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Como funciona o lobby internacional contra descriminalização do aborto no Brasil

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Por: Luiza Villaméa e Mônica Tarantino (originalmente publicada pelo El País Brasil)

Uma rede de organizações espalhadas por todo o Brasil está cada vez mais presente –e influente– no Congresso Nacional. Tem como principal bandeira proibir o aborto no país e influenciar os 35 projetos sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado. E novos projetos nessa linha continuam a chegar, junto com parlamentares de primeiro mandato eleitos com os votos dessa rede, como o senador Eduardo Girão (Pode-CE) e as deputadas Chris Tonietto (PSL-RJ) e Flordelis (PSD-RJ). Novatos e antigos são abordados por ativistas da causa até nos cafés do Congresso. “É onde acontecem os encontros, por onde passam os tomadores de decisão”, assume Hermes Rodrigues Nery, coordenador do Movimento Legislação e Vida, uma grande liderança contra o aborto no Brasil e presença constante no Congresso.

Professora da UnB e militante contra a descriminalização Lenise Garcia defende a proibição do aborto em qualquer circunstância

A atuação mais visível desses grupos de pressão é a Marcha Nacional pela Vida, que acontece em Brasília em junho e se multiplica no decorrer do ano em versões regionais. Na retaguarda, estão juristas, acadêmicos, religiosos, médicos, empresários, assessores parlamentares, editores, toda uma gama de profissionais que fornece argumentos e participa de debates e audiências públicas. Dentro do próprio Congresso, têm representação de peso. A Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família da atual legislatura reúne mais de 200 congressistas. Evangélicos, católicos, espíritas se unem sob a mesma bandeira.

Hermes Rodrigues Nery investe no corpo a corpo com parlamentares nos cafés do Congresso (Foto: Marcelo Laganaro)

Há quem entre na política para fortalecer o grupo, que costuma se identificar como pró-vida. É o caso do senador Eduardo Girão, empresário que disputou sua primeira eleição no ano passado. Um dos fundadores do Movida, organização que tem como principal meta banir o aborto, Girão não demorou a mostrar a que veio. Onze dias depois de tomar posse, ele desarquivou uma Proposta de Emenda à Constituição do senador não-reeleito Magno Malta que inclui o termo “desde a concepção” no artigo relativo ao direito à vida. É a chamada PEC da Vida. Se for aprovada, nem grávidas em risco de morte, vítimas de estupro ou com fetos anencéfalos poderão adotar o procedimento, como garante a lei hoje. Relatora da proposta na Comissão de Constituição e Justiça, a senadora Selma Arruda (PSL-MT) apresentou parecer favorável na quarta-feira 24 de abril, abrindo exceção para quando não houver outra forma de salvar a vida da gestante ou se a gravidez decorrer de estupro. A comissão, no entanto, pode aprovar a proposta mais restritiva.

“Precisa de três quintos dos votos dos senadores para aprovar no plenário, mas a chegada de Girão ao Senado favorece. A PEC muda a Constituição, é muito mais abrangente do que o Estatuto do Nascituro”, ressalta o ex-deputado Luiz Bassuma, referindo-se ao projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados desde 2007. Espírita como Girão, Bassuma é um dos autores do projeto, que garante ao feto os mesmos direitos dos nascidos vivos e prevê assistência financeira às vítimas de estupro que não abortarem. “O pessoal pró-aborto distorceu isso, como se estivéssemos criando uma bolsa estupro. É para que nenhuma mulher aborte por falta de dinheiro. Se o estuprador não tiver condições, o Estado assume”, diz Bassuma.

Mesmo sem mandato, Bassuma acompanha de perto a tramitação do Estatuto do Nascituro, deslocando-se com frequência de Salvador, onde mora, para Brasília. O projeto avança por esforço coletivo. Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família e da Vida, o deputado Diego Garcia (Pode-PR) começou o ano legislativo com um pedido para promover uma audiência pública sobre o Estatuto do Nascituro. Ano passado, no auge da campanha eleitoral, Garcia já tinha alavancado o projeto com um parecer favorável à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher: “Ainda que seja pequena a expectativa de duração de vida extrauterina, a proteção do nascituro deve ser efetivada”.

