Lucas Martins, dos Jornalistas Livres / Edição: Katia Passos, Jornalistas Livres
Desde que lançou seu primeiro trabalho em 2018, o single Negócios, Marabu busca uma trilha específica para sua criação. Sem deixar de buscar no passado o que é importante para construir o novo.
O músico e estudante de história, Matheus Santos, 23 anos, nasceu na Zona Sul de São Paulo, e adotou o nome Marabu para construir, não apenas novas canções brasileiras, mas toda uma musicalidade efervescente.
Depois de duas faixas lançadas, o músico está preparando um álbum para tomar o mercado até o final do ano. Feito de forma colaborativa, com trabalhos de diversos artistas independentes e por meio de financiamento coletivo, o projeto exigiu uma intensa volta ao passado. Exigência feita pelo próprio artista, que deseja “usar o passado para entender o presente, pensando no futuro”. O clipe de Boa Sorte, segundo trabalho já lançado, também sairá em breve.
O álbum é um projeto que busca, “criar um universo se utilizando de linguagens musicais brasileiras”, como descreve o jovem músico.
Território de gigantes
Além de ser berço do maior grupo de rap nacional, os Racionais Mc’s, a zona sul conta com diversos grupos de Slam e Saraus, formas poéticas pelas quais Matheus começou sua trilha artística. Não por coincidência é lá que surgiu a Cooperifa, um dos mais importantes eventos culturais da cidade. Criolo é outra cria da região.
Em uma conversa com o repórter Lucas Martins, dos Jornalistas Livres, numa praça de SP, Marabu falou sobre o álbum, influências históricas, políticas e musicais que o trouxeram até aqui.
Curta esse papo agora…..
JL: Porque Marabu?
Marabu: Marabu é como se chama quem conta história no ocidente africano entre o que hoje é o Mali, na etnia Fula. Vi esse nome há bastante tempo e sempre achei da hora a sonoridade e o significado. Independentemente do que a gente trata e não é só história triste, dos problemas, quando pegamos o microfone, estamos contando uma história, uma narrativa. E faz um ano que assumi esse nome artístico. Faço o corre do Slam da poesia, faz uma cota e sempre tive vontade de fazer música, mas era inacessível, havia falta de conhecimento, nunca estudei música e em um determinado momento decidi “me jogar”. Conheci o Levi Keniata [produtor musical], que já era próximo do Wellison Freire [produtor executivo] e do Cauê Carvalho [produtor executivo]. A Amanda Figueiredo é a assessora de comunicação e trampamos com essa estrutura. É meio que uma rede, mas eles também fazem seus corres. Realmente forma uma rede,
Trampar com arte é muito difícil, principalmente a remuneração, a gente sempre tenta reverter alguma coisa, fazer o orçamento certo e pagar corretamente. Mas não é em valor de mercado e isso sempre trava e não é o modelo ideal. Mas temos conseguido caminhar com o que dá.
JL: Qual é a proposta do disco?
Marabu: A proposta é não buscar uma estética musical na brisa estadunidense como o Rap de lá, que por mais que ele tenha criado outra vertente no Brasil, tem uma cara muito gringa. Tudo que a gente cria agora para o disco também tentou colocar ao máximo na faixa Boa Sorte e um pouco na Negócios. A ideia é criar uma nova estica para o Funk porque o disco é disco é de funk, com uma outra proposta narrativa, poética, melódica, mas não sei nem se é nova, porque a gente busca muito fundamentos nas antigas. E para trampar eu procuro ouvir sempre Neguinho do Kaxeta, PP da Vs, Felipe Boladão. Conhecemos o que a indústria do Funk propõe, uma indústria cada vez mais está vinculada às grandes gravadoras e não estou fazendo um juízo de valor dessa brisa, mas sim chamando atenção para o que pode surgir disso, que é uma brisa de preto, de terreiro, que veio do Rio e passou pela baixada até chegar em São Paulo. Então eu não acredito que para artistas de quebrada o Rap e o Trap sejam as únicas linguagens para contar narrativas fora do comum. A gente pode fazer isso no Samba, no Funk porque uma linguagem não pertence a uma única narrativa e na Negócios, demos um passo, a Boa Sorte enverga mais e no disco todo vamos trazer isso mais do que nunca. As duas faixas foram criadas para Sarau e Slam, mas elas se transformam em música. E elas carregam um pouco da brisa do Rap, por ser falado. Mas minha musicalidade busca ter outro destino. No Slam e no Sarau eu já sentia uma brisa muito diferente do que eu propunha. Eu buscava uma melodia, uma outra estética.
JL: Existe uma narrativa no disco?
