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ELISA LUCINDA: Para que Regina Duarte se vista com as roupas e as armas de Malu Mulher

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Regina duarte na pele de Malu Mulher, personagem-título da série que a TV Globo exibiu de 24 de maio de 1979 a 22 de dezembro de 1980, criada e dirigida por Daniel Filho

Regina Duarte na pele de Malu Mulher, personagem-título da série da TV Globo (1979-80)

Um dia recebi do nada um telefonema: “Elisa, sou eu. (E disse o primeiro nome.) Olha a gente vai participar de um elenco em que seremos melhores amigas, acho que a gente tem que se conhecer. Você quer vir na minha casa tomar uma sopa que eu faço, ou eu vou na sua? Nós temos que comer juntas”. Fiquei muda do outro lado. Era a voz dela. Muito famosa, conhecida . Eu era fã. Tinha já meus fãs de teatro e meus leitores, mas nunca uma coisa forte de audiência como uma novela das oito, o que era o caso. Foi na minha casa o primeiro encontro. Divertida, informal, sem frescura, de sandália de dedo, sorridente, leve. Era de tarde. Fiz um bolo pra nós. Durou pouquíssimo tempo para descobrirmos que éramos aquarianas, que tínhamos estudado declamação, que ela também era do curso de comunicação, que adorava caderninhos, desenhos, decalques, e o melhor, nutria um fraco irresistível por liquidações! “Olha esse vestidinho, gostou? Não é lindo?” Amei. “Trinta e oito reais”. Ríamos.

Na novela, sempre atenta estudiosa do texto, trazia ele compreendido, sugerido, marcado, criticado. Estava ali uma mulher generosa com a figuração, com os profissionais, carinhosa com todos, parceira com os colegas que tinham menos experiência de televisão do que ela, inclusive eu. E por isso se destacava. Sempre me acalmava com um bom ensinamento diante das minhas inquietações. “Não se preocupe com detalhes, que um errinho assim não tem tanta importância. Não leve isso pra cama. São tantos capítulos que a coisa dilui. Você tem que acertar é a personagem!!! Quando acertamos a personagem tudo nela faz sentido, até o erro.” Uma artista veterana e mestra naturalmente.

Nossa prosa era sem fim. As conversas tinham o irreverente frescor das mulheres livres.

Líamos poesias. Fomos desenvolvendo uma espécie de amor, uma amizade forte, profunda, sincera, que apareceu no resultado do trabalho; aliás, digo sem medo, brilhou no trabalho. Os bastidores costumam ir pra tela, pra cena, pro palco. Uma vez ela se emaranhou numa luta anti-racista junto comigo, quando um cabeleireiro insistia que eu devia alisar o cabelo para poder compor a personagem de uma médica na novela, e este ainda justificou que assim seria mais asséptico!! Aquilo deu num furdunço de onde não arredou pé, ali, ao meu lado, flagrando e denunciando aquele racismo escandaloso. Estava ali um ser humano sempre ligado à igualdade, no trato igualitário com todas as pessoas. E defendia isso. Era comovente ter uma colega assim. A amizade cresceu! Inquieta, sempre se envolvendo em ousados projetos desafiantes, ela seguia. Topou ir de coração aberto lá em Vitória, no Espírito Santo, desfilar numa escola da qual fui enredo, em 2012 e que acabou por ganhar o carnaval. Fez jantar em sua casa para mim e para Geovana Pires, conclamando a classe de Sampa para ver a nossa peça “A natureza do olhar”, disse coisas incríveis sobre o libertário “Parem de Falar Mal da Rotina”, o divulgou em suas redes e foi a mim que o fã clube dela pediu um texto para abrir a sua exposição de obra e vida. Depois inaugurou em sua casa no Rio um espaço multiuso, para ensaios, teatro, cinema, música.

