1 ano de Lama e Luta – Cachoeira Escura: no mapa da tragédia

A lente encontra um rosto, mas não conclui o clique: “Moço, entra aqui para ver o estado do meu filho, essa água está matando ele”.

Entramos em sua casa, uma casa simples, de um único cômodo. A Marcha dos Atingidos por Barragens passava em sua porta. Dona Eliane Gomes da Silva, uma senhora de idade, é uma das atingidas pelo desastre da lama.
A Marcha saiu de Regência/ES e chegou ao distrito de Cachoeira Escura em seu segundo dia, depois de ter passado por Colatina, Mascarenhas, Baixo Guandu e Governador Valadares.

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Cachoeira Escura, distrito de Belo Oriente, fica na Macrorregião do Vale do Rio Doce, no Vale do Aço, a cerca de 250 km da capital mineira. Saindo da rodovia BR-381, à direita, uma ruazinha de mão dupla, com um restaurante e um bar, dá boas vindas ao distrito. A rua segue com uma fileira de casas térreas, igreja, praça, gente sentada nos banquinhos em frente às casas vendo a marcha passar…

Em torno de 12 mil pessoas moram lá, não é uma cidade “nunca vai virar, porque aqui tem a Cenibra, empresa de Eucalipto que gera a maior parte do PIB do município”, explica Camila Brito, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, que acompanha a região.

Mas talvez nunca ficássemos sabendo de nenhuma dessas coisas, não fosse o crime cometido pela Vale/Samarco/BHP. Em 05 de novembro de 2015, a barragem da mineradora rompeu. O Mar de Lama tóxica soterrou Bento Rodrigues, distrito de Mariana, e outros municípios vizinhos, deixando 21 mortos, e a contagem continua. “Estávamos em uma reunião quando ficamos sabendo do rompimento, mas não tínhamos dimensão do tamanho do desastre naquele momento” lembra Camila. Ninguém tinha.


A Lama tóxica seguiu o do Rio Gualacho do Sul, para Rio Carmo até Rio Doce, envenenando a água até Regência, no Espírito Santo, onde desembocou no mar. Os danos ambientais e sociais são imensuráveis. Cachoeira Escura e seus 12 mil habitantes fazem parte dos atingidos.

Dona Eliane. Foto: Leandro Taques.
Dona Eliane. Foto: Leandro Taques.

Quando eu tomo essa água sinto o gosto de barro na boca, dói tudo, dói o peito, a barriga, a cabeça”, relata dona Eliane. Sua família toda está doente. O marido tem uma infecção no ouvido há meses “saí pus com sangue”, a filha de 17 anos teve uma infecção uterina, ela própria perdeu 30 kg. Todos têm doenças na pele. Mas o caso mais grave, que motivou o seu convite é o filho, enfermo na cama: não anda, não fala. “Ontem eu gastei meu último dinheiro para pagar o carrinho que faz mudança para levar ele na UPA, por que a ambulância não quis vir pegar”. – E o médico disse para a senhora o que ele têm? “Disse nada. Perguntou o que ele tinha comido. Digo: é a água. Daí ele não falou mais nada. Aplicou as injeções, mandou tomar uns comprimidos e mandou para casa. Os comprimidos eu não comprei não por que não tenho dinheiro”. – E ele ficou melhor? “Na hora ficou sim, mas chegando em casa já caiu de cama de novo”.

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Camila. Foto: Leandro Taques.

Assim que o crime foi cometido, o MAB passou a visitar as cidades e distritos atingidos. No primeiro contato com Cachoeira Escura, moradores influentes da região trataram logo de dispensar o movimento. Ali, de acordo com eles, nada havia acontecido. “O prefeito fala que bebe dessa água, digo: ele tem dinheiro e manda buscar longe”, reclama dona Eliane.
Estranhando a reação, voltaram com uma outra abordagem. “Coloquei logo um carro de som na rua, falando que o Movimento dos Atingidos por Barragens estava ali para denunciar o crime da Samarco, e que ia fazer uma reunião em uma escola municipal”, conta Camila. Uma multidão apareceu.

Um ano depois as famílias ainda não foram indenizadas. Tampouco foi soluciona o problema da água envenenada. “O meu vizinho morreu com infecção e o corpo cheio de perebas.” – Tem médico? A Samarco já cadastrou a família da senhora? “Não cadastrou não. Aqui tem uma médica cubana, que vem aqui e passa pra gente pomada, remédio. Ela fala que é para a gente não tomar a água, mas não tem como. Dinheiro para comprar não tem. Tem uma biquinha ali na frente, para o povo todo, dá até briga. Tem dia que a gente fica o dia todo lá para voltar com dois galões de 5 L de água. Não tem outro jeito, tem que tomar a água”.

É assim a rotina do vilarejo. A bica que D. Eliane se refere é um cano na rua. Depois do acidente, ela conta que o vizinho, solidário, puxou um cano da fonte de água do seu quintal até a rua. Está é a única fonte de água potável e gratuita da vizinhança.

Passamos por ela no caminho da marcha. E a marcha seguiu. No caminho, outros atingidos relataram problemas de saúde e nos mostram manchas na pele. De acordo com a prefeitura, a água não apresenta riscos.

De cidade a cidade a marcha dos atingidos cresce. Em Cachoeira Escura eramos cerca de 300. Em cada parada um ato simbólico representava a luta e a esperança de todos. Lá, plantaríamos mudas de árvore às margens do Rio Doce.

Lá também fica uma estação da Vale, uma das proprietárias da Samarco, patrocinadora do crime da lama tóxica. Acontece que a Vale e o Estado não gostam de luta.

Ora, que mal haveria mulheres, crianças, trabalhadoras e trabalhadores, atingidos e atingidas, plantarem mudas? O mal de plantar a resistência.

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A Vale não facilitou, colocou os trens no meio do caminho, e avisou aos funcionários que um bando de baderneiros estava a caminho, que poderiam até tentar quebrar os trens. O Choque se colocou entre os manifestantes e os trens. Que ironia, o mesmo Estado que negligencia os atingidos é o que protege a empresa assassina. Ironia, mas não novidade.

Munidos de cassetetes, escudo e cães. Tentaram parar a marcha.

Coitados. Como se depois de caminhar centenas de quilômetros alguns vagões e militares fossem parar aquele povo de luta. Deram a volta. Plantaram as mudas, plantaram a esperança, plantaram a resistência. Um ano de lama, um ano de luta. 

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Parabéns pela matéria Larissa!! Foi de uma grande sensibilidade, que não vemos nas grandes mídias. Nosso egoísmo, muita das vezes, não nos deixa perceber o problema do próximo. E quando nos deparamos, nos permitimos e nos envolvemos, percebemos que os nossos problemas são tão insignificantes, perante ao “mundo a fora”. Eu vinha acompanhando as reportagens da globo e da record sobre o 1 ano da tragedia de Mariana, mas não fazia ideia dos problemas e das lutas diárias que as famílias vêm enfrentando até hoje, principalmente essas famílias que ficaram “para trás”.
    Eu gostaria de entrar em contato com vocês para obter mais informações sobre a localização e contato dessas pessoas.

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