Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty (2003-2009),
ministro de Assuntos Estratégicos (2009-2010)
1. Os objetivos estratégicos dos Estados Unidos para a América Latina e, em especial
para o Brasil, são importantes para compreender a política externa e interna brasileira,
inclusive a Operação Lava Jato.
2. A América Latina foi declarada zona de influência exclusiva de fato americana pela
Doutrina Monroe, em mensagem do Presidente dos Estados Unidos ao Congresso
americano, em 02/12/1823.
3. Esta Doutrina corresponde a uma visão e convicção histórica, nos Estados Unidos, de
direito ao exercício de uma hegemonia natural sobre a América Latina, como o
Corolário Roosevelt, de 1904, viria a explicitar.
4. A partir da Guerra de Independência (1775-1783) e depois da formação da União em
1787-1789 os Estados Unidos passam a procurar excluir as potências europeias de
seu território continental (Louisiana – 1803, Florida – 1819, Oregon – 1845, Alaska –
1867) e a absorver esses territórios na União Americana.
5. A expulsão pelos americanos dos povos indígenas de seus territórios originais se
realiza com intensidade após a revogação da Proclamation Line de 1763, em
decorrência do Tratado de Paz de Paris (1783) entre a Grã-Bretanha e a
Confederação, que separava o território das Treze Colônias das terras indígenas além
dos Apalaches, até o Mississipi.
6. A influência econômica, política e militar americana sobre a América Central e os
países do Caribe foi e é avassaladora, com intervenções e ocupações militares, por
vezes longas, e o patrocínio de ditaduras, sanguinárias.
7. A Guerra contra o México (1848) levou à anexação de metade do território mexicano
e, com a chegada ao Pacífico, permitiu a consolidação do território continental dos
Estados Unidos do Atlântico ao Pacífico.
8. A Guerra contra a Espanha (1898) levou à ocupação de Cuba, à anexação de Porto
Rico, das Filipinas e de Guam e afirmou os Estados Unidos como potência asiática.
9. A “criação” do Estado do Panamá e da Zona do Canal, que foi território americano
até 2000, permitiu a ligação marítima rápida entre a Costa Leste e a região do Golfo
com a Costa Oeste da América do Norte, tanto comercial como militar, através do
Canal concluído em 1914, e administrado soberanamente pelos EUA.
10. Pelas características de sua localização geográfica, a zona estratégica mais
importante para os Estados Unidos é o Caribe, a América Central e o norte da
América do Sul.
11. Os objetivos estratégicos permanentes dos Estados Unidos para a América Latina
são:
1. impedir que Estado ou aliança de Estados possa reduzir a influência americana na região;
2. ampliar sua influência cultural/ideológica sobre os sistemas de comunicação de cada Estado;
3. incorporar todas as economias da região à economia americana;
4. desarmar os Estados da região;
5. manter o sistema regional de coordenação e alinhamento político;
6. impedir a presença, em especial militar, de Potências Adversárias na região;
7. punir os Estados que contrariam os princípios da liderança hegemônica americana;
8. impedir o desenvolvimento de indústrias autônomas em áreas avançadas;
9. enfraquecer os Estados da região;
10. eleger lideres políticos favoráveis aos objetivos americanos.
12. O principal Estado da região pelas dimensões de território, de recursos naturais, de
população, de localização geográfica é, sem dúvida, o Brasil. Principal também pelos
desafios que apresenta devido à possibilidade de graves turbulências futuras, sociais,
econômicas e políticas.
13. Devido a este caráter principal, os objetivos dos Estados Unidos são objetivos para a
América Latina em geral, porém se aplicam em especial ao Brasil.
14. O primeiro objetivo estratégico americano é impedir a emergência e
fortalecimento de qualquer Estado ou aliança de Estados que possam se opor à
presença ou afetar a influência política, econômica e militar americana na região.
15. Para alcançar este objetivo tratam os Estados Unidos de aguçar e reacender
eventuais rivalidades (históricas ou recentes) entre os maiores Estados da região, isto
é, entre o Brasil e a Argentina, não estimular o conhecimento de suas histórias e
culturas, estimuladas as rivalidades através da ação de lideranças locais que buscam
obter tratamento privilegiado para seus países junto aos Estados Unidos (Carlos
Menem e Jair Bolsonaro são exemplos desse comportamento).
16. O segundo objetivo americano é manter e ampliar sua presença
cultural/ideológica nos sistemas de comunicação de cada Estado da região como
instrumento para sua maior influência política, econômica, militar e cultural.