Outra figura de peso nessa rede virou ministra do Governo Bolsonaro e agora defende “o direito à vida desde a concepção” até no Conselho de Direito Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça. É a pastora e advogada Damares Alves. “Sou contra o aborto em qualquer circunstância. Todos sabem, todos conhecem”, repete Damares desde 1999, quando começou a atuar em Brasília como assessora parlamentar. Desde então, ela trabalhou no gabinete de quatro parlamentares – todos evangélicos e defensores da mesma causa. Além de ministra, Damares é secretária nacional de Relações Institucionais do Brasil Sem Aborto –Movimento Nacional da Cidadania pela Vida.

Questionada pela reportagem, a Fiocruz foi categórica em desmentir a informação: “Levantamento feito pela área financeira da instituição não identificou qualquer projeto em relação ao aborto vinculado às verbas mencionadas. A verba foi para a área de saúde da mulher e da criança.”

O Brasil Sem Aborto foi criado em 2007 pelo então assessor parlamentar Jaime Lopes, que procurava uma mulher para comandar a organização. No ano seguinte, a farmacêutica Lenise Garcia, professora de microbiologia da Universidade de Brasília, participou de uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre o uso de células-tronco embrionárias para pesquisa. Lenise era contra, o Supremo decidiu a favor. Por afinidade de ideias, o Brasil Sem Aborto ganhou uma presidente. Há 11 anos na função, ela tornou-se a mais atuante acadêmica em audiências e palestras contra o aborto, nas quais exibe uma réplica de plástico de um feto de 12 semanas, similar aos modelos em silicone usados pelos movimentos americanos antiaborto.

A professora de microbiologia da UnB, Lenise Garcia, costuma expor uma réplica de feto de plástico como forma de persuasão (Foto: Luiza Villaméa)

“Mostro essas réplicas porque muita gente fala que um embrião é só um punhadinho de células. Um punhado de células eu também sou”, diz Lenise em sua casa, em Brasília, que funciona como uma espécie de sede do movimento. Ela defende a proibição do aborto em qualquer circunstância. Pelo Código Penal Brasileiro, aborto é crime, com pena de um a três anos de prisão para a mulher, exceto nas duas situações previstas por lei (risco de vida e estupro) ou determinada pelo Supremo (anencefalia do feto).

À frente do Brasil Sem Aborto, Lenise promove encontros com organizações de todo o país. Ainda assim, ela garante não saber o número de entidades que integram o movimento e divaga sobre o financiamento da organização: “Como o tema é controverso, às vezes as empresas dão dinheiro, mas não querem aparecer. Outros ajudam, como empresas de transporte que abrem espaço nos ônibus para nossos cartazes”. Lenise também não alimenta conversas sobre suportes internacionais às organizações pró-vida, embora esses vínculos estejam presentes desde a concepção desses movimentos.

Em contrapartida, ela faz questão de divulgar dados sobre grupos que atuam pela descriminalização do aborto. “ONGs estrangeiras investem pesadamente para a aprovação do aborto na América Latina. Saiu um artigo recentemente. Investiram 18 milhões de dólares”, declarou no Supremo. Perguntada pela reportagem sobre a fonte de informação, Lenise citou o site Estudos Nacionais. “Está lá. A pesquisa é o doutor Marlon, um médico de Santa Catarina, que publicou um livro sobre o aborto. Sou autora de um dos capítulos”, conta. O doutor Marlon é, na verdade, o administrador de empresas Marlon Derosa, um dos donos da Editora Estudos Nacionais, sediada em Florianópolis (SC). Católico praticante, Derosa milita contra o aborto em qualquer circunstância e decidiu investir no mercado editorial em 2015: “Tinha dificuldade em encontrar livros sobre o aborto que não tivessem orientação pró-legalização”. Ele chegou à cifra de 18 milhões de dólares citada por Lenise pesquisando sites de entidades estrangeiras e nacionais. Uma delas é a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com 4,2 milhões de dólares.

