Virando o jogo

Quando a ação é reação: a tecnologia do encontro pelo resgate da convivência

Já era noite. Embaixo do pergolado do Praça Roosevelt, zona central de SP, com a PM à vista, o Cauê Novaes, do Coletivo Transverso ajudava o João Claudio de Sena a colar seu trabalho fotográfico junto aos microrroteiros da cidade, de Laura Guimarães. Eu me afastei um pouco do grupo, olhei para o outro lado, mirei o céu e não aguentei. Chorei.

Porra, como é bom ainda poder se emocionar! Fizemos algo grande, e, naquele momento, a ficha caiu: um sábado inteiro de cores, bandeiras, conversas, palavras, corpos, imagens. Não sei ao certo, mas foram aproximadamente 300 artistas, coletivos, movimentos sociais, estudantes, grupos de moradores, pais, mães, famílias, participando da #ViradaPenal, da rede de intervenção contra a redução da maioridade penal.

Por que mergulhei de corpo e alma nessa causa? Primeiro, eu já tive 16 anos. Eu lembro o que é ter 16 anos. E sei o quanto me distanciei daquele menino de 16 anos. Segundo, não acredito em punição. Nunca acreditei. Esse é o caminho dos impacientes. Terceiro, nunca alimentarei essa cultura do medo, da arquitetura da exclusão, dos alarmes, das cercas eletrificadas, dos condomínios fechados, das milícias de calçada, da polícia punitiva, da indústria do encarceramento, da discriminação, da intolerância. Nunca.

O dia começou silencioso, em meio a quadros de aviso de igrejas católicas e suas paróquias. O papa é pop. O papa é contra. E terminou numa escadaria pública junto de colaboradores #JornalistasLivres.

Um dia inteiro separava esses dois momentos.

Aquelas ações me fizeram acreditar na tecnologia de rede. Me fizeram acreditar na tecnologia do encontro. A rede só se torna verdadeiramente eficaz quando existe o encontro.

Duas semanas reencontrando velhos e novos conhecidos por facebook, twitter, email, instagram, celular. Corpo a corpo, recados únicos, memória.

Da rede para o espaço público. Considero a rua, o espaço público, uma das chaves mais importantes para combater ideias antiquadas como essa da redução da maioridade penal. Essa ideia é velha, nasceu velha. Por que temos que discutir um método punitivo, quanto mais para adolescentes que ainda estão em formação? Por que não estamos na rua para procurarmos soluções que ataquem o começo dessa história? Por que não pensar no antes em vez de pensar no depois?

Pensar numa revolução educacional, valorizando o professor, possibilitando ferramentas de reciclagens periódicas, mudança das ementas, introdução da rede na possibilidade de trocas entre alunos, utilização do espaço público como lugar de pesquisa e estudo, participação dos pais como co-gestores, “inclusão” como matéria oficial do currículo básico, “preconceito”, “tolerância”, “movimentos sociais”, “tecnologia de rede”, “tecnologia comunitária”, enfim, o entendimento da vida como uma variedade de sala de aula, como estudo de uma nova arquitetura educacional.

Precisamos pensar também em uma reestruturação completa do sistema carcerário tanto de adultos quanto de adolescentes. É urgente mudarmos o pensamento: da punição para a reeducação. É urgente combater o preconceito, o racismo, e as distâncias que separam mundos.

Voltemos à rua. A rua é a extensão natural do quintal de casa.

É imprescindível transformarmos a rua em nosso território de ação.

É na rua que temos os primeiros contatos com as diferenças, sejam religiosas, sociais, raciais. É nesse território que aprendemos sobre a tolerância, o combate ao preconceito, a convivência. E nessa convivência, abrimos espaço para a ideia comunitária, o sentido coletivo, a formação de um bairro, de uma cidade.

E assim, chegamos nesse dia 9/5, o dia do início da #ViradaPenal. Quando abrimos o bandeirão da casadalapa no Viaduto do Chá, foi só o começo do entendimento do alcance dessa rede. Lambe-lambes do Muda de Ares e família em Perdizes, do Ocupe a Cidade em Bom Retiro, dos Paulestinos, Laura Guimarães, Rudá K. Andrade, Coletivo Transverso no Centro, grafites em São Bernardo na Sopa do Galo, em Mauá, no Grajaú, em São Mateus, Itaim Paulista, na Lapa.

Os filmes “De Menor”, da Caru Alves de Souza no B_arco, com a presença da diretora e de Carol Trevisan, dos Jornalistas Livres e, “Sem Pena”, do Eugenio Puppo, no Parque Augusta.

O incrível ZAP! — Zona Autônoma da Palavra, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, com a presença silenciosa/barulhenta do Slam do Corpo, do coletivo CorpoSinalizante, os alvos vivos do Geandre Tomazzoni, da Bijari, diretamente de Querétaro, México e também da Av. Paulista, os pontos de ônibus ocupados pelo Nova Pasta, o resultado forte do workshop da Frente 3 de Fevereiro no Rio de Janeiro, a presença do movimento de moradia FLM/MSTC com suas faixas nas fachadas das ocupações, os materiais do movimento estudantil, ações em cidades como São Roque, Juiz de Fora, Araçatuba, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Recife, e até em Paris, em frente ao Consulado Brasileiro.

As projeções do Godoy, da Bijari, o Condomínio Cultural causando no metrô, a ocupação da Waldir Azevedo, o Projeto Matilha e suas conversas em Itapeva, os shows na Ocupação Mauá, na Serralheria. Videoinstalações na Oswald e no Centro Cultural. Performers em trânsito na 25 de Março, Anhangabaú e Barra Funda.

Tambores que ecoam pelo Butantã. Poetas que declamam seus sentimentos na rede e na rua. E a genial Laerte nos muros da cidade.

E todos os artistas que se declararam contra a redução em shows, peças de teatro, festivais de dança, saraus. Argentinos, bascos, italianos, colombianos, mexicanos, franceses, haitianos, nigerianos, brasileiros.

Foi muita coisa que aconteceu. Muita gente que tirou a bunda do sofá e veio escrever a sua versão da história. Fico feliz de ter contribuído para que esse assunto não se perca nos programas vespertinos da TV.

E agradeço a todos que participaram das ações. Que trouxeram sua arte, sua indignação, sua força, sua voz, seu sorriso.

Mas tenho um pedido a mais. Como diz a Frente 3 de Fevereiro e Gaspar Z’África Brasil, “conquistas, glórias, derrotas, vitórias de tantas batalhas traçadas”. Não temos todo o tempo do mundo. Por enquanto, ainda não. Continuemos na rua, no espaço público, nas praças, nas pontes e overdrives.

Continuemos a acreditar em algo novo, algo vivo e verdadeiro. Eu continuo a acreditar. E aquele sábado inesperado foi só o começo. Apenas o começo!

Participe da rede de intervenção contra a redução da maioridade penal!

 

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