17. Essa presença aumenta sua capacidade de obter melhores condições legais (fiscais e
regulatórias) para a ação de suas megaempresas (petroleiras, por exemplo); para
obter contratos de venda de equipamentos militares; para lograr alinhamento e
apoio às iniciativas americanas em nível mundial; para promover a “simpatia” pelos
Estados Unidos na sociedade local; para obter o apoio da sociedade e dos governos
para seus objetivos estratégicos.
18. Este objetivo tem como instrumentos a defesa da mais ampla liberdade de imprensa
e de Internet e para a livre ação das ONGS “internacionais” e “altruístas”; dos
programas de formação de pessoal, desde os institutos de língua aos intercâmbios; às
bolsas de estudo; ao recrutamento de talentos; à aquisição de editoras para
publicaçãos de livros americanos; a hegemonia na programação de cinema e de TV;
os programas de formação de oficiais militares e lideranças políticas; e recentemente
a aquisição de instituições de ensino, em todos os níveis.
19. O terceiro objetivo dos Estados Unidos é incorporar todas as economias dos
Estados da região à economia norte-americana, de forma neocolonial, no papel de
exportadores de matérias primas e importadores de produtos industriais.
20. Após o fracasso do projeto regional “multilateral” da ALCA, lançado em 1994 e
encerrado em 2005 na reunião em Mar del Plata, os Estados Unidos passaram a
promover a negociação de acordos bilaterais com cada Estado latino-americano com
dispositivos semelhantes aos da ALCA e até aos EUA mais favoráveis. Verdade seja
dita que o acordo de livre comércio com o Chile fora assinado em 1994 e com o
México e o Canadá (NAFTA) também em 1994.
21. O instrumento para alcançar este objetivo são os acordos bilaterais de livre comércio
que levam à eliminação das tarifas aduaneiras e à abertura dos mercados dos Estados
subdesenvolvidos nas áreas de investimentos; de compras governamentais; de
propriedade intelectual; de serviços; de crédito e, às vezes, incluem cláusulas
investidor-Estado.
22. Por sua vez, os Estados subdesenvolvidos da América Latina que atingiram certo grau
de industrialização não ganham acesso adicional aos mercados de produtos
industriais, pois as tarifas americanas são baixas, existe a escalada tarifária e as
medidas de defesa comercial, e o acesso a mercados agrícolas é restringido pela
legislação agrícola, americana de subsídios e de proteção.
23. O acordo Mercosul/União Europeia será instrumental para a abertura de mercados
para os Estados Unidos sem ônus político pois, após sua entrada em vigor, estarão
criadas as condições para os Estados Unidos reivindicarem ao Brasil e ao Mercosul
igualdade de tratamento. Outros países altamente industrializados como o Japão, a
Coréia do Sul, o Canadá e a China farão o mesmo e o Brasil não terá mais a tarifa
como instrumento de política industrial. O Mercosul desaparecerá.
24. O quarto objetivo estratégico dos Estados Unidos é desarmar os Estados da região.
25. Os instrumentos para atingir este objetivo são a promoção da assinatura do Tratado
de Não Proliferação Nuclear (TNP) e de outros tratados na área química e biológica, e
mesmo sobre armas convencionais; a venda de equipamentos militares defasados a
preços mais baixos e o “estrangulamento” de eventuais indústrias bélicas locais; os
acordos de associação à OTAN; a transformação das Forças Armadas nacionais em
forças de caráter policial, voltadas para o combate ao narcotráfico e a crimes
transnacionais e, portanto, necessitando apenas de equipamento leve.
26. O quinto objetivo estratégico americano é manter o sistema de segurança
regional, a Organização dos Estados Americanos, reconhecido pela Carta da ONU,
onde tradicionalmente os Estados Unidos podem exercer sua influência, contam com
o auxílio do Canadá e de países da América Central e assim podem tratar das
questões regionais sem ir ao Conselho de Segurança das Nações Unidas.
27. Outro instrumento para alcançar este objetivo é promover a dissolução da UNASUL,
como foro de solução de controvérsias concorrente da OEA e como organização de
cooperação em defesa, da qual os Estados Unidos não participam.
28. O sexto objetivo dos Estados Unidos na América do Sul consiste em impedir a
presença de Estados adversários de sua hegemonia, e como tal nomeados pelos
próprios EUA, quais sejam a Rússia e a China, na região latino-americana, em uma
versão atual da Doutrina Monroe.
29. Segundo documentos oficiais americanos recentes a “China é um poder revisionista”
e a Rússia é um “Ator Maligno Revitalizado” (Indo-Pacific Strategic Report, do
Pentágono).