 

Quem era essa? Era a mulher cujos passos segui desde adolescente, quando a vi representar o feminino de uma época e desembarcar da “Namoradinha do Brasil” para Malu Mulher numa majestosa competência que lhe rendeu três prêmios seguidos de melhor atriz de TV por essa série. Acreditei naquilo. Sem reservas. Falava em favor do direito ao aborto, da divisão de tarefas entre pai e mãe, dos direitos das mulheres, da violência psicológica doméstica, de separação… Uma ousadia. Tinha gente que dizia que a personagem era comunista. Pais conservadores temiam a “influência” da independente criatura anti-machista. A irreverente Malu Mulher é uma heroína nossa, pioneira daquele tempo, nunca houve outra daquele jeito naquela hora inaugural. As mulheres se viam representadas por ela num grau tão fabuloso que aquilo fez um estrondo na audiência. Afinal a personagem era afinada com a pauta da emancipação feminina, antenada com sua entrada definitiva no mercado de trabalho. Sua nova postura diante das mudanças no mundo e a necessidade de uma educação sexual contra tanta caretice e opressão. Era a emancipação feminina no centro da conversa. Malu falava de escolhas, do direito à uma profissão, ao planejamento da prole, e ainda educava a filha adolescente com uma sinceridade nada moralista, coisa nunca antes vista. Um exemplo. O feminismo urbano brasileiro bebeu certamente na fonte de Malu Mulher. Eu bebi. Ela provou que era possível começar de novo.

 

Clique aqui para ver trecho do episódio que tratou do aborto (“Ainda não é hora”), com a participação de Lucélia Santos

Na semana passada, em que adormeci pensando muito nisso que agora escrevo, despertei com o vídeo de Zélia Duncan, no seu excelente diário “Zóio no Zóio”, em que ela falava isso, da força de Malu na vida dela, nas suas coragens e desafios, na importância dela pra nossa geração. Isso me deu mais ainda a dimensão dessa heroína no imaginário da feminista de hoje. Confirmou. Não dá para acreditar que era apenas uma personagem, porque Regina Duarte também se representava ali. Os conteúdos da sua protagonista se cruzavam sem dificuldade com as lutas da artista e da mulher que ela era naquele momento. Representava seus amores, seus casamentos, suas separações, as questões práticas dos casais separados, os assuntos de maternidade e paternidade sob o olhar daquele novo tempo. A “Namoradinha do Brasil” cresceu e se transformou numa espécie de feminista pra ninguém botar defeito, através de Malu. O que aconteceu exatamente não sei. Só vejo suas posições políticas de hoje não combinarem com essa personagem que também a consagrou e que tinha por trás uma atriz moderna, feminista na prática, tendo que ser mãe, profissional e ainda ser respeitada. Por mais que possa parecer contraditória toda a história, eu sei que a mulher que conheci não foi uma invenção.

A saída de Roberto Alvim, ex-secretário de Cultura, se deu, como sabemos, porque ele escancarou o jogo e entregou o segredo de uma direita que queria se estabelecer nos moldes nazistas, sem que ninguém percebesse. Não era pra gritar. Resultado: atingiu os judeus, os ricos, e entregou o esquema ideológico. Mas o roteiro existe. Ainda bem que caiu seu prêmio de arte nacionalista absurdo, mas o roteiro do espetáculo está montado nessas bases e é bom que fique bem claro que nós não queremos que mudem só os atores desta trágica ópera, nós queremos é outra peça.

Regina Duarte é cheia de amigos atores, intelectuais, gente que foi perseguida na ditadura, gente que esteve com ela nos palanques das Diretas Já. Mesmo que ela um dia tenha dito que tinha medo de Lula, ainda assim, não faz sentido que por ojeriza ao PT vá lustrar ideias e ações que agradem os torturadores! Ela tem também amigos judeus que não querem papo de nazismo no Brasil. Seu fã clube tem a presença substancial de gays, LGBTs em geral, ou seja, ela tem muitos amigos da grande tribo de Oxumaré. Por isso não pode ser verdade que ela aceite a indicação do presidente de que sejam vetadas pelo poder público obras sobre diversidade sexual. Amante das artes, de todas, não faria sentido ela conseguir ficar calada diante do escárnio do governo com os museus, com o patrimônio, com a ciência! Tampouco fará sentido ela estar confortável num governo que postula, entre outros absurdos, a abstinência sexual de jovens. Seria um tiro no pé. Sei das suas posições ideológicas de hoje, que nada têm a ver com a combativa e moderna referida personagem. Mas tampouco calarei minha voz diante da usurpação de um direito: o direito constitucional à cultura e mais, num estado laico. Mesmo os que não escolheram este presidente e que não apoiam suas fascistas ideias têm direito a uma vida educacional, artística, cultural à altura da nossa democracia. Não vamos ficar passivos vendo a demolição.

