Por Fernando Sato, especial para os Jornalistas Livres
“Eu sou de boa, mas depois que começaram a vender passagem nas Casas Bahia, ficou foda andar de avião.”
Uma piadinha de mau gosto em algum programa de “humor” na TV? Não, poderia ter sido, pois tem programa de “humor” que vou te contar, mas não. Essa frase foi escrita numa comunicação pelo whatsapp entre passageiros de um voo TAM, trajeto Brasília-São Paulo, num sábado.
Alguns integrantes do Treme Terra, grupo de música e dança negra contemporânea criada no Morro do Querosene, Butantã, estavam voltando de Brasília, onde tinham participado do Encontro Nacional da Juventude. Com eles, estavam também no voo integrantes do NUN (Núcleo Universitário Negro) da UFRJ, Sarau Afrobase, Rua — Juventude Anticapitalista, O PREÇO, Revista Vaidapé.
Em um determinado ponto da viagem, um integrante do coletivo O PREÇO, que estava atrás de um dos passageiros que trocava essa mensagem, percebeu e avisou os outros. Os integrantes do Treme Terra interpelaram os passageiros dizendo que isso era racismo e que iriam denunciá-los à polícia.
Nesse momento, os comissários da TAM pediram para que a situação fosse controlada e que a discussão terminasse.
POR QUÊ?
Racismo é crime inafiançável. Em vez de tomar o partido das vítimas, os comissários tomaram partido dos agressores. Levaram os dois passageiros para a primeira classe enquanto todos os outros continuaram na classe econômica.
POR QUÊ?
Entendendo que a Companhia estava defendendo o agressor racista, os integrantes do Treme Terra começaram a explicar para os outros passageiros o que estava acontecendo. Novamente, foram interpelados, por um outro homem não uniformizado, mas também funcionário da TAM, que empurrou um dos meninos e ameaçou todos, dizendo que retornariam a Brasília caso a “confusão” não acabasse e que chamariam a polícia.
Sendo que era exatamente isso que o Treme Terra queria.
Racismo é crime, de novo. Além de coniventes, os funcionários da TAM coagiram e agrediram as vítimas do racismo e privilegiaram os agressores.
POR QUÊ?
O Treme Terra é um grupo artístico. Como perceberam que os funcionários da TAM não estavam defendendo os interesses da população, criaram uma intervenção poética, explicando o que tinha acontecido. Um passageiro se exaltou e exaltou um tal de Bolsonaro 2018.
Oi?
Os ânimos ficaram no limite mais ainda. Quando outro passageiro chegou para acalmar os ânimos, dizendo que era pai de família, o músico Pedro Henrique respondeu: qual a diferença entre um pai de família e uma mulher negra?
POR QUÊ?
Chegando ao aeroporto, foram todos transferidos para a Sala da Polícia Federal. Em outra sala entraram apenas os comissários da TAM mais os passageiros agressores.
POR QUÊ?
Depois de duas horas na PF do Aeroporto, com direito a porta na cara e destrato policial, todos foram transferidos para a Delegacia da Lapa, já que o aeroporto não contava com delegado no local. Oi?
Mais 10 horas de entrevistas, documentações, esperas… Foi só então que o caso se configurou abertamente. Os dois passageiros agressores racistas também são funcionários da TAM. Olha só, que incrível. Isso tem um nome:
RACISMO INSTITUCIONAL. RACISMO INSTITUCIONAL. RACISMO INSTITUCIONAL.
Senhora TAM, você é racista. Você, funcionário da TAM, se é conivente com esse caso, você também é racista. Você, passageiro, que também é conivente com o caso, acha que não tem nada a ver com isso, você também é racista. Você, você e você.
O racismo institucional transforma casos pessoais em um apartheid social. Vivemos isso, não podemos negar. Vivemos em um apartheid social há séculos. Mas, de repente, esses mundos, até então separados, começaram se encontrar nos espaços ditos públicos. Nos últimos 15 anos, esses encontros se intensificaram. Nos shoppings, nas escolas, nas universidades, nos aeroportos. E o caldo entornou. O Brasil cordial virou piada de mau gosto. A democracia racial se transformou em uma propaganda de cerveja.
Mesmo assim, cada vez que nos levantamos quando somos agredidos, cada vez que parte da sociedade se mobiliza, seja compartilhando em rede, seja indo pra rua protestar contra o genocídio da população jovem negra periférica, cada vez que a imprensa se posiciona claramente, o futuro se torna um pouco mais possível.
Racistas não passarão.