Marabu: O que dá para adiantar é que o disco fala do presente. Não sei bem como os artistas chapam com isso, mas acho que muitos fazem e fiquei muito feliz quando percebi. A ideia é tratar o presente e o futuro como não muitos distantes porque o futuro acontece amanhã, daqui cinco minutos. Pensa o futuro sempre tentando compreender o presente. O disco tenta materializar o presente para entender o futuro em todos os aspectos, políticos, artístico e cultural.
JL: Como historiador essa relação entre tempos fica mais fácil…
Marabu: Com certeza. As pessoas acreditam que a história é sobre o passado e não é. A história é fundamental para compreender o presente e para imaginar, mas não conseguimos nem chegar perto do que vai ser o futuro. Por exemplo, enquanto a gente está aqui trocando ideia, estamos ouvindo mandelão [que toca ao fundo, em uma barraquinha no meio da praça] e por mais que pareça extremamente digital o que marca o ritmo nessa música é um agogô que está numa clave de congô. Congô que é clave de terreiro, de tambor de terreiro. Ninguém no passado imagina que futuro seria assim, que teríamos um agogô distorcido nesse grau e sincronizado no ritmo das músicas. Mas foi o que aconteceu. A musicalidade no Brasil e das quebradas daqui se vincula aos tambores. Não dá para pensar nossa música sem percussão, sem ritmo. Mas não é aquela brisa romântica de globeleza, escola de samba. O funk e o pagode estão nisso, nada foge disso. Negar seria ignorar nossa identidade. Sempre falo sobre isso. Qual é a nossa identidade e das pessoas criadas aqui? Nossa identidade é roubada o tempo todo. Principalmente as pessoas pretas e de quebrada. É como se arrancassem nosso braço e a gente tivesse que ficar se convencendo que existe um outro braço que vai encaixar no nosso corpo. É isso que a gente tenta contar, como o samba e o pagode, junto com o Funk. Por quê tocaram tanto no ouvido das quebradas, por que as pessoas são tão apegadas? Não tem como negar isso. Mas não sei se minha graduação se encontra com minha arte em algum lugar. A história é uma coisa bem da hora, mas a graduação é outra coisa. Não tem história da Ásia na grade, tem história do brasil, mas pela referência colonial. Seis meses de história da África, só para falar que tem. E eles sabem disso, professor da USP sabe disso. Por que ninguém se mobiliza para mudar? Não é interessante para ninguém. Eles querem estudar os ancestrais deles, os ancestrais italianos. Pela graduação não me deram instrumento para pesquisar, mas a gente vai atrás. Trabalhei três anos no núcleo de consciência negra, e lá eles têm esses instrumentos. Foi o que me trouxe muitas dessas ideias.
JL: Como está sendo o processo de produção do disco?
Marabu: Dentro do estúdio, nos dois projetos anteriores, ficava a maior parte do tempo só eu e o Levi. E em Boa Sorte, o Matheus Miranda [engenheiro de gravação] que também trampou com a gente. Mas sempre fazendo essas mesmas perguntas. Dentro do estúdio, pensando, perguntando e ouvindo. Esse foi o primeiro processo, se perguntar e buscar essas estéticas. Mas o que eu tenho hoje e o que eu faço hoje, para o disco, tem muito desses processos, mas eles não dizem do que quero falar agora. Então fico muito na emergência de precisar lançar outras coisas e continuar fazendo novas coisas. Para ser um artista cada vez mais contundente.
Para pensar a estica visual e conceito teve muito do fotografo Felipe Cardoso, na Negócios, e a Mariane Nunes, uma cineasta foda de São Paulo, junto com o designer Beatriz Carvalho. Em Boa Sorte a obra de arte é da Linoca de Souza, uma aliada de muito tempo do Campo Limpo e uma artista visual, A montagem do clip é do Vitor Sepinho. Tudo nesse esquema de rede “tenho esse tanto pra pagar para você, vamos fazer? Demorou!” e tem sido à duras penas. No disco a gente está trampando com a Nazura que vai fazer toda a parte visual do disco e o Levi produzindo, junto com o Matheus.
JL: Você vive em tripla jornada. Estuda, trabalha e produz o disco…
Marabu: Viver de arte em São Paulo, é quase impossível. A maior parte dos artistas independentes trabalham assim. Conciliando duas, três jornadas. Tem artista que é mãe, graduanda musicista e ainda tem outro trabalho. E a gente tenta encontrar o ponto de intersecção de tudo isso.
JL: E o cotidiano do processo?