Questionada pela reportagem, a Fiocruz foi categórica em desmentir a informação: “Levantamento feito pela área financeira da instituição não identificou qualquer projeto em relação ao aborto vinculado às verbas mencionadas. A verba foi para a área de saúde da mulher e da criança.” Depois de divulgados no Supremo, os milhões contabilizados por Derosa passaram a circular como dado confiável nas redes sociais e sites simpatizantes. Processo similar ocorre quando se discute os números do aborto no Brasil, sempre menores na contabilidade dos movimentos pró-vida.

Derosa é organizador do livro Precisamos Falar sobre Aborto, lançado no final do ano passado no Salão Nobre da Câmara dos Deputados. A escolha do local tem a ver com a meta de sensibilizar os parlamentares para os argumentos contrários ao aborto. São 638 páginas e 13 coautores, estrangeiros e nacionais. Derosa edita ainda uma revista trimestral e mantém um site com frequentes referências ao tema aborto. Um dos mais recentes artigos do site é sobre um homem que conseguiu na Justiça impedir o aborto planejado pela ex-namorada em Mercedes, no Uruguai. Lá, o aborto é permitido até a 12ª semana de gestação.

No Congresso e fora dele, a rede de pressão inclui juristas. Entre eles está a advogada Angela Vidal Gandra Martins, doutora em Filosofia do Direito e professora da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Sua aproximação com o movimento se deu a partir de uma temporada nos Estados Unidos, onde trabalhou com a Alliance Defending Freedom, organização cristã sem fins lucrativos que atua no direito à liberdade religiosa e aos direitos fundamentais. Em palestras e audiências, ela recorre a argumentos de sua área: “O termo que a Constituição usa é inviolabilidade da vida humana. Inviolável é um termo absoluto”.

A origem dos movimentos antiaborto do Brasil também está vinculada a grupos americanos, em particular à Human Life International, a maior organização antiaborto do mundo.

O artigo 5º da Constituição prevê a “inviolabilidade do direito à vida”, mas não determina quando ela começa. A questão é objeto de debates nos meios religiosos e científicos. “Há um movimento conservador internacional que defende o início da vida desde a concepção; outros grupos quando o embrião se implanta no útero; há aqueles que consideram como marco os primeiros sinais de atividades cerebrais e outros, os primeiros batimentos cardíacos fetais”, afirma bioeticista Antônio Carlos Rodrigues da Cunha, coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília. “Na verdade, há uma percepção entre os pesquisadores de que o conceito de início da vida é filosófico e não embriológico.”

A organização Católicas pelo Direito de Decidir, que é a favor da descriminalização e da legalização do aborto, também não tem uma resposta sobre o início da vida. Coordenadora executiva da organização, a psicóloga Rosângela Talib esclarece que as Católicas priorizam a autonomia das mulheres sobre a sua vida e o seu corpo: “O aborto para a Igreja não é um dogma, como a virgindade de Maria. Faz parte dos seus ensinamentos. Diante de situações difíceis, o princípio maior é a consciência do fiel”.

No embate, os contrários à descriminalização não têm dúvidas: a vida começa na fecundação. Para difundir esse e outros valores no âmbito jurídico, investem também na formação de novos quadros. Em Porto Alegre (RS), a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) acaba de contemplar 50 bolsistas para um curso de 40 horas em julho. Destina-se a estudantes ou recém-formados em Direito e terá entre os professores o americano Jeffery Ventrella, da Alliance Defending Freedom, sediada no Arizona. Na organização, Ventrella dirige um programa de nove semanas criado em 2000, que já treinou mais de 2.100 estudantes de Direito de 21 países, alguns deles selecionados no Brasil pela Anajure.

