Sim, fui eu que criei o evento “Virada Cultural C L A N D E S T I N A de São Paulo 2017. Faz mais ou menos 24 horas. Eu tinha chegado em casa depois de um dia corrido, abro o Twitter no celular e me deparo com a notícia do G1: “Dória transfere a Virada Cultural para Interlagos e diz que São Paulo é um ‘lixo vivo’”. O sangue subiu na hora. Foi como um tapa na cara. Sou um paulistano, nascido e criado nessa cidade maluca, neurótica e fascinante, e apaixonado por essa metrópole difícil de amar.
Quando entrei na adolescência, lá em meados dos anos 90, pegar um busão e ir até o centro era uma aventura, garantia de emoção e adrenalina. Se vocês acham que o centro está sujo, abandonado e degradado hoje, não fazem ideia do que era na época do [Celso] Pitta. Mas, a partir do governo de Marta Suplicy, continuando na gestão de Serra e Kassab (sim, nesse quesito eles não foram tão mal) e principalmente com Fernando Haddad, houve um esforço real por parte da prefeitura em torno da tal “revitalização do centro”. Com problemas, dificuldades e também o risco constante de a revitalização, na mão dos interesses do mercado imobiliário, virar a tal “gentrificação”. Mas hoje, com 34 anos, vejo um centro muito diferente, muito mais interessante, diverso, vibrante, do que o de quando eu tinha 14 e comecei a me aventurar pela Galeria do Rock e adjacências. E a Virada Cultural é um pedaço fundamental dessa história.
A Virada Cultural é São Paulo. É a coisa mais paulistana que já inventaram. Já virou patrimônio e símbolo da cidade, de sua riqueza e suas contradições. Vou religiosamente desde a primeira edição, sempre enlouquecido pela fartura de atrações de alta qualidade espalhadas pelo centro e também pelos bairros da cidade. Mas embora eu tenha visto muitos shows históricos de grandes nomes da música nesses 10 anos de Virada, sempre, todas as vezes, o que torna as Viradas inesquecíveis é justamente o que acontece quando milhões de pessoas, de todos os cantos da cidade, de todos os perfis, estilos, jeitos de ser possíveis, ocupam o espaço público do centro, um espaço de altíssima qualidade urbanística, apesar das décadas de maus tratos. As pessoas se veem, se reconhecem, se estranham, trocam palavras, olhares, fluidos. Comem, bebem, fumam, cheiram, ingerem substâncias lícitas ou não, e abrem seus sentidos para as diferentes sensações, cores, cheiros, sabores, sotaques, sons. Não sei nem dimensionar a importância de eventos como esse numa metrópole caótica de 20 milhões de pessoas que lutam diariamente num ambiente hostil.
Virada como espaço utópico
A ocupação das praças e outros espaços públicos, como o Minhocão e, mais recentemente, a Avenida Paulista aberta para as pessoas, o Carnaval de Rua que, na minha adolescência, era inexistente em SP, até as manifestações políticas como a pelo Passe Livre, momento determinante do Brasil da última década, devem à Virada Cultural. A ideia não é original de São Paulo e, sim, foi implantada aqui pelo vampiresco José Serra, do PSDB. Mas São Paulo se apropriou e adaptou a ideia à nossa realidade, as pessoas que vivem nessa cidade tomaram a Virada como algo seu, compartilhado coletivamente. Claro que, numa cidade com absurda concentração e desigualdade de renda, que se reflete na também brutal concentração e desigualdade de ofertas culturais, com uma polícia que mata e abusa da população pobre, preta e periférica, com uma população de rua que tem como lar as ruas, praças e calçadões do centro, fazer um evento quase utópico como a Virada pode parecer loucura. E problemas há, sempre houve, e todo ano a organização tenta minimizar e melhorar o evento. Mas a existência da Virada, e seu caráter radicalmente democrático, aberto, inclusivo e de ocupação do espaço público, é inegociável. Os paulistanos não vão abrir mão dessa conquista civilizatória. Não sem uma boa briga.
Eu pelo menos imaginava tudo isso quando criei, despretensiosamente, o evento da Virada Cultural Clandestina na noite de ontem. E hoje, 24 horas depois e com 33 mil pessoas confirmadas mais 37 mil demonstrando interesse em participar desse evento criado como protesto, com centenas de mensagens e postagens de coletivos culturais, produtores e artistas querendo participar e construir esse evento de forma coletiva, independente, alternativa, genuinamente autônoma, sem depender do apoio da prefeitura, da autorização e presença da polícia, de patrocínios corporativos, por amor à arte, à cultura e a São Paulo, posso dizer que meu palpite estava certo. O paulistano não vai deixar ninguém, NINGUÉM, matar a Virada Cultural. Ela não depende mais do prefeito de plantão. É um patrimônio dessa São Paulo de Piratininga, como o Viaduto do Chá, o Teatro Municipal, o pastel de feira, o lanche de pernil do Estadão e a mortadela do Mercadão.
Direito de viver a cidade
A molecada da periferia vai colar no centro pra curtir, e tem que ter pancadão, rap, música eletrônica e punk rock pra eles. Alguns vão aproveitar pra roubar uns celulares, e isso não é ok, obviamente tem que haver segurança, mas segurança de verdade é algo bem diferente do que o comando da PM entende como segurança. As famílias, as pessoas mais velhas, a criançada, os paulistanos de bairros nobres e que apreciam a cultura mais elitizada também devem sair de seus bunkers urbanos e passear pelo centro à noite e curtir uma apresentação de música erudita, jazz, teatro… Todo mundo tem o direito de passar uma madrugada vagando pelo centro, observando e absorvendo o que acontece à sua volta, vivendo a cidade, respirando, cheirando, ouvindo a cidade. Não é alguém como o senhor João Doria Jr. que vai tirar isso da gente.
Será que no Autódromo de Interlagos essa manifestação seria permitida?