Marabu: Eu trabalho no disco todos os dias, ouvindo sempre o material e passo dois dias imerso no estúdio com o Matheus e o Levi. Criamos o conceito e a composição fina, algumas com voz e violão outras com percussão. Depois a gente vai fazer o arranjo instrumentação final e gravação das vozes. Essa é a brisa, na lógica comercial se faz música toda semana. As músicas ficam prontas em um ou dois dias e até funciona. Eu chapo em várias coisas que são produzidas dessa forma, mas penso detalhe por detalhe para encaixar tudo no conceito. Eu tenho a brisa de fazer um álbum, que tem um conceito e esse conceito segura as faixas.
JL: Isso vai além das letras?
Marabu: Completamente. Nesse universo que a gente quer para o álbum, nos perguntamos: como as pessoas são? Como se transportam de um lugar para outro? Como são os pichadores? Como são as músicas? E o álbum pretender criar as músicas para esse universo. Minha brisa é criar um universo não qual a gente possa continuar trabalhando daqui para frente e deixar um bagulho aberto para outros artistas, uma árvore com a semente de uma outra. Se outros quiserem entrar nesse universo e criar outras brisas lá dentro, vai que vai! Acho que cada música do disco é tão bem pensada que acaba criando a possibilidade a possibilidade de criar um outro universo a partir dela. Esse é o caminho, pensar estética, conceito, arte e linguagem.
JL: Existe um lado romântico no disco?
Marabu: Essa coisa de amor paixão, amor romântico, está presente. Mas como funciona o amor romântico nesse universo? Como é universo dos pretos, das quebradas? O que é o amor romântico? É essa brisa pensada pelos europeus, criadas pelos europeus. Quando a gente pensa em amor romântico a gente pensa em Romeu e Julieta. E agora estão pensando em relacionamento aberto, não monogâmico, mas ainda quem está pensado são os europeus. A estética vai ser deles. E como isso funciona para nós? Tem que tomar muito cuidado, eu não estou falando só de mim. Estou falando de outras pessoas também. Acaba tocando em outros ambientes de quebrada, sobre os pretos, que não é só meu.
Se eu falo de um ancestral esse ancestral não é só meu. Então tem que tomar um cuidado e um respeito porque fala de outras pessoas.
A gente tem perdido muito o respeito por nós mesmos. Pense que em São Paulo uma boa parte das quebradas elegeu políticos que estão aí. Isso é perder o respeito por você mesmo. No Rio de Janeiro os filhos do presidente quebram a placa com o nome da vereadora [Marielle Franco, vereadora assassinada em 2018] que trampava nas quebradas. E várias pessoas de quebrada acham que isso é normal. Isso é perder o auto respeito.
JL: O disco tem uma pegada política ou alguma passagem sobre o cenário atual?
Marabu: Tem um espaço de poder criado, que surgiu quando o Brasil virou uma república através de um golpe, e esse espaço está sendo disputado até hoje. Eu não acredito nesse espaço como um território de transformação e mobilização real das pessoas para que elas exerçam a vida política.
A concepção política, repúblicana e democrática que temos, é antiga e não foi pensada por nós. O Brasil é um Frankenstein social. A gente criou uma sociedade, que envolve muitas diásporas, genocídio, movimentos migratórios. Esse espaço tem que ser totalmente repensado e não será por essa realidade que está aí no poder: hoje vivemos o resultado dos atos da centro esquerda brasileira.
Alternância de poder, dentro dessa lógica, é uma palhaçada. Alterna o poder e a gente se fode um pouco menos aqui, para se foder um pouco mais depois. No Estado de São Paulo nunca deixamos de ter um governo de direita e convivemos pacificamente com isso, ouvindo há duzentos anos os mesmos políticos falarem. E mesmo quem quer falar diferente, como o PT, tem que negociar. E com essas negociações a gente vai atrasando o futuro e o presente futuro das quebradas. Essa realidade foi pensada para agilizar o lado da branquitude e da elite brasileira.
JL: Mas de qual forma você aborda isso no álbum?
Marabu: Isso não é abordado diretamente, porque se a gente quer pensar o novo, temos que começar com novas perguntas. O álbum não pretende ser um panfleto político. São abordadas questões subjetivas, políticas sim. Eu te trombar para falar para esse veículo de comunicação, nesse lugar da cidade, tudo isso representa muita coisa. Se eu não tivesse a condição, se não tivesse uma política pública para me oferecer, como universitário, condução de graça eu não estaria aqui. Você teria que ir ate minha quebrada para falar comigo. Já mudaria muito a lógica. Então, o disco é político, mas ele é artístico em primeiro lugar. E pretende ser tão artístico que não tem como fugir da política. Diz tanto sobre nós que acaba sendo político. Quem faz arte? Como é viver de arte? Quem pensa arte? Quais as políticas públicas que pensa na arte, se é que elas existem? Quando a iniciativa privada entra na arte e quando entra, por que ela entra?