Não vou aqui desrespeitar a Secretária de Cultura do ponto de vista pessoal e nem compactuo com misóginas baixarias ofensivas à sua pessoa, à sua condição feminina. Não gosto de jogo baixo.

E nem aplaudo nada que eu não concorde. A nossa amizade nasceu de uma ficção. Uma intuição de Manoel Carlos. Mas todo o levante feminista nutrido por Malu foi de verdade. Nunca precisamos tanto da destemida e libertária coragem daquela mulher. Nossa revolução bebeu ali. Ninguém inventou. Acho que aqui está uma ingênua evocação da Malu Mulher! A referência nela me fez crer que a classe artística cultural, que se encontra tão isolada neste momento, vítima da guerra ideológica exercida contra ela, pudesse ter algum diálogo com quem está ali, pago com nosso dinheiro para cuidar de nossa cultura sem discriminação, sem critérios religiosos, e outras patrulhas.

Pouca gente quer sair na foto ao lado dela hoje porque a Regina de Malu Mulher não pode apoiar a censura, o racismo, a homofobia, o machismo. Isso dá um nó na cabeça da gente. Aquilo não era só uma personagem, aquilo era mais. Malu representava os anseios daquela geração. Portanto não há uma Marielle sequer que não seja descendente daquele feminismo que Malu Mulher encarnou. A série fez com que milhares de mulheres cantassem a sério o tema do Ivan Lins na voz de Simone com toda a verdade possível: “Começar de novo e contar comigo, vai valer a pena ter amanhecido, ter virado o barco, ter virado a mesa, ter sobrevivido…”. Era o hino, o hino da independência feminina!

As personagens que fiz posso acessá-las se quiser durante a vida. Creio nisso. Estamos vivendo momentos tensos. O povo brasileiro, o povo que ama tantos seus artistas, merece ser cuidado e considerado por nós. Toda vez que um artista apoia ou se omite diante de um governo que não respeita os direitos humanos, está traindo seu povo, está traindo o povo que acreditou nele, que confiou nele, e nele se espelhou. Uma artista aceitar este cargo tão importante para o futuro do país, num governo inimigo das artes, da filosofia, da ciência, da liberdade de expressão e da poesia, só poderia estar pensando em nos defender neste cargo. Precisa-se de uma revolucionária ali. Na minha ingenuidade, queria que Regina entrasse numa cabine telefônica, dessas que restaram, e ali dentro se transformasse numa Malu Mulher e saísse espalhando justiça, provocando discussões avançadas num país livre, e ainda puxasse uma campanha para liberar “Marighella”, o filme proibido de nosso Wagner Moura. Algumas vezes escrevendo essa crônica chorei. Ser sincera afeta. E afeta a ponto de a palavra doer. Se ela for lutar pela arte como Ministra da Cultura vai ter que receber o espírito da Malu Mulher, aquela entidade ativista e subversiva.

Se isso ainda puder acontecer, que lute como uma garota!

Elisa Lucinda, verão, 2020
Coluna cercadinho de palavras.