30. A presença russa e chinesa é especialmente temida na área militar, inclusive por
ameaçar a Costa Sul do território americano e os acessos ao Canal do Panamá, via
comercial e militar estratégica.
31. Um sétimo objetivo americano, importante para demonstrar sua determinação de
exercício de hegemonia na América Latina, é punir, dentro ou fora do sistema da
OEA, com ou sem o apoio de outros Estados da região, aqueles governos que
contrariarem, em maior ou menor medida, os princípios da liderança mundial
americana:
ter economia capitalista, aberta ao capital estrangeiro, com intervenção mínima do Estado;
dar tratamento igual às empresas de capital nacional e estrangeiro;
não exercer controle sobre os meios de comunicação de massa (TV etc);
ter regime político de pluralidade partidária e eleições periódicas;
não celebrar acordos militares com os Estados Adversários, quais sejam a Rússia e a China;
apoiar as iniciativas dos Estados Unidos.
32. A campanha política/econômica/midiática para promover a mudança de regime
(regime change) de um Estado da região, isto é, para promover um golpe de Estado
para derrubar um Governo que os Estados Unidos consideram hostil, inclusive com o
financiamento de grupos de oposição, se desenvolve em várias etapas (que depois se
superpõem) de denúncia do Governo “hostil” pela grande mídia regional e pela mídia
mundial, com o auxílio da Academia, como sendo:
autoritário;
corrupto;
traficante ou leniente com o tráfico de drogas;
perseguidor de inimigos políticos;
violador da liberdade de imprensa;
ineficiente;
opressor da população;
ameaça aos vizinhos;
ameaça à segurança americana.
33. Um oitavo objetivo estratégico americano é impedir o desenvolvimento de
indústrias autônomas nas áreas nuclear, espacial e de tecnologia de informação
avançada na América Latina, e em especial no Brasil, país com as melhores condições
para desenvolver tais indústrias.
34. Um nono objetivo estratégico americano é enfraquecer politica e economicamente
os Estados da região.
35. Os instrumentos são estimular direta ou indiretamente (pela mídia) a redução do
poder regulatório em defesa dos consumidores, da população em geral e dos
trabalhadores, dos organismos do Estado, em especial aqueles que limitam ou
disciplinam a ação das megacorporações multinacionais, entre as quais prevalecem as
americanas.
36. Outro instrumento para alcançar este objetivo é a campanha contra o Estado central
como ineficiente e mais corrupto e autoritário, e a defesa da descentralização
regulatória e de auto regulação dos setores pelas próprias empresas privadas.
37. Um objetivo americano importante é enfraquecer o único organismo do Estado
(brasileiro) que enfrenta, todos os dias, os interesses dos demais Estados nacionais,
em especial os interesses dos Estados Unidos, de seus adversários, Rússia e China, e
das chamadas Grandes Potências, como Inglaterra, França, Alemanha e Japão, nas
negociações para aprovar normas internacionais que atendam seus interesses (e
lucros).
38. Os instrumentos para atingir este fim são denunciar a ineficiência; o corporativismo;
o exclusivismo; o “globalismo”; a partidarização; a visão ideológica “esquerdista” da
Chancelaria.
39. O décimo objetivo estratégico dos Estados Unidos da América, e talvez o principal
objetivo, é impedir a eleição de líderes políticos em cada Estado que manifestem
restrições a seus objetivos estratégicos e promover a eleição de líderes que a eles
sejam favoráveis.
40.E aí entra o papel da Operação Lava Jato na defesa direta ou indireta dos
interesses americanos.
41. A partir da eleição, em 2002, do presidente Lula, a política interna e externa brasileira
se contrapôs, ainda que não de forma sistemática, desafiadora ou revolucionária, a
alguns dos objetivos estratégicos americanos:
a. ao não apoiar a invasão do Iraque de 2003;
b. ao estabelecer o entendimento político e econômico estreito com a Argentina;
c. ao promover a coordenação com a Argentina, a Venezuela, o Uruguai, o Equador, a Bolívia e
o Paraguai para a formação da UNASUL, em substituição à OEA.
d. ao resistir à ALCA e ao fortalecer o Mercosul;
e. ao fortalecer os instrumentos financeiros do Estado, como o BNDES, e ao utilizá-los na
politica externa;
f. ao fortalecer o programa nuclear;
g. ao exercer operações de aproximação autônoma com os países africanos e árabes;
h. ao promover a criação do BRICS, com a China e a Rússia;
i. ao fortalecer a Petrobrás e ao estabelecer o regime de parceria para exploração do pré-sal;
j. ao estabelecer a política de “conteúdo nacional” na indústria;
k. ao promover a indústria de defesa brasileira;
l. ao defender a regulamentação da mídia;
m. ao negociar, com a Turquia, um acordo nuclear com o Irã;
n. ao exercer o equilíbrio em suas relações com Israel e Palestina.
