali mesmo, lembrou de algo em Heliópolis e trouxe copinhos de plástico. Resolvido o problema. Ficou bonito.

E começa a chegar gente. Muita gente. Lotou a segunda missa, em português. Poucos japoneses, muitos amigos do pessoal da Camerata. Isso me faz pensar. Tínhamos em casa, desde muito pequeno, um altar budista em que, periodicamente, minha mãe me fazia acender aquele incenso verde. Fingia rezar o que minha mãe rezava. Mas, sinceramente, gostava daquilo. Tinha a foto do meu tio já morto, que meu pai sempre dizia ser o artista da família. Gostava do seu rosto tranquilo em preto e branco. Foi meu cúmplice na decisão de fazer arte por aí. Mas, de novo, repentinamente, o altar sumiu. Acho que foi na mudança pra Zona Norte. Achei estranho, mas criança sempre acha o que fazer, e lá fui eu ser craque no campinho da rua.

Acaba a missa, os músicos se posicionam. Tocam “Stabat Mater Dolorosa”, de Vivaldi, música que permeia todo o filme “Rapsódia em Agosto” (1991), testamento de Akira Kurosawa sobre Hiroshima e Nagasaki. Tenho que tirar fotos para a matéria. Primeiro, gravei um vídeo do primeiro movimento lá de cima, depois desci e fotografei detalhes dos músicos. Dei a volta na nave e cliquei a geral. Em algum momento da música, parei de tentar achar uma foto especial. Parei. Ouvi. Fechei os olhos. E veio aquela maldita vontade de chorar.

Mater dolorosa… Mater dolorosa… Novamente penso em Hiroshima, Nagasaki. Penso em Osasco. Mater dolorosa… Mater dolorosa… Lembro das sombras impregnadas nas calçadas de Hiroshima, onde os corpos simplesmente deixaram de existir. Lembro da foto da Marlene Bergamo na capa da Folha. A mãe se confundindo com a cruz abraçada, como se ela quisesse se transformar naquela cruz. Acima da foto, dores silenciosas em abraços, olhares perdidos, lágrimas escorrendo. E aquele céu azulíssimo. Um azul provocador, indecente, injusto. Faltou a tempestade, faltou o céu cinza, faltou o vento consumindo os rostos já molhados, as roupas cheias de barro e sujeira. Faltou o sofrimento escorrer pela página do jornal e manchar a nossa roupa de domingo à beira da mesa do café da manhã.

Distribuímos os tsurus, passarinhos de origami que são prenúncio de boa sorte. Faça 1.000 tsurus e se credencie a pedir um desejo para os deuses. Hoje, eu desejaria o fim das mortes dos filhos antes dos pais. A cena mais injusta que já pude acompanhar.

Intervenção leve, tranquila e bonita. Poderia ficar mais um tempo balançando por ali, mas tenho pela frente a nossa residência artística na feira da Kantuta. Bora encontrar com os parças da casadalapa e criarmos áreas de convivência entre moradores do Pari e comunidade boliviana.

Peguei carona com o Cachoeira, passamos primeiro pelo Bixiga e depois ele me deixou no Pari. Tudo tranquilo. Achamos que teria trânsito, que seria o caos, mas o máximo que tivemos, foi um pequeno desvio na Consolação, devido a 3 caminhões. Aê CET, 3 caminhões e fodem o caminho alheio? Demos a volta e chegamos no Pari tranquilamente, sem grandes congestionamentos ou hordas da CBF atravancando o caminho. O Cachoeira me deixou na Kantuta e continuou seu caminho para a vigília do Instituto Lula.

Cheguei na Praça e tudo estava como nos domingos anteriores. Muito verde e amarelo… e vermelho, as cores da Bolívia. A oficina das crianças estava a todo vapor, Vivi contando a história dos animais para os niños e niñas, o Alvaro cuidando dos recortes e pintura. Na outra mesa, Zeca Caldeira e crianças-assistentes montavam os “FotoRegalos”. Ampliações com uma moldura das fotos tiradas anteriormente. Retratos dos passageiros da Feira da Kantuta. Bolivianos, peruanos, equatorianos, brasileiros, colombianos, bolivarianos. Nenhum sem noção de camisa da CBF foi fotografado até então. Também, aqui é Pari. Aqui não é Paris. Enquanto isso, Will Robson soltava pedradas de seu setlist de reggaeton, dancehall e cumbia. De camisa amarela. Brinquei com ele. Pô, Will, de camiseta amarela? Ele: Por quê? Eu: Por quê? Ele, depois de parar por alguns segundos: Putz! É mesmo! Mas a música estava terminando e ele colocou outro disco e outra pedrada latino-americana. E continuou lá se divertindo com a nossa “Disco de Calle” dominical.