 

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11 Comments

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  1. Natalia

    06/02/20 at 21:59

    Como sempre arrasando com as palavras. Expressando o que muitos não tem habilidade pra fazer. Até pensa, senti, mas não encontra palavras. Amo seus comentários, seus poemas… Parabéns!
    Andemos com fé, que a fé não costuma falhar🙏

  2. Marilda Conde

    06/02/20 at 22:25

    Querida talentosa Lucinda, quero te aplaudir e dizer que além de ser sua fã, tb sou aquariana…rs e bjs🌹

  3. LAIS DIAS GONCALVES

    06/02/20 at 22:37

    Lendo o texto, convenço-me cada vez mais de que RD é uma ótima atriz no palco da vida. Ela sempre foi o que é agora. Ninguém muda assim de uma hora para outra. Essa Regina estava incubada, só esperando a hora de eclodir.

  4. Rozenildot

    07/02/20 at 0:41

    Regina Duarte é uma iluminada, a classe artística precisa se conhecer mais pessoalmente, sei que muitos atuam e ao apagar das luzes do palco dão as costas como se nunca tivessem se conhecido. Elisa Lucinda se aproxime da Regina, suas palavras são muito importantes e vão contribuir muito para essa luta a favor da liberdade, e Regina Duarte mais uma vez vai surpreender, vc teve a sorte de estar junto dela nos momentos mais simples da vida e com experiências que me arrepiaram de emoção… Parabéns

  5. Roseli Marcelino

    07/02/20 at 12:50

    Escreveu maravilhosamente, eu tbm espero, milagres acontecem…

  6. Elza

    07/02/20 at 16:57

    Ótimo texto! Só fico pensando se a Regina tem a mesma visão de sua personagem Malu que você e Zélia. Será Que ela concordava com as teses defendidas por Malu? Ela tem defendido esta ideologia neo nazista com tanta garra…

  7. Jeane

    08/02/20 at 11:02

    Embora vc seja muito boa no que faz, Lucinda, não deixe que seus conceitos preestabelecidos atrapalhem seu julgamento sobre a RD ou o governo para o qual ela contribui. Ao invés de jogar pedras, tente entender, ou compreender. Ela teve coragem de sair da zona de conforto dela para ajudar a melhorar o Brasil, coisa que todos nós, independente de nossas convicções , deveríamos fazer. Afinal, o Brasil é de todos nós. Atitudes, e não críticas!

  8. Gilberto Barros

    08/02/20 at 11:47

    Eu nunca acreditei na RD ela tem muito ódio. Seus olhos falam por si, o ódio está corroendo ela, quando ela perceber será muito tarde.

  9. Sibyla Rudana Rodrigues

    08/02/20 at 12:10

    Texto magistral, verdadeiro, coerente. Quero acreditar que ela fará o melhor pela cultura. Quem a convidou sabia de sua personalidade e não só de sua ojeriza ao PT. Ela nem começou a trabalhar, nem compôs seu quadro de primeiro escalão mas já é assunto, na maioria das vezes especulativo. Estou na primeira fila. Torcendo por uma artista na Secretaria de Cultura.

  10. Pedro Vaz

    12/05/20 at 19:35

    Elisa Lucinda, você é exemplo. Só quero registrar que admiro o seu trabalho, sua força, coragem e o seu texto. Parabéns pela coluna. Reencontrei também uma grande amiga por aqui, Sibyla.

  11. Pedro Vaz

    12/05/20 at 19:36

    Olá Sibyla, Bom te reencontrar aqui nos comentários da coluna da genial Elisa Lucinda.

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Censura

Censura. Ilustrador do cartaz do Facada Fest é intimado pela Polícia

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Censura no Festival Facada Fest

Texto e fotos: João Paulo Guimarães, para os Jornalistas Livres

Paulo Magno, ilustrador responsável pelos cartazes icônicos do festival paraense de punk rock Facada Fest, que ocorreria no ano de 2019, foi chamado na manhã do dia 1º de julho para prestar depoimento na Polícia Federal em Belém do Pará, no dia 2 de julho.