42. A partir dessa nova situação nas relações Brasil-Estados Unidos e da crescente
popularidade do presidente Lula, que terminaria em 2010 seu mandato com 87% de
aprovação, a estratégia americana foi:
mobilizar os meios de comunicação de massa no Brasil contra as políticas do Governo, e
condenar sua ação através do Instituto Millenium, fundado em 2005, para dar amplo apoio à
Operação Mensalão, que não conseguiu atingir o presidente Lula, mas que veio a atingir
José Dirceu, chefe da Casa Civil, e provável sucessor de Lula;
a partir do acordo de cooperação judiciária Brasil-Estados Unidos, iniciar a Operação Lava
Jato, que viria a facilitar o alcance dos objetivos estratégicos americanos em especial 2, 8, 9 e
10, listados no parágrafo 11 acima;
iniciar o processo político de preparação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff;
financiar direta e indiretamente a formação dos grupos MBL e Vem pra Rua.
43. O principal objetivo da Operação Lava Jato não era a luta contra a corrupção, mas, sim,
impedir a eleição do presidente Lula em 2018. Sua ação partia das seguintes
premissas:
a grande maioria da população, devido à sua precária situação econômica e cultural, está
sujeita a ser manipulada por indivíduos populistas, socialistas, comunistas etc. que fazem aos
eleitores promessas irrealizáveis para conquistar e explorar o poder;
a sociedade brasileira é intrinsecamente corrupta;
todos os políticos e partidos são corruptos;
os governos se sustentam através da corrupção e da compra de votos;
a violação de direitos constitucionais e legais por membros do Judiciário e do Ministério
Público se justifica para combater a corrupção.
44. O juiz Sérgio Fernando Moro descreveu em seu artigo intitulado Mani Pulite,
publicado em 2004 na Revista CEJ – Justiça Federal N°26, a sua decisão de violar a lei
para combater a corrupção, em uma interpretação de que “os fins justificam os
meios”.
45. A “corrupção” foi enfrentada pela Operação Lava Jato, comandada por Sérgio Moro,
juiz de primeira instância que contou com a conivência e mesmo a cooperação de
membros dos Tribunais Superiores e da grande imprensa, para uma condução
processual altamente heterodoxa e ilegal.
46. A divulgação quotidiana e seletiva de ações da Lava Jato através da imprensa, em
especial da televisão, foram essenciais para criar a convicção de que a Lava Jato teria
“revelado” que o partido que teria promovido e se beneficiado da corrupção no
sistema político teria sido o PT, conduzido por Luiz Inácio Lula da Silva.
47. Formou-se um amplo movimento anti-petista e anti-Lula, e tornou-se, assim, um
objetivo não só político, mas ético e moral, para combater a corrupção, apresentada
como o principal mal da sociedade brasileira, impedir por todos os meios que o ex-presidente Lula pudesse se candidatar e, iludindo o povo ingênuo, ser eleito e reimplantar os mecanismos de corrupção.
48. Assim, foi Lula condenado, sem provas, em primeira instância por Sérgio Moro e em
segunda instância por uma turma de três desembargadores do TRF-4 (não pelo
Tribunal pleno), desembargadores que gozam de grande familiaridade e amizade
com Sérgio Moro, que condenaram Lula à prisão em regime fechado, para não poder
exercer qualquer atividade política e, assim, não poder nem competir nem influir nas
eleições de 2018.
49. A decisão arbitrária do TRF-4 correspondeu à cassação dos direitos políticos de Lula e
do povo brasileiro, que não pôde votar em Lula, o candidato à frente em todas as
pesquisas de opinião.
50. A nomeação do juiz Sérgio Moro como ministro da Justiça por Jair Bolsonaro e a
declaração de Bolsonaro de que devia muito de sua eleição a Moro indicam o alto
grau de ilegalidade do comportamento de Sérgio Moro e de Jair Bolsonaro e sua ação
política.
51. A primeira etapa para atingir o Objetivo estratégico 10 era promover o impedimento
da presidente Dilma Rousseff, o que foi conseguido em 16/4/2016. O vice-presidente Michel Temer assumiu com um programa econômico intitulado “Ponte para o Futuro”, elaborado por economistas liberais e perfeitamente compatível com
os objetivos estratégicos dos EUA, e que vem sendo aplicado de forma ainda mais
radical por Paulo Guedes.
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