Com reportagem de Isabela Alves, especial para o blog MULHERIAS
A chegada do coronavírus no Brasil escancarou as várias faces da nossa desigualdade. A primeira geração de casos no país é, em geral, na classe média e alta, de pacientes que viajaram para a Europa. A segunda, não por acaso, é dos empregados do entorno dessa classe social – o que evidencia a construção histórica do trabalho escravizado da população negra e pobre que permanece em constante estado de emergência e precariedade de direitos.
Até as orientações mais importantes dos especialistas em saúde pública para evitar o contágio do vírus – como higienizar as mãos com álcool gel, ficar em casa e evitar locais aglomerados – não levam em consideração as condições sociais de uma imensa parcela da população brasileira. Será que todas as famílias podem comprar álcool gel? Podem parar de trabalhar? Ter rendimentos em isolamento em casa? Com quem deixar os filhos fora da escola e sem merenda?
O blog MULHERIAS entrevistou sete mulheres das quebradas para alertar as autoridades que vivemos num país que, no fundo, é uma gigantesca periferia cercada por pequenas ilhas de prosperidade e precisa, no mínimo, ser atendida em suas peculiaridades. E não se trata de nada extraordinário! É unânime entre as entrevistadas a necessidade de o poder público oferecer kits gratuitos de álcool gel, máscaras e acesso à alimentação, por exemplo. Tão óbvio, também, é o fato de a crise sanitária refletir o descaso com a população mais vulnerável do país.
Elas mostram a real na periferia
“Estamos ao Deus dará”, resume a professora da periferia Ane, uma das entrevistadas de Osasco, na Grande São Paulo. Já Gisele, trancista de cabelos e cuidadora de idosos recém-demitida do interior do estado, compartilha a angústia de manter dentro de sua casa de dois cômodos os seus três filhos em idade escolar sem merenda “que comem o dia todo”. Ela sabe que vai faltar sustento, comida na mesa e o mínimo de paz. “Tem hora que não sei para onde correr”, desabafa.
Rafaela também não. Atendente de telemarketing, ela cumpre jornada de trabalho “normalmente” no escritório lotado como terceirizada de uma grande empresa que, por sua vez, liberou seus “funcionários próprios” para home office. “Os nossos corpos periféricos são menos importantes que o da classe média”, analisa Rafaela, na mira.
Confira ainda o relato da atendente de farmácia Daiane que testemunhou o aumento do preço do litro do álcool gel direto de fornecedores. O produto saltou de R$ 14,90 para inacreditáveis R$ 49,90 em apenas uma semana. É hora também de ouvir a motorista de aplicativo das empresas bilionárias que a deixaram sem nenhuma garantia de sustento em caso de saúde. Apenas na doença haverá algum amparo ainda incerto por 14 dias.
Sintomático também é o depoimento de duas moradoras do Capão Redondo, o bairro paulistano periférico famoso pelo rap, índices de violência dos anos 90 e, também, pelo emaranhado de moradias precárias dos trabalhadores que fazem o mecanismo da cidade rodar.
É urgente, pra já, pra ontem: evitar o colapso na saúde é cuidar da engrenagem de todo o nosso sistema democrático. Ou seja, é cuidar das pessoas, não apenas da economia. É enfrentar a desigualdade, não apenas o coronavírus.
“Mesmo quem está consciente da gravidade não tem como deixar de ganhar o sustento do mês!”
“A gente não pode surtar, não podemos mesmo. Sabemos que estamos ao Deus dará”, resume a professora Ane Sariana, de 31 anos, professora de história da rede pública e moradora da periferia de Osasco. “As políticas públicas sempre chegam por último para nós e não está sendo diferente.” Ela deu aula até quarta-feira, dia 18, e com outros professores explicou aos alunos o tamanho do desafio. “Avisamos que não eram férias. Mas sei quanto é complexo. Há mães trabalhando porque não podem parar. E aí as crianças estão sozinhas ou sendo cuidadas por irmãos maiores ou adolescentes do bairro que a mãe paga para cuidar.” Outra questão: no bairro há casas de dois cômodos com nove pessoas. “Como deixar todos trancados? A rua está cheia de criança zanzando normalmente. ”
Ane conta que nos bares vê senhores que conhece de seu dia-a-dia. “São homens que vivem de bico e estão parados, ficam no bar conversando, jogando carteado. Muitos são do grupo de risco, ou seja, mais velhos, fumantes, com pressão alta.” A professora acredita que informação sempre chega muito tarde na região. “E mesmo que a ficha tenha caído para muitos moradores, o fato é que mesmo quem está consciente da gravidade do vírus não tem como deixar de ganhar o sustento do mês!”
Ane tem muitos amigos que trabalham em telemarketing e não foram dispensados também. São terceirizados que prestam serviços para grandes empresas. “Eu já trabalhei em lugar assim. É insalubre. São locais fechados com 200 pessoas trancadas com ar condicionado. E elas vão ao trabalho nos centros com transporte público. É muito perigoso.”