O depoimento se deu com a presença dos advogados André Leão, representante do coletivo Advogados Antifascistas, que atua há cinco anos em causas relacionadas a Direitos Humanos e ilegalidades cometidas pelo Estado e o advogado Pedro Cavalero, que atua há mais de 20 anos na área de Direito Administrativo e na defesa dos direitos dos servidores públicos nos seus sindicatos de base, além de ser presidente da Comissão de Moradia da OAB e que acompanha e representa os produtores do Festival Facada Fest desde o início da polêmica.

Censura no Festival Facada Fest

Sede da Polícia Federal, em Belém do Pará

A intimação para a Oitiva, foi feita através de ligação telefônica pelo próprio delegado da Polícia Federal, Alexandre Brabo, que explicou para os advogados, ser a única forma encontrada para intimar, devido a pandemia.

Um ano após as denúncias que envolvem o vereador Carlos Bolsonaro e o então Ministro da Justiça na época, Sérgio Moro, o episódio voltou a ganhar luz em meio a uma onda de perseguições a cartunistas e chargistas no Brasil como Renato Aroeira, que usam de sua liberdade de expressão e da arte para fazer críticas ao atual governo de Jair Bolsonaro, apoiador confesso da Ditadura Militar e da tortura.

Sérgio Moro já falou o seguinte: “Considero grave o ato de publicar cartazes ou anúncios com o presidente da República ou qualquer cidadão decapitado, empalado ou esfaqueado”. Na época da declaração, Moro ainda era Ministro da Justiça.

A censura já está a todo vapor

Outro chargista e artista foi recentemente assediado pelo governo federal por publicar uma charge em que mostra Jair Messias Bolsonaro pintando uma cruz vermelha da saúde e transformando em uma suástica nazista. Uma das muitas críticas ao presidente sem partido que incentiva seus apoiadores, que entre outros absurdos pedem a volta da Ditadura, a invadir hospitais de campanha pelo país.

Não é de hoje que a arte critica os governos, sejam eles de esquerda ou direita. Chargistas e cartunistas sempre usaram da irreverência e inteligência para ilustrar falhas em administrações públicas. Uma forma de expor suas opiniões e que serve como termômetro social das mazelas administrativas pelo país. Mas é no Governo Bolsonaro que as tentativas de censura e intolerância se mostram mais ferrenhas. O governo já deixou claro que não aceita qualquer tipo de crítica e utiliza todo seu aparato legal para impor o medo nos adversários políticos e impedir investigações relacionadas à família do presidente. Com a recente interferência no comando da Polícia Federal do Rio de Janeiro, fica claro que o episódio envolvendo Paulo Magno e o Facada Fest é só mais um caso de tentativa de censura à imprensa e assédio à arte.

Censura no Festival Facada Fest

Os cartazes do Festival Facada Fest

Sobre o caso, Paulo Magno se posiciona:

“Eu não gosto de exposição e minha esposa sabe disso, mas eu acho importante pra não deixar esse tipo de coisa acontecer. Eu acho que já faz muito tempo não acontecia essa intimidação com ilustradores, chargistas e cartunistas como aconteceu agora, esses tempos, com o Aroeira sobre a arte do Bolsonaro com a suástica e tal, e eu acho isso bem cretino porque sempre fizeram sarcasmo, esse tipo de arte, contra qualquer figura pública, político, artista e etc. Então é bem triste isso e a gente não pode se calar não.”

Sobre o depoimento, Paulo disse:

“O depoimento foi tranquilo e dentro do esperado. Mas a carga psicológica dessa situação não foi muito legal. Estar sentado em frente a um delegado dando explicações sobre o seu trabalho foi bastante constrangedor e desgastante. Em pleno 2020, ter que debulhar o significado das coisas que você desenhou é bem surreal.”

 

Censura no Festival Facada Fest

 

Intimidação e censura

“Eu nunca imaginei que um simples desenho fosse causar tanta indignação em alguns membros do governo. A meu ver, esse inquérito movido contra o Facada Fest e a mim de tabela, foi uma clara ação de intimidação e tentativa de censura. O que ainda me causa muita estranheza é esse processo estar correndo em sigilo. Acusação de apologia ao homicídio ou violência por conta de um desenho me causa grande estranheza. Imagina se eu tivesse pegado um tripé (simulando uma arma) e dissesse “vou fuzilar a direitalha?”, se defende Paulo.