A origem dos movimentos antiaborto do Brasil também está vinculada a grupos americanos, em particular à Human Life International, a maior organização antiaborto do mundo. A entidade participou da criação do Movimento em Defesa da Vida, lançado no Rio de Janeiro pelo monsenhor Ney Affonso de Sá Earp. Em julho de 1989, o próprio fundador da Human Life, padre Paul Marx, veio ao Brasil para a primeira ação do Defesa da Vida. Veio também a ativista Joan Andrew, uma espécie de estrela do movimento nos Estados Unidos, onde o aborto é legalizado.

Junto com 20 manifestantes, o monsenhor promoveu uma Operação Resgate –como chamam o bloqueio da entrada de clínicas de aborto–, diante da Clínica Santiago, em Botafogo. Entre os manifestantes estava o criador do GBM, grupo que atuava de forma isolada em Santa Catarina e continua ativo. Depois do episódio no Rio, o monsenhor e seus parceiros americanos trataram de espalhar o movimento pelo Brasil.

A visita do grupo à cidade de Anápolis (GO) culminou na criação de um dos núcleos mais fortes do movimento. Na ocasião, foi lançado o Pró-Vida de Anápolis, hoje sob a liderança do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, o padre Lodi. Em Brasília, ele chama a atenção por circular, sempre de batina preta, em todos os espaços nos quais se debate os direitos reprodutivos da mulher. Muitas vezes acompanhado por fiéis com terço na mão. Não pestaneja ao tratar do tema: “O aborto é o homicídio preferido do demônio”. Recusa-se, no entanto, a dar entrevista: “Só falo com a mídia pró-vida.”

Hoje, o mais articulado parceiro da Human Life International no Brasil é Hermes Rodrigues Nery, conhecido como professor Hermes, aquele que investe no corpo a corpo com parlamentares nos cafés do Congresso. Depois de presidir por três anos a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, ele agora está à frente do Movimento Legislação e Vida. Embora more na cidade paulista de São Bento do Sapucaí, onde trabalha na prefeitura, ele se desloca para onde for necessário. Sem entrar em detalhes nem revelar nomes, Nery afirma que, para circular pelo Brasil e pelo mundo, conta com a ajuda financeira de amigos.

“Estive recentemente nos Estados Unidos, com lideranças conservadoras. Mike Pence, o vice-presidente, é muito pró-vida. E o Governo Trump tem cortado verbas para ONGs abortistas”. Nery também conhece de perto a Pontifícia Academia do Vaticano e a Polônia, país de arraigada tradição católica. Lá, a interrupção voluntária da gravidez era autorizada entre 1956 e 1993, mas hoje o país tem as leis mais restritivas sobre o aborto de toda a Europa.

No interior da Igreja Nossa Senhora do Rosário, em São Bento do Sapucaí, ele lembra que depois de perder a batalha no Supremo sobre o uso de células-tronco embrionárias em 2005, as lideranças pró-vida mudaram de estratégia: “Em vez de atuar só contra o aborto, entramos com ações propositivas, como a PEC da Vida. Em fevereiro de 2015, procuramos o senador Magno Malta. Levamos informações, ajudamos na redação do projeto. Na época, o Luiz Bassuma, autor do Estatuto do Nascituro, e Damares Alves estavam assessorando o senador. A ideia de explicitar na Constituição que a vida começa na fecundação tinha surgido durante uma conversa com o jurista Ives Gandra Martins”.

A mais recente frente de combate dos pró-vida envolve neutralizar o “ativismo do Supremo”. Isso porque lá correm duas ações relativas ao aborto. Uma, para descriminalizá-lo até a 12ª semana de gestação, proposta pelo PSOL. Outra, para permitir a interrupção da gravidez nos casos de gestantes infectadas pelo vírus zika, protocolada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos. Para impedir que o Tribunal decida sobre essas questões, um grupo de senadores tenta acelerar a aprovação da PEC da Vida. Na Câmara, já tramita projeto de lei que permite enquadrar ministros do Supremo em crime de responsabilidade por “usurpação de competência” do Poder Legislativo. É o lobby contra o aborto em ação.

