O “democrático” Arouche e o brega de raiz

Foto: Pedro Alexandre Sanches

A cada ano em que a programação da Virada Cultural é divulgada, pelo menos um palco já tem o seu espaço garantido pela curadoria e nos corações e mentes do público: o do Largo do Arouche. Se a Virada Cultural reivindica um discurso de diversidade cultural, contemplando diversos gêneros musicais, o palco do Arouche, destinado ao “brega”, seria o espaço da diversidade dentro da diversidade, não à toa localizado em um ponto da cidade historicamente associado à diversidade sexual.

Afinal, o que têm em comum a cantora Ludmilla(foto acima), que se apresentou no domingo 21, às 09h, nesse palco, e o cantor Agnaldo Rayol, que a sucedeu? Esta salada aparentemente democrática reflete a própria falta de precisão do que se convencionou chamar de “brega”. Mais do que um gênero musical homogêneo com algumas variações, o “brega” é fruto de lutas simbólicas que definem, por meio de complexos processos de legitimação, o que é de bom gosto e o que é de mau gosto.

Bastante associado ao romantismo exacerbado, o “brega” encontra guarida em gêneros como o bolero, o sertanejo, o pagode, entre outros. Mas não se pode dizer que todas as atrações do Palco Arouche sejam propriamente românticas.

O Palco Arouche seria visto, assim, muito mais como um não-palco, como um lugar de liberdade que acolheria shows que não se enquadram em outros palcos, por isso tamanha diversidade. Mais do que isso, é um palco visto muitas vezes na ótica do deboche, do humor. Seria o gueto onde as pessoas poderiam não se levar tão a sério e curtir aquela música que muitos têm vergonha de admitir que curtem.

De certa forma, o show de Fábio Jr. no Palco Júlio Prestes representou uma invasão territorial do Arouche ao palco consagrado tradicionalmente aos grandes medalhões da MPB ou a jovens — e não tão jovens — cantores politizados. Curiosamente, a cantora Perla, após desabafar que não queria apenas cantar “sobras”, ou seja, versões de músicas estrangeiras, tidas essencialmente como bregas, interpretou magistralmente a canção ”Sonhos” (1977), de Peninha, o mesmo compositor de “Alma Gêmea” (1994), cantada por Fábio Jr. no Palco Júlio Prestes, e de “Sozinho”, lançado em 1997 em versões de Tim Maia e de Sandra de Sá (como “Sozinha”) e transformado em sucesso nacional no ano seguinte pelo medalhão Caetano Veloso.

Foto: Pedro Alexandre Sanches

Perla traz um pouco do Brasil paraguaio à Virada (foto Eduardo Nunomura)

Mas estaria a cota da música mais popular sendo contemplada com a programação do Arouche?

Fazendo um retrospecto da programação desse palco, verifica-se que as atrações mais populares que nele cantaram ao longo das edições da Virada firmaram suas carreiras nas décadas de 1970 e 1980: é o caso de Reginaldo Rossi, Wando, Katia, Bartô Galeno, Márcio Greyck, Rosana, Sidney Magal, Elymar Santos, entre outros. No entanto, caminhando pelas ruas do centro na madrugada de sábado para domingo, os artistas que mais se escutam no circuito off-Virada, saindo de caixas de som de botecos e de sistemas de som de carros, são cantores sertanejos como Eduardo Costa, bandas de forró eletrônico como Aviões do Forró e Calcinha Preta, o arrocha e a sofrência de Pablo. Se o funk já foi contemplado na Virada Cultura — e o pagode dos anos 90, em doses homeopáticas –, o mesmo não se pode dizer destes artistas.

O forró que se toca no palco oficial da Virada é o considerado “tradicional”, “pé de serra”, “raiz”, “autêntico”, aquilo que um pensamento de origem romântica, folclorista e nacional-desenvolvimentista entende como “legitimamente popular”, em contraposição à cultura de massa, “contaminada” pela indústria cultural e alienante. Da mesma forma, no arraial da Inezita Barroso, na praça da República, para fazer jus à ideologia da homenageada, o “sertanejo raiz” imperou, até mesmo no discurso de Pedro Bento e Zé da Estrada, dupla acusada de desvirtuar as raízes da música caipira ao incorporar influências das músicas mexicana e paraguaia.

Foto: Pedro Alexandre Sanches

Até Cezar & Paulinho, da única dupla de sertanejo moderno programada, afirmaram o discurso do sertanejo de raiz, raiz temporalmente manipulada. Emblemático é o fato de que Inezita Barroso (1925–2015) foi homenageada, com todos os méritos, mas José Rico (1946–2015), da dupla com Milionário, foi sumariamente ignorado.

Seriam os cachês de todas as bandas de forró eletrônico, cantores de arrocha e sertanejo impagáveis ou muito superiores aos pagos para os artistas contratados pela Virada? Esses artistas, ouvidos inclusive nas caixas de som de uma ocupação do movimento de moradia durante a madrugada da Virada, seriam alienantes? Ou seriam vistos como artistas que já encontram seu espaço no mercado e não precisariam ou mereceriam ser reconhecidos pelo Poder Público? O critério se aplica aos outros artistas contemplados na programação? Por que programar os shows dos poucos artistas mais populares da atualidade longe do centro?

Se artistas da chamada nova MPB como Céu e Tulipa Ruiz convivem com os da geração da década de 1970 na Virada, o mesmo não se pode dizer em relação aos considerados “bregas”. Alguns artistas parecem, assim, marginais entre marginais, ao ponto de não encontrarem espaço nem no democrático Palco Arouche. Talvez porque o brega do Arouche já não seja tão ameaçador disputando espaço com a legítima MPB e já tenha virado cult, “de raiz”. Os fãs de Joelma e Chimbinha podem ficar tranquilos. A participação dos artistas na Virada Cultural está garantida. Em 2035.

(Danilo Cymrot é pesquisador cultural, Mestre e Doutor em Direito pela USP, onde defendeu dissertação sobre a criminalização do funk. Com o nome artístico Danilo Dunas, é cantor, poeta, compositor e sanfoneiro.)


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