A  situação já é absurda o bastante para acontecer em uma República que se diz democrática, mas o assédio a esses profissionais da comunicação acontecerem no contexto de uma crise pandêmica pela qual o Brasil vem passando, com a perda de mais de 60.000 brasileiros para uma doença que o Governo Federal ignora. Os advogados Andre Leão e Pedro Cavalero não ficaram surpresos com o bulling presidencial exercido através da Polícia Federal:

André Leão dos Advogados Antifascistas se posicionou sobre o caso:

“Não acredito que tenha ocorrido algo de errado no inquérito. A forma como ele foi iniciado é que é descabida pois é censura disfarçada de uma suposta ameaça de morte contra o Presidente. Inquéritos que estão em sigilo são incomuns pois em geral estão em sigilo para pedir prisão preventiva. O usual na oitiva é intimarem presencialmente. No caso do Paulo o próprio Delegado Alexandre Brabo ligou, sendo um protocolo utilizado na pandemia. Agora o Delegado conclui o inquérito e relata. Daí segue para a autoridade jurídica competente. Neste momento acredito que não mais. Se corresse, já teria um pedido de prisão preventiva”.

Pedro Cavalero complementou incisivo:

“Bem a defesa do Facada continua afirmando ser um inquérito sem base matérial de uma acusação. Estão confundindo arte, críticas dentro de um país democrático com um ataque à honra do Bolsonaro. Portanto, errado está tomar 3 horas do tempo de uma instituição, como a Polícia Federal, que deveria está atrás de quem matou Marielle, por exemplo. É comum a criminalização dos movimentos sociais. O depoimento do Paulo teve um fato diferente. Nós levamos os cartazes no original e o Paulo explicou para o delegado o que significava cada ilustração fazendo ligação com a conjuntura política da época. O único precedente pra isso foi somente na época da ditadura militar que a polícia também perseguia não só políticos contrários a suas ideias, mas artistas, bandas, escritores e a própria OAB Nacional que teve sua sede atingida com uma bomba”.

Situação absurda ou não, o Delegado Alexandre Brabo fará seu relatório. Ele pode arquivar o inquérito ou pode indiciar todos os indivíduos envolvidos, inclusive o ilustrador Paulo Magno, caso encontre indícios  de elementos considerados crime para então pedir o parecer do Ministério Público Federal. O MPF pode ou não pode abrir uma ação penal pública. Fiquemos atentos.

Censura no Festival Facada Fest

O ilustrador Paulo Magno e advogados

Censura no Festival Facada Fest

O ilustrador Paulo Magno

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Justiça censura jornalista por crítica a colunista que apoia AI-5

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É o rabo abanando o cachorro! Com toda a mídia focada nas ações que o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, finalmente abriu contra as redes de fake news, seus financiadores e dos fascistas que ameaçam autoridades e instituições, em Mato Grosso o jogo foi invertido. Aqui, quem está sob ameaça da justiça é quem denuncia os participantes e apoiadores de atos antidemocráticos que pedem abertamente o fechamento do Congresso e a volta do Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5, que permitiu a censura à imprensa, as prisões políticas e, por consequência, a instituição da tortura, morte e desaparecimento de milhares de pessoas.

No início do mês, a juíza Maria Aparecida Ferreira Fago, do 2º Juizado Cível de Cuiabá, em decisão liminar, resolveu censurar duas postagens do jornalista Enock Cavalcanti, com mais de 30 anos de atividade nos principais veículos do estado. Nelas, o profissional publicou uma foto que retirou de uma postagem da colunista social Rosely Arruda Ferri no qual a também veterana na imprensa matogrossense posa ao lado de uma faixa com  a inscrição “AI-5 JÁ”, afixada na grade do 44º Batalhão de Infantaria Motorizado do exército em 19 de abril.