 

GRUPO DE SC CHEGOU A INVADIR CLÍNICAS PARA IMPEDIR INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ

LUIZA VILLAMÉA

Cada vez que o aborto entra em discussão no Congresso, mensagens eletrônicas são disparadas da pequena cidade de Rancho Queimado, em Santa Catarina. São endereçadas à rede de 500 mil apoiadores do Movimento GBM em todo o país, para que acionem deputados e senadores. A iniciativa visa barrar a legalização do aborto no Brasil, como afirma a presidente do GBM, Kateri Werlich: “Alguns parlamentares ouvem esse clamor. Outros fazem de conta que não é com eles”.

Werlich conta que a mãe biológica de Kateri desistiu de interromper a gravidez e entregou a criança para que ele a criasse (Foto: Luara Wandelli Loth)

“Começamos invadindo abortórios. Fazíamos denúncias. Ajudamos a colocar bastante gente na cadeia, mas a polícia encobria muita clínica clandestina”

Fundado em 1973 pelo pai de Kateri, Sabino Werlich, o GBM é o mais antigo grupo de pressão contra o aborto do país. “Começamos invadindo abortórios. Fazíamos denúncias. Ajudamos a colocar bastante gente na cadeia, mas a polícia encobria muita clínica clandestina”, conta Sabino, 81 anos. As ações eram feitas em conjunto com a mulher, Vali, hoje afastada das atividades do movimento.

O casal não teve filhos, mas adotou dez crianças, entre elas Kateri. Há 30 anos, a mãe biológica de Kateri pensava em abortar, quando um padre da cidade onde ela morava, Itajaí, falou sobre os Werlich. “Ela veio para Rancho Queimado e, a partir do quarto, quinto mês de gravidez, ficou morando com meus pais. Após o parto, me entregou para eles”, diz Kateri, a única da família que ainda mora com o pai.

O padre de Itajaí, por sua vez, conhecia o GBM por causa do jornal Em Defesa da Vida, que o movimento publica há 36 anos e distribui para paróquias e apoiadores. Com quatro páginas, trimestral, trouxe na primeira página da mais recente edição um artigo do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, de Anápolis, contra a ação que tramita no Supremo Tribunal Federal para liberar o aborto até a 12ª semana de gestação.

“A última tiragem foi de 15 mil exemplares, mas já chegamos a tirar 200 mil. Falta apoio financeiro”, diz Kateri. Nem sempre foi assim. Apesar de sofrer lapsos da memória, Sabino se recorda bem da ajuda que recebeu em dólares do padre Paul Marx, fundador do Human Life International, e da ativista Joan Andrews Bell. Ambos americanos, eles vieram ao Brasil em julho de 1989, para difundir o movimento Brasil afora. No Rio de Janeiro, fizeram um protesto diante de uma clínica clandestina de aborto.

Sabino participou do protesto no Rio e voltou para Rancho Queimado com recursos para fazer melhorias na sede, que até hoje se estende por uma área de 2,5 mil metros quadrados. Ele não se lembra mais da quantia recebida, só da orientação de que era para “trocar aos poucos, gastar o do dia e guardar o resto”. Kateri, que sucedeu ao pai no comando do movimento, garante que atualmente não recebe nenhuma ajuda do gênero.

Instalada em uma rua que Sabino conseguiu batizar como Nossa Senhora Protetora dos Nascituros, a sede tem construções modestas, mas amplas. Além de capela, escritório e das casas de Sabino e Kateri, abriga uma rádio que jamais foi legalizada e hoje está desativada por problemas técnicos.