A professora frisa outro temor: as medidas do governo do Estado para as periferias diante de uma situação caótica. “Se por acaso essa pandemia ficar grande demais, meu medo é eles não mandarem agentes de saúde mas, sim, a polícia!” Tornar crime o não cumprimento de home office, por exemplo, ou estipular horários para se transitar nas ruas, pode gerar nas regiões periféricas violência policial. “Não vão chegar com informação, mas com cacete.”
“A cada dia a gente percebe mais que s situação é grave. Estamos com medo, sim. E sabemos que vamos ter que nos juntar para nos ajudar”
Numa comunidade do interior de São Paulo, na cidade de São José dos Campos, a trancista de cabelos, cuidadora de idosos e poeta de saraus Gisele Luciene, de 34 anos, se questiona: “sem a escola, como vou ficar em isolamento com três filhos numa casa de dois cômodos? Meus filhos têm 9, 10 e 13 anos. Estou em casa, confesso, surtando”.
Desde o começo da semana, Gisele se desdobra para entreter os filhos diante do fechamento obrigatório das escolas públicas sem uma preparação prévia de quem são os alunos e famílias atingidas. Sem nenhum tipo de apoio para lidar com a nova demanda, ela ainda buscar meios de conseguir alimento para a quarentena. “Já fui dispensada como cuidadora de uma idosa. E não tem trança marcada para fazer. Criança em casa come o tempo todo… E não é férias, né? O clima está tenso, eles estão tensos. Não tem o futebol que faziam todo dia, não tem parque, nada.”
Gisele conversa com vizinhas e outras mães do bairro para encontrar saídas. “Desabafamos. Muitas também se sentem sozinhas como eu. Tem as que estão perdidaças em tudo, não deixam ninguém colocar a cara na rua. Outras estão deixando as crianças no vai e volta na porta de casa e desinfectando depois. Mas como vai ser isso por meses?”, pergunta.
Na comunidade, ela sabe que encontrará ajuda. “Aqui, todos sabem que será complicado, a gente vai se juntar, é o único jeito”, diz.
“Meu trabalho no telemarketing continua ‘normal’. Parece que meu corpo periférico não é tão importante quando os da classe média”
Para Rafaela Henrique, de 24 anos, a situação de alarme da classe média não contempla a periferia. Trabalhadora do telemarketing e moradora do Parque Santa Rita, na zona leste de São Paulo, ela se sente marginalizada. Nesta quinta-feira, dia 19, Rafaela conta que ela e outras profissionais do setor trabalharam como se fosse um dia de rotina “normal”. “A empresa para a qual prestamos serviços adotou aos seus funcionários próprios o home office. Nós, que somos terceirizados, não. ” A seletividade é evidente. “Nossos corpos periféricos, nossa saúde mental e física parece que não importam tanto.”
“Trabalho em farmácia e vi o preço do fornecedor de um litro de álcool gel saltar de R$ 14,90 para R$ 49,90!!!”
“Na semana passada o pessoal estava desdenhando, seguindo a onda do presidente de que o coronavírus era histeria, exagero, tava longe. Nessa semana mudou. A farmácia onde trabalho, numa região que atende a periferia, de frente para uma comunidade, não parou um minuto. Todos estão fazendo questão de ter álcool gel e máscara consigo”, conta a estudante e atendente de farmácia Daiane Novaes, de 38 anos. “Ainda assim, tem muita gente na rua, sabe? Mas o terrível agora, mesmo, foi ver o preço do fornecedor de álcool gel pular de R$ 14,90 para R$ 49,90. É um absurdo.”
Os consumidores reclamaram. “Os fornecedores estão aumentando o valor diariamente e infelizmente as lojas acabam tendo que reajustar também. Dá dó. Eu sei da dificuldade que é ter essa nova despesa inesperada e sei também que a culpa não é da gente que está no balcão”, relata a atendente, que é mãe de um filho de 11 anos e não poderá se ausentar do trabalho nesse momento. “Farmácia não pode fechar, né?”
Daiane mora na COHAB de Vila Prudente e conta que lá as crianças estão ficando com as avós. “Eu mesma, com o fechamento da escola, fui obrigada a deixar meu menino um dia com a minha mãe. Mas ela é paciente respiratória de alto risco e eu o levei para casa da outra avó, que mora mais longe, mas que não é idosa e tem boa saúde. Então, essa semana não estou vendo meu filho e ela está segurando as pontas”, conta, ainda sem saber se a situação poderá se estender por muito tempo. “Deixá-lo sozinho eu não posso, né? Por sorte tenho com quem contar. E quem não tem?”
Para Daiane, um salário-mínimo deveria ser o básico para amparar a população numa situação como a do coronavírus. “A gente é tão desassistida de políticas públicas, creches, saúde básica… As farmácias que cumprem esse papel que seria do Estado, de instruir, fazer primeiros atendimentos. Mas diante de uma epidemia, deveria existir um fundo para pagar quarentena compulsória, sabe?” Ela defende que não se deve deixar o empresário escolher quem trabalha num contexto assim “porque ele vai escolher o lucro”.
