Futebol Callejero no Capão Redondo

 

Evento Estéticas das Periferias leva futebol de rua e conscientização para o Capão Redondo


Neste 30 de Agosto, domingo passado, aconteceu o último Encontro Estéticas das Periferias, no Capão Redondo, mais precisamente na Vila Valquíria. O evento foi organizado pela Ação Educativa em parceria com diversas outras instituições, entre elas a Associação Capão Cidadão, que forneceu o espaço para o evento acontecer. Este encontro passou também por outras regiões consideradas de risco pelos altos índices de violência, levando cultura, lazer e conscientização para os moradores das comunidades.

Uma das principais ferramentas para que eles tenham sucesso na empreitada é o futebol, esporte que sempre promoveu sociabilidade entre os moradores de comunidades carentes do Brasil. O futebol tradicional, que é o utilizado pelos grandes clubes do mundo, perdeu boa parte de seu espírito de coletividade e têm cada vez mais levado os jogadores a pensar unicamente no capital, na carreira e no individualismo antes de ver a influência que tudo isso tem nos jovens carentes. Para mudar essa ideia, o Estéticas das Periferias realizou o I Festival de Futebol de Rua e contou com uma metodologia diferenciada do futebol, o Fútbol Callejero (espanhol para ‘Futebol de Rua’), que foi criado na Argentina pelo ex-futebolista Fabian Ferraro e já está presente em mais de 64 países ao redor do mundo, contando inclusive com uma Copa América e com um mundial.

O Futebol Callejero tem regras diferenciadas do futebol tradicional. O jogo é dividido em três tempos ao invés de apenas dois, sendo que no primeiro tempo os jogadores se reúnem para discutir as regras a serem utilizadas durante a partida. Essas regras podem variar de acordo com a necessidade de cada equipe e comunidade, mas alguns pontos básicos precisam ser seguidos.

No segundo tempo o jogo acontece e no terceiro os jogadores se reúnem novamente para discutir se as regras combinadas foram cumpridas. Tudo é feito sob a supervisão de mediadores, que agem como auxiliadores do diálogo. O sistema de pontuação pode mudar, por exemplo. O gol pode valer mais que apenas 1 ponto se ele for fruto de uma troca de passes ao invés de uma jogada individual. A ideia do Futebol Callejero é fazer com que os jovens entendam conceitos de coletividade e de resolução de conflitos através do diálogo e do respeito mútuo, eliminando assim a necessidade de uma autoridade em campo, que no futebol tradicional é representada pelo juiz. Além de promover o debate, o Futebol Callejero promove também a discussão de gêneros entre os jovens da comunidade, ao permitir que mulheres e homens entrem em campo juntos. A medida tem forte influência na questão de gênero nas comunidades.

Foto: Adolfo Gabaldo Garroux

As mulheres, inclusive, pareciam comandar os jogos, fazendo gols e dando dribles desconcertantes. Eram também voz ativa na hora de discutir as regras e o cumprimento dessas, e eram devidamente respeitadas pelos participantes masculinos. O poder de conscientização disso é astronômico, mostrando para a sociedade que as mulheres tem a mesma capacidade dos homens — se não tiverem mais. Toda essa metodologia veio para ensinar aos jovens que, se organizados, eles mesmos tem o poder de conduzir a sociedade de forma pacífica e efetiva, sem a necessidade de grandes autoridades para lhes dizer exatamente o que fazer. No final do evento troféus são entregues aos jogadores como premiação pela participação no festival.

Rodrigo Guimarães, um dos mediadores e também jogador consagrado do Futebol Callejero no Brasil, falou conosco e explicou que essa é a metodologia escolhida pelos organizadores por seu poder de conscientização social. “Se a gente consegue resolver os conflitos do futebol por meio do diálogo, por que não conseguiríamos resolver conflitos da sociedade no geral? A ideia é que não formemos apenas jogadores ambiciosos, mas também cidadãos.”, disse.

Coletivo Narra Várzea. Foto: Adolfo Gabaldo Garroux

Todos os jogos foram narrados ao vivo pelo Coletivo Narra Várzea, que estava no palco conduzindo o evento ao lado de um DJ que fazia a alegria dos jovens com seus beats de rap. Aliados a um discurso majoritariamente sócio-educativo, o Narra Várzea, como o próprio nome já diz, existe para levar narrações esportivas para os jogos das comunidades. Os narradores agiam também como conscientizadores sobre diversas questões que pudessem surgir durante as partidas, como por exemplo a discussão de gêneros, sempre falando sobre a presença feminina em campo e como isso deveria ser respeitado. A empolgação dos narradores durante os jogos fazia também com que os jovens se sentissem importantes mesmo sem a ideia do futebol tradicional de crescimento individual. Um dos narradores e participantes do Coletivo Narra Várzea é Dugueto Shabazz, rapper, que atua também como arte-educador para os jovens da periferia. “A ideia é que o jovem da periferia não precise ir até o Ibirapuera pra encontrar lazer e cultura. Queremos que eles possam ir ao Ibirapuera também, mas eles tem que ter isso dentro da quebrada deles”, disse. Dugueto critica também a posição dos órgãos governamentais, principalmente o governo do Estado, que se mostram ausentes nessas questões básicas que necessitam de total atenção. Eles estão nos lugares onde essa consciência social precisa ser melhor difundida, e o fazem com total efetividade.

Conversamos também com Magrão, representante da Associação Capão Cidadão, que nos contou um pouco de sua participação nas ações sociais da região. “Isso tudo aconteceu na minha vida após eu ter visto um grafite na rua, uma frase do Raul Seixas. ‘Sonho que se sonha só é sonho que sonha só. Sonho que se sonha junto é a realidade’. A partir dessa ideia eu comecei a mudar a minha vida no sentido de observar as coisas, de sonhar junto com as pessoas. E vejo que uma frase na rua, junto das tecnologias modernas utilizadas da forma correta, pode implantar conhecimento e mudar a vida de uma criança. É importante se igualar à criança, entender o universo dela”, disse. Nada melhor para isso que o futebol e o grafite, que estão presentes nas vidas dos jovens de periferia, que olham para essas práticas com olhares diferentes dos que olham para as práticas criminosas. A arte, a cultura e o lazer tem o poder de fazer com que os jovens sintam-se acolhidos e entendidos ao invés de ameaçados.

“Eu fiquei encantada desde o inicio quando a proposta do Futebol de Rua me foi apresentada. Foi um pouco difícil no começo, levamos um ano pra conseguir participar e fomentar esse projeto, que é preventivo, sem dúvida. É importante ensinar aos jovens que existem outras formas de se resolver conflitos além das já utilizadas hoje, através da paz e da conciliação”, disse Maria Luiza de Freitas Nalini, presidente do comitê de ação social e cidadania do Tribunal de Justiça.

Fotos: Dayane Ponte

Além do Futebol Callejero, o evento contou também com apresentações teatrais e musicais, e também de grafites que foram pintados nos muros da sede da Associação Capão Cidadão. O evento teve grande participação da comunidade e de instituições como o Movimento População de Rua. A população da região compareceu em massa no campão de terra que era chamado pelo Narra Várzea de Arena Pantanal, além de prestigiarem o evento também de suas lajes e janelas que estavam viradas de frente ao campão. O evento durou o dia inteiro e incluiu diversas crianças e adolescentes da região, que poderiam muito bem estar em outros lugares naquele domingo ensolarado que não aprendendo sobre consciência social, consciência de gênero e coletividade.

Foto: Adolfo Gabaldo Garroux

 

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