O nome GBM é homenagem à médica italiana Gianna Beretta Molla, que escolheu manter uma gravidez de risco que culminou em sua morte, em 1962. Em maio de 2004, ela foi proclamada santa pelo papa João Paulo II, mas Kateri lembra que essa possibilidade não estava no horizonte dos Werlich quando escolheram o nome do movimento: “Eles simplesmente se encantaram com a história dela. O marido dela, Pietro Molla, mantinha contato com o movimento, por cartas”.

 

A fundadora do Centro de Reestruturação para a Vida, Rose Santiago (Foto: Marcelo Laganaro)

 

ORGANIZAÇÃO ATRAI MULHERES COM DE ANÚNCIOS DE FALSO SUPORTE À GRAVIDEZ INDESEJADA

MÔNICA TARANTINO

À primeira vista, nada indica que o Cervi – Centro de Reestruturação para a Vida –, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, é uma organização contrária ao aborto. No site que oferece suporte às mulheres para lidar com a gravidez indesejada e o abuso sexual, esse posicionamento não fica claro. Assim como não está explícito para aquelas que chegam encaminhadas por unidades básicas de saúde, hospitais ou delegacias com os quais o Cervi trabalha em parceria. Além de aconselhamento, a associação providencia testes de gravidez, encaminha para o pré-natal e para cursos profissionalizantes. Criado em 1999, o Cervi informa que já atendeu mais de 18 mil mulheres. “Eu diria que temos uns cinco mil filhos”, diz sua principal fundadora, a tradutora Rose Santiago. Os cabelos roxos, as tatuagens e a postura despojada de Rose evidenciam sua busca por maior empatia com as mulheres que procuram o serviço. Mineira de Poços de Caldas, ela representa a ala mais moderna de um movimento que evita o convencimento por meio de argumentos religiosos e exibição de imagens chocantes de fetos na hora de levar as mulheres a mudarem de ideia. “No dia a dia, vi que nossa missão não é religiosa. É alcançar a mulher no bio-psico-social-espiritual. Cuidamos das duas vidas, da mãe e do feto”, explica. Ainda assim, o Cervi faz parte da Rede Solidária da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo.

O modelo do Cervi é inspirado nas organizações americanas Pregnancy Resource Center (PRC) e Life International (LI), que inicialmente financiaram sua atividade. Rose conheceu os fundadores da LI, Fran Malfer e Kurt Dillinger, quando atuou como tradutora no processo de adoção de duas crianças brasileiras. Ficaram amigos e ela foi convidada a representá-los no Brasil. “No começo recebemos ajuda para pagar salários, aluguel e comprar mobília. Hoje nós não representamos mais essas associações e temos uma rede própria de parceiros e mantenedores.” Apesar disso, Rose frequenta os congressos dessas entidades, é convidada para fazer palestras e busca, como a matriz, expandir o seu campo de ação. “Nós estamos abrindo o Cervi em Sergipe e Brasília. Existe um em Porto Alegre que nós treinamos que se chama Servi, com S.”

Associações com o mesmo propósito do Cervi atuam em todo o país. Alguns tentam atrair as mulheres oferecendo falso suporte ao aborto, como o gravidezindesejada.com, da Associação Mulher. Essa entidade faz parte da Red Latinoamericana de Centros de Ayuda para la Mujer, os CAMs, em atividade nos Estados Unidos, na Espanha e por toda a América Latina. No Brasil, o site da rede informa que há CAMs em São Paulo (nas cidades de Piracicaba, Jacareí e na capital), Rio de Janeiro, Porto Alegre (RS) e Florianópolis e Três Barras (SC). Outras instituições com atuação similar são a Associação Guadalupe em São José dos Campos (SP) e Missão Fiat, em Campinas (SP), Pró-Vida de Anápolis (GO) e Comunidade Santos Inocentes, em Brasília (DF).

(Esta reportagem foi produzida com o apoio do edital Jornalismo Investigativo em Direitos Humanos, Aborto e Saúde Pública, uma parceria do Instituto Patrícia Galvão, Abraji e GHS)

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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