JL: A forma de produzir é uma forma política em rede e independente? E como você falou, não alcançado o valor de mercado para a produção, isso não é o ideal já que não é possível viver só da produção….
Marabu: Dizer que a gente não quer dinheiro, não dá. A gente tem que viver. Mas tem muita gente que vive de arte e música sem perder a contundência artística e a relevância como os Racionais e o Emicida que não perderam a brisa artística. Mas a maioria das pessoas que circulam no meio são da elite. Eu pretendo ser o artista, e eu acho que o Criolo é esse artista, que cria uma brisa nova. Que cria uma linguagem nova. E quando todo mundo compreender essa linguagem, eu crio outra. O Criolo é esse mano, que está caminhando e quando você acha que entendeu a caminhada dele, ele mesmo se dá uma rasteira e volta, de outro jeito. E hoje é assim, quando você compreende que a coisa é presente, é porque já virou passado. Quando chega no Facebook e na Globo, já é passado. O futuro e o passado estão muito perto.
JL: O Emicida lançou há pouco tempo uma música que recuperou Belchior…
Marabu: Tem a questão de buscar fundamento musical nos artistas, como o Belchior. Mas o que ele busca no Belchior é muita brisa poética. E nesse disco, Alucinação [do Belchior], ele compreende muito bem o tempo dele. Tao bem e com perguntas tão fodas sobre o futuro a ponto de um artista como o Emicida conseguir ir lá revistar e achar algo que precisa ser dito hoje. É o uso do passado para entender o presente, pensado no futuro. Isso parece ser novo. Mas é algo que os pretos já fazem faz tempo. As quebradas já vivem faz tempo. E a gente pensar no que se tem feito com o Funk hoje, se tem feito algo que mira o pop estadunidense. Não ritmicamente, que é mais nosso, mas na linguagem. E em São Paulo, as pessoas pretas de daqui, tem que aprender com as pessoas pretas do resto do Brasil. A gente fica sempre mirando o de fora. É muita arrogância. Tem gente produzindo arte no Amazonas, no Pará, em Recife. E São Paulo é uma esquizofrenia, as pessoas realmente acreditam que são o outro. Os pretos têm um grande problema de identidade, os índios e os brancos também. Está todo mundo querendo ser o outro. Legal que eles se preocupam com a sua ancestralidade e o Estado corrobora.
JL: Já que você busca falar daqui e parece pelo que que fala, São Paulo é uma das personagens do álbum?
Marabu: São Paulo e principalmente minha quebrada, o Capão Redondo. O disco tenta pensar, nesse universo que o Marabu está pensando, como é esse Capão Redondo? É uma ótica de Capão redondo e tenho certeza que ela vai tocar outras pessoas. É por isso que Racionais ainda funciona, falaram “nós tá localizado nesse lugar aqui”. A gente fala de todas as quebradas, mas no limite é sobre essa aqui. Só quem mora no Capão, sabe como é o Capão pela lógica de funcionamento. Se você para conversar com meu pai, minha mãe e meus avós, as histórias batem. O que é o cemitério de São Luís? O cemitério que mais recebeu em São Paulo, pessoas mortas em homicídios e esse fenômeno é uma coisa de lá. O disco vai falar dos fenômenos do Capão.
JL: Como você mencionou, que é do Capão, o disco tem influência de Racionais ?
Marabu: O disco tem muita referência a isso. Racionais nos criou. Meu pai nunca ouviu muito RAP, mas eu ouvia Racionais com ele. O sentimento de quem mora no Capão é muito único. Todo dia, quando pegamos o metrô vemos o grafite lá na porta. Dentro dessa régua que mede o tempo das quebradas, no Capão, os Racionais estão lá. Em um dos fenômenos desse tempo que não foi pensado. E a esquerda branca brasileira se utilizou muito de movimentos, como os Racionais, para entrar na quebrada. Se não fossem eles o PT não teria tido a mesma abrangência nos anos 80 e 90, no Capão Redondo. Por isso o Brown tem a moral que tem, pra chegar e falar “o PT tem que voltar para a base. Eu levei vocês para minha quebrada, olha o que vocês viraram. Pegue vocês pela mão e levei na minha quebrada”. E assim como o RZO é da Zona Oeste, o Daleste da Zona Leste, como o sempre Neguinho do Kaxeta e o PP da Vs são da fenômenos da baixada. É muito bonito isso. O disco vai ter 8 faixas, todas inéditas.
JL: Planos para depois de finalizado o ábum?
Marabu: Cantar em todos os lugares que der para cantar. Eu quero me fazer muito presente no meu Estado, na idade e no país.