Colunista social posa com bandeira do Brasil ao lado de faixa que pede o AI-5 em dia de manifestações antidemocráticas em Cuiabá. Foto: redes sociais

Na primeira postagem censurada, no Facebook, Cavalcanti alertava outros jornalistas sobre a atitude da colega e questionava se a “cuiabania” tradicional se sentia representada por essa atitude. Já em seu blog Página do E (https://paginadoenock.com.br/), ele trazia um texto bem mais longo junto à imagem, falando sobre as manifestações verde-amarelas contra o governo de Dilma Rousseff e como tinham diminuído para as atuais que pedem abertamente a volta à ditadura.

No texto, Cavalcanti lembra vários jornalistas perseguidos em Mato Grosso durante o regime militar, entre os quais um está hoje “bem acomodado” no Tribunal de Contas do Estado. Ele cita, ainda, que já trabalhou com a colunista e lhe tem apreço, para em seguida pedir: “alguém mais chegado do que eu deveria visitá-la para um chá da tarde em louça delicada, conversar com calma, recordar à velha senhora alguns fatos históricos”. Em seguida, cita um longo trecho do poema de Vinícius de Moraes “O desespero da piedade” e termina publicando a Carta Aberta à Sociedade Brasileira em Defesa da Democracia, assinada por 20 dos 27 governadores de estado atuais, incluindo o de Mato Grosso, Mauro Mendes, do DEM.

O fato é que Roseli Arruda se irritou com as postagens e entrou com uma ação de indenização por danos morais no Tribunal Especial Cível contra o jornalista. Mas ao invés da juíza juntar as provas contra a colunista no inquérito sobre as manifestações golpistas ocorridas no estado, rapidamente arquivado pelo Procurador do Ministério Público Federal Carlos Augusto Guarilha de Aquino Filho, como mostra o próprio Enock Cavalcanti em seu blog, a doutora Maria Aparecida Ferreira Fago resolveu acatar a reclamação da colunista e antecipar a decisão impondo via liminar a censura sobre os posts sob multa diária de R$5.000,00  (veja a peça completa aqui).

Várias entidades, como o Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso, repudiaram a atitude. Para o Sindicato, “a concessão da decisão liminar é um duplo atentado à democracia, pois tolhe o exercício da liberdade de expressão e imprensa do jornalista Enock Cavalcanti e referenda o atentado aos Poderes Legislativo e Judiciário, vez que este foi um dos efeitos da decretação do Ato Institucional N°5 em 1968, quando o Brasil vivia sob ditadura.”

Em vídeo exclusivo para os Jornalistas Livres, Enock Cavalcanti explica o processo e a importância de nos unirmos nesse momento em que as forças mais reacionárias e violentas se levantam contra a jovem democracia brasileira.

https://vimeo.com/431634319

Como explica o também jornalista e professor de jornalismo Gibran Lachowski:

“Não foi pontual o que ocorreu em abril quando três bolsonaristas agrediram uma equipe de jornalismo da TV Brasil Oeste em frente ao Hospital Universitário Júlio Müller, em Cuiabá, impedindo que eles colhessem dados sobre casos de Covid-19. Também não foi pontual a ameaça feita no mesmo mês pelo deputado federal do Podemos/MT, José Medeiros, contra o jornalista Jacques Gosch, do RD News/Cuiabá, dizendo que uma futura notícia em seu desabono seria revidada “no tiro”. Como não é pontual que centenas de outras pessoas em várias cidades do país agridam jornalistas verbalmente e fisicamente, reforçadas pelo facínora Jair Bolsonaro. Como também não é pontual que o deputado estadual pelo PSL/MT, Silvio Favero, tenha feito postagem em redes sociais no dia 31 de março elogiando o golpe de 1964. Ou seja: a questão é maior. O foco é o combate ao bolsonarismo/fascismo, que significa a Defesa da Democracia. E deve envolver diversos setores da sociedade.”

