Falar para mudar a história

“Nós vamos te quebrar por dentro”

delegado Fleury para Frei Tito

O que se busca com a Clínica do Testemunho? Maria Cristina Ocariz, coordenadora da Clínica afirma em seu artigo, A psicanálise e as consequências psíquicas dos fenômenos ditatoriais, que:

“Somos cientes de que não se consegue fazer justiça plena, pois cada morte é única e constitui uma tragédia irreparável. Mas podemos dar nome aos nossos mortos e construir narrativas que reconstruam a história silenciada durante todos estes anos.”

Por que falar e reconstruir a história já passada? Por que não deixá-la enterrada? A história silenciada sobre a ditadura está entre os fatores determinantes do ódio exacerbado em que estamos mergulhados, nessa segunda década do século XXI:

“Sabemos que a violência, o império do ódio, o mal-estar que tomou conta de nosso país na atualidade são multideterminados. Mas insistimos: o silêncio sobre os anos da ditadura e a anistia aos criminosos, são variáveis fundamentais na etiologia destes fenômenos. Prospera a economia da impunidade e da vingança.”

Por onde caminha a tortura dentro de nós? Por que permanece a assombrar suas vítimas? A tortura busca quebrar a estrutura psíquica para calar a vida e as ideias de pessoas e instituições proibidas:

‘Você não é ninguém’, ‘Você não tem nome’, ‘Você não existe’. Estas são falas do terrorismo de Estado que tem como efeito um cenário impreciso entre a vida e a morte. O discurso do torturador ressoa como: ‘Eu sou Deus, você não existe, eu sou o dono da vida e da morte’.”

O terrorismo de Estado libera e legitima a maldade inerente ao ser humano. Ocariz cita Freud, para marcar nossa inclinação agressiva-destrutiva:

“O ser humano não é um ser manso, amável, só capaz de se defender se o atacam; possui uma boa cota de agressividade. O próximo é uma tentação para satisfazer nele sua agressividade, explorar suas forças de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despossuí-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, lhe infligir dores, martirizá-lo e assassiná-lo. (…) O homem é o lobo do homem.”

Tentamos conter a hostilidade que nos constitui com a lei, com a cultura, nem sempre com sucesso:

“Existe uma bestialidade original que deve ser domesticada; a lei estabelece um limite nas pulsões primitivas, e instaura a repressão ou recalque das pulsões e, no melhor dos casos, a sublimação das mesmas. Em nenhum caso haveria uma satisfação plena.”

A disjuntiva ou barbárie ou civilização é falsa no entender de Ocariz:

“Apelamos aqui a um conceito desenvolvido por Freud em 1919. Dada a hostilidade primária no ser humano, não existe nada de natural no amor ao próximo. Se deve existir como a lei e a proibição é porque não é natural, senão o contrário. A barbárie não se opõe à civilização, temos que pensar a barbárie na civilização.”

A história do homem está repleta de genocídios que podem se repetir a qualquer momento:

“O fato de terem existido outros genocídios na história do mundo confirma sua pertinência à condição humana. Como disse Primo Levi, a respeito do nazismo “Tem sucedido e, por conseguinte, pode voltar a suceder: isto é a essência do que temos a dizer”.

Ocariz cita o testemunho da professora Maria Cecília Bouças Coimbra “A tortura não quer ‘fazer’ falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto. (…)” (p. 143)

E qual seria a função da psicanálise? Como opera sua função clínica?

“A psicanálise sustenta um princípio ético: o desvelamento de uma verdade que, se permanecer encoberta, irá se manifestar através de sintomas sociais e/ou subjetivos. (…) O remédio contra a malignidade do oculto, do não sabido, do não dito que produz efeitos sintomáticos, é a descoberta dos fatores conscientes ou inconscientes que estão em sua etiologia. A explicitação da verdade, embora seja dolorosa, operará como uma incisão a fim de drenar, aliviar e curar o abcesso do sinistro.”

A Clínica do Testemunho busca acolher, abrigar e curar as pessoas e a sociedade. Busca inibir a tendência, que as sociedades têm, de repetir fatos violentos e traumáticos quando a palavra é silenciada.

“Em 1914, Freud escreve “Recordar, repetir e elaborar”. O fundamento desse artigo é que as situações traumáticas devem ser recordadas e elaboradas. Tal necessidade de elaboração pode ser observada tanto nas modalidades de retorno do sofrimento psíquico de cada sujeito, quanto nas repetições de fatos violentos e traumáticos que marcam as sociedades governadas com base na supressão da experiência histórica. A falta de verdade abre caminho para a repetição como sintoma social.”

A verdade explícita pode mudar a história:

“Falar é uma escolha subjetiva e política que se opõe a silenciar, pois entendemos que é preciso falar para que a verdade seja conhecida, para que os danos sejam reparados, para que cesse a repetição do horror, transformando o curso da história.”

“(…) que não anoiteça calmo o nosso sono,

enquanto todas as pessoas não gozarem do inalienável direito de ter direitos”.

Madre Cristina, fundadora do Sedes Sapientiae

Notas

1 Todas as citações acima foram extraídas do artigo A psicanálise e as consequências psíquicas dos fenômenos ditatoriais, no livro Violência de Estado na ditadura militar (1964-1985) – Efeito Psíquicos e Testemunhos Clínicos, organizado por Maria Cristina Ocariz, Editora Escuta, 2015. O livro é distribuído gratuitamente e pode-se baixar em www.justica.gov.br/seus-direitos/anistia

2 As inscrições para as Clínicas do Testemunho tiveram início no dia 19 de março de 2013, através do edital publicado no Diário Oficial. Poderá se inscrever qualquer anistiado político pela Lei nº 10.559/2002, bem como seus familiares. Os interessados em participar dos grupos terapêuticos ou receber atendimento psicológico individual devem entrar em contato com a Clínica Psicológica (11) 3866 2736 / 3866 2735 ou pelo e-mail [email protected].

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