A tarde foi passando, almocei um ceviche na barraca peruana com o próprio Will, depois fui na Praça das Bikes conversar com o pessoal do Festival de HipHop Kantupac e combinar as paredes liberadas pro grafite do dia 23. Todos vestidos de Fubu. Tudo resolvido com a irmandade, voltei pra Kantuta.

Ajudei o Zeca na confecção das molduras dos “FotoRegalos”. Teve um pai que descobrimos ser um dos fotografados de um outro domingo e preparamos a dele. Na foto, ele estava com sua filha, que a esta altura estava pintando sua girafa. Entreguei o regalo pra ele, ele olhou desconcertado, não conseguiu esconder um sorriso tímido não muito comum e perguntou quanto era. Respondi em portuñol, língua mundial: És un regalo. Regalo és regalo. No tienes que pagar nada! Nessa hora então, o sorriso tímido se tornou um sorrisão! Foi lá, mostrar pra esposa e pra filha, e até a hora de ir embora, ele ficou carregando a foto com cuidado, e às vezes, olhando para ela novamente. Aí, sim, domingão de sol!

O sol foi baixando, fomos desmontando o acampamento, dia tranquilo e valoroso. Tudo certo! Dali, iria para um casamento na Vila Ipojuca, mas fui chamado para escrever um texto sobre a manifestação da direita. E mostrar a material e as fotos da intervenção sobre Hiroshima e Nagasaki. Mudei a rota.

Saimos de lá, eu, Zeca, mais a Rafa e a Corinha, de carro, via waze, pra desviar do trânsito. E o waze nos confrontando, mandando a gente ir pelo caminho, que normalmente, é sempre cheio. Deixamos a Rafa e Cora na Barra Funda, do lado do Teatro São Pedro. Olhei para o teatro, pedi chuva pro São Pedro. Nada de CBF. Depois, continuamos o caminho.

— O que? Ir pela Santa Cecilia, Zeca? Esse waze tá louco!

— O waze não erra, Sato!

E lá fomos nós, nos aproximando da região da Paulista.

— Rui Barbosa tá liberada!

— Então vamos, Zeca! Me deixa na esquina da Brigadeiro.

— Mas não faz esquina…

— Vai pela lateral, à direita, pega a 13 de maio e me deixa na esquina. Segue em frente!

Durante o caminho, falamos sobre o Golpe. Alguns pensadores diziam que o Golpe já tinha sido efetivado. Zeca elencou todos os acontecimentos que a gente lembrava da última semana em Brasília. Fiquei ressabiado. Tudo leva a crer… Bom, chegamos!

Desci na Brigadeiro. Respirei fundo. Será que vou ter que atravessar aquela horda da CBF pra chegar na base dos Jornalistas Livres na Paulista, próximo à Gazeta?

Virei a esquina e a Brigadeiro estava completamente vazia. Eram 6 e pouco, muito cedo, achava eu. Fui subindo. Resolvi contar quantos desavisados da CBF eu encontraria pelo caminho. Eram aproximadamente 500m até a base. Um, dois, três. Primeira coisa que eu pensei. Quatro. Que saco essa porra de camisa amarela, tenho várias que nem uso mais. Cinco. Na minha frente, duas últimas viaturas saem cantando o pneu. Tem que fazer isso na minha orelha? Tudo adola. Tô achando isso. Sete. Todo puliça é adola. E adora coxinha. Oito, Nove, Dez, Onze. Primeira turminha junta. Entrei na Paulista. Um deserto. Ou um oásis, depende do ponto de vista político. Muitos ciclistas. Nenhum vestido de CBF. Vai Haddad! Atravesso o último cruzamento. Doze, Treze, Quatorze, Quinze. Uma família. Coitado do muleque! Torço pra ele ser um adolescente rebelde. Do fundo do meu coração. Olho pra antena da Gazeta. Olho pra porra do prédio da Fiesp. Dezesseis. Vergonha alheia. Dá pra falar pro Skaf que se aquela projeção fosse feita na ditadura, ele iria preso? Ou desapareceria na poeira da história? Só que não, né, minha gente. Ele estaria do outro lado e algum estagiário negro da cota, que trabalhasse no Sesi, seria abatido em seu lugar. Lembro que não tirei foto nenhuma da passeata. Olhei pro chão. Vi um cartaz rasgado com os dizeres: fora comunismo. Os caras rasgam as próprias idéias idiotas que eles próprios têm. Dezessete. Cheguei na portaria do prédio. Subi. Cheguei na base.

Dezessete. Um a menos que os mortos de Osasco. Significa algo? Pode não significar porra nenhuma, mas pode significar também: que nessa cidade se mata mais do que se luta por um ideal frouxo que não nos pertence.

 

 

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