 

 

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Militares fazem o que sabem de melhor: esconder os mortos

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Imagine uma epidemia que se alastra rapidamente e mata entre 10% e 20% dos infectados. Imagine que essa epidemia mata principalmente crianças e em especial as da periferia, com menor acesso ao saneamento básico e à saúde. Agora, imagine que por três anos os meios de comunicação sejam censurados nas reportagens sobre a epidemia, que os médicos sejam proibidos de dar entrevistas e que o Ministério da Saúde, controlado por militares, não divulgue os números corretos sobre a doença e as mortes. Isso já aconteceu no Brasil, e não faz tanto tempo assim.

Entre 1971 e 1974, pelo menos 60 mil pessoas de sete estados brasileiros (40 mil só em São Paulo, o epicentro da epidemia) foram infectadas pela bactéria causadora da meningite. Até hoje é impossível precisar quantos morreram. Mas para impedir o que achavam ser uma histeria dos médicos, os militares decidiram esconder esses fatos, e os mortos, da população. Centenas, talvez milhares de crianças, aliás, foram enterradas na mesma vala comum clandestina do cemitério de Perus, na capital paulista, onde eram jogados os corpos de dissidentes políticos torturados e mortos pelo Doi Codi.

Um ótimo vídeo curto sobre a epidemia de meningite e a maquiagem de dados da ditadura militar está disponível no canal Meteoro.doc. Ontem, o canal publicou um novo vídeo, tratando especificamente da atual maquiagem de dados e da disputa de narrativas entre o novo governo militar, que teoricamente ainda não é uma ditadura, e os meios de comunicação para se informar ou desinformar a população.

O tratamento governamental da epidemia de meningite dos anos 1970 só vai mudar em 1974, com um novo general no poder e a aquisição pelo governo de 80 milhões de doses da vacina. Sim, já havia vacina para a meningite e o governo sabia que se tivesse feito uma campanha de vacinação anos antes, teria poupado milhares de vidas. Mas pra que admitir um genocídio se podia dizer que havia um “milagre econômico”? É como disse a ex-secretária da Cultura, Regina SemArte: é muito peso carregar essa fileira de mortos.

Telegrama da Polícia Federal ordenando a censura nos dados sobre a epidemia de meningite. Fonte: Twitter do historiador Lucas Pedretti @lpedret. Como os telegramas não tinham pontuação, usavam a sigla VG para vírgula e PT para ponto final.

Assim, em julho de 1974, com a admissão oficial de que havia uma epidemia, o jornalista Clovis Rossi, então trabalhando no jornal O Estado de São Paulo, preparou uma grande reportagem de capa, intitulada Epidemia de Silêncio, na qual dizia: “Desde que, há dois anos aproximadamente, começaram a aumentar em ritmo alarmante os casos de meningite em São Paulo, as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações, reduzir os números referentes à doença a proporções incompatíveis com a realidade — ou seja, levando, deliberadamente, a desinformação à população e abrindo caminho para que boatos ocupassem rapidamente o lugar que deveria ser preenchido per fatos. Fatos que as autoridades tinham a obrigação, por todos os títulos de esclarecer ampla e totalmente”. Leia a matéria completa aqui.

Mas, claro, militares não gostam que digam quais são suas obrigações e publiquem que estão desinformando a população. Assim, a matéria de Rossi foi censurada e em seu lugar o Estadão publicou um trecho do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões.

Por causa da Lei da Anistia, de 1979, os militares jamais foram responsabilizados criminalmente pelas mortes na pandemia e nem pelas torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres de dissidentes políticos. Mas talvez a história não se repita com a pandemia de coronavírus. Ontem, o Supremo Tribunal Federal, atendendo a uma ação dos partidos Psol, PCdoB e Rede Sustentabilidade, determinou a divulgação diária das informações sobre os dados de Covid-19 até às 19h30, pelo Ministério da Saúde. E também ontem, o Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda, decidiu analisar a denúncia do PDT de genocídio promovido pelo Governo Bolsonaro. Esse é um caso raro, já que normalmente o TPI só julga ex-governantes acusados de crimes contra a humanidade.

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