Aos seus olhos, todos os serviços que não são de assistência básica deveriam liberar as mulheres para ficar em casa, como nos casos em que a trabalhadora precisa ser afastada por motivo de doença. “Saúde não é só ausência da doença, é prevenção também. Por isso, em momentos como o nosso, começo a acreditar que esse descaso é uma agenda política mesmo, pra matar pobre, velho e criança pobre, que para esse Estado representam apenas gastos. O capitalismo é um sistema de morte.”
“Como motorista de aplicativo, estou desprotegida em todos os sentidos”
“Ser motorista de aplicativo sempre foi correr risco de assaltada e ter que rodar no mínimo de 11 a 14 horas por dia para sobreviver pagando as contas, incluindo o carro alugado por mais de R$ 1500 por mês para trabalhar. Nunca foi fácil e agora piorou”, revela Tatiana Mendonça dos Santos, de 38 anos. Na última quarta-feira (18), em quatro corridas, ela ganhou R$ 34. “Não pagou nem o álcool. No dia seguinte não ganhei nem isso porque praticamente não tem mais chamados.”
Com a chegada do coronavírus no Brasil, Tatiana recebeu das empresas milionárias mensagens com orientações para trabalhar no carro. “Desde então, faço tudo direitinho. Tenho meu kit completo de desinfecção no carro com álcool gel, água sanitária, lenços umedecidos. Pergunto aos passageiros se posso deixar os vidros abertos também e não pego corridas do aeroportos e rodoviárias.” Nessa semana, um dos apps mandou mensagem sobre a criação de um fundo para cobrir alguns custos por 14 dias para o caso de a motorista ser infectado. “Infelizmente não acho suficiente. Sabemos que teremos que nos virar sem respaldo.”
Tatiana mora com o marido e sua mãe, de 62 anos, na periferia da Zona Norte de São Paulo e a família adotou o protocolo de ter tubo de álcool gel na parede perto da porta e deixar sapatos da rua por ali para só circular de chinelos na residência. Apesar de tudo isso, ela reconhece, corre riscos diários se sai para trabalhar.
“Penso que mesmo com esse confinamento será preciso ter carro na rua. E mesmo se não sairmos para trabalhar seria importante se essas grandes empresas tomassem providências para não passarmos necessidades.” Ela sugere descontos nas locações de carro, bônus diários mesmo em caso de motoristas parados. “Trinta reais de crédito inicial já faria muita diferença para o motorista não ficar totalmente na mão enquanto está sem trabalho. Há muitas mães solo nesse ramo que dependem disso para alimentar os filhos.”
“Moro com meu pai de 70 anos que sofre de asma. Estou tomando todos os cuidados. Mas aqui no bairro as pessoas vivem, literalmente, umas em cima das outras”
“Moro com meu pai, que tem 70 anos e sofre de bronquite asmática. Tenho muito medo de contrair o vírus e acabar passando pra ele, que com certeza ficaria muito vulnerável. O cuidado está sendo mais com relação à higiene, compramos álcool gel, reforçamos a limpeza dos espaços de uso comum.Mas em uma casa pequena todos os espaços acabam sendo divididos”, conta a estudante de letras Marianna Alves, de 22 anos.
Ela traz o olhar crítico ao efeito vizinhança, ou seja, o favorecimento de transmissão do vírus pela proximidade e forma aglutinada de a periferia morar. “As pessoas vivem, literalmente, umas em cima das outras, irmãos dividem quartos entre cinco e até mais pessoas; o espaço é bastante limitado.”
Se a coisa apertar e o surto chegar no seu pico, ela sabe que os bairros da quebrada também serão os mais afetados com desabastecimento de supermercados, fechamentos de comércios, falta de medicamentos. “Fora a dificuldade para obter atendimento médico. Se nos bairros ricos as pessoas que apresentam sintomas já estão sendo mandadas pra casa sem nenhum cuidado no atendimento, imagino que a situação nas UBS’s de bairro será ainda pior.”
“Aqui no Capão não estão estocando comida, ainda bem. Mas está faltando álcool gel, máscaras! As pessoas estão engajadas em ficar em casa. Quem sai é porque não pode mesmo parar de trabalhar”
“Se tem pão de manhã, se tem um ônibus funcionando e mercados abertos é porque a periferia acordou cedo pra que tudo isso acontecesse”, diz a estudante Lavínea Soares, de 17 anos, moradora do Capão Redondo, no extremo Sul de São Paulo. “Então, a gente merece e tem direito de pelo menos ter o básico, principalmente uma saúde digna, completa.
Lavínea conta que em seu bairro as pessoas estão se cuidando, sim. “Eu tô vendo poucas pessoas sairem, principalmente senhores de idade. Como se nada tivesse acontecendo, não esta, não. É bem movimentado por aqui. Mas tem bastante gente que precisa sair para trabalhar como a minha mãe, que é analista de processos e precisa do transporte público, e o meu pai, que é vendedor de sacos de lixo, panos de prato, e precisa estar na rua. Não tem jeito”
Ela reitera que não é possível parar os comércios, de imediato, uma vez que são fontes de renda de inúmeras pessoas. “Ainda bem que por aqui não vejo ninguém estocando comida. Pobre não tem como fazer isso. Porém, está faltando álcool, máscaras. Não pode…”
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