Falar como me sinto privilegiada pelo fato de a Escola da Vila
ter-me feito acreditar na escola
como uma instituição fundamental
para a preparação dos alunos para a vida em sociedade?
Para uma vida mais cooperativa e menos competitiva,
mais aberta a novas ideias e menos cheia de certezas,
mais sensível ao diferente e menos individualista!
Sônia Barreira1
Nesse sábado (27/05), ocorreu uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, organizada pelo deputado Carlos Giannazi2, para discutir o caso da Escola da Vila e o avanço do capital financeiro sobre a educação básica brasileira. Indo muito além da venda da escola para uma empresa com atuação predominante no mercado financeiro, a Bahema S.A., educadores, educadoras, pais e mães de alunos discutiram onde essa negociação se encaixa no contexto atual brasileiro de avanço da finança sobre a educação e no desmonte da escola pública.
Defender a escola dos sócios?
Diante da ameaça de desmonte, pais e professores se organizaram para manter o projeto político-pedagógico da Escola da Vila, o que é um paradoxo, ressaltou Maurício Ayer3, “mobilizar para defender a escola de seus próprios sócios”. A relação da diretoria com os pais e mães de alunos, bem como o cuidado com que os professores têm se colocado, por medo de perseguição, já configuram mudanças importantes provocadas pela entrada da empresa financeira como sócia. O vídeo abaixo mostra o ato AbraçaVila em 27 de abril.
Mas, em que medida essa negociação se insere no momento em que vive educação no Brasil?
Se pensarmos que uma escola privada, dirigida a famílias de alto poder aquisitivo, foi vendida para um fundo de investimento ou para uma empresa financeira, nada há o que se acrescentar: foi um negócio corriqueiro em tempos de capitalismo financeiro do século XXI.
Se, no entanto, olharmos com mais cuidado, talvez vejamos a transferência de uma escola com uma marca fortíssima em abordagem alternativa, “cuja grande contribuição é a investigação didática e cujo patrimônio é o trabalho dos educadores”, como ressaltou Rosângela Veliago4, para um grupo especulador, com todas as características ideológicas opostas àquelas que se imaginava da escola, dentro de um contexto de crescente assédio de corporações, fundações e institutos de bancos e grandes empresas à educação no Brasil.
Aniquilar um dos maiores símbolos das escolas progressistas ou se apoderar de um nome, de uma história, de um legado que os habilitará a voos mais largos, para eventual privatização do ensino fundamental e médio ou para a comercialização de “insumos pedagógicos” no mercado educacional?
O que teria movido a Bahema S.A. a comprar 80% da Escola da Vila?
Qual é o objetivo da Fundação Lemann, do fabricante de cervejas,
em influir sobre a Base Nacional Comum Curricular?
Qual é o interesse do Itaú-Unibanco com a educação?
O que pretendem banqueiros e grandes empresários
reunidos na associação Parceiros da Educação?
As respostas e as hipóteses são importantes, pois a partir delas podemos compreender por que educadores(as), em geral, estão atemorizados e avaliar a dimensão do perigo diante do qual se encontra o conjunto da educação brasileira.
Vamos, então, ampliar o foco.
“Nós brasileiros estamos vivendo tempos sombrios que ameaçam o futuro de país, a Educação como direito universal está deixando de ser um valor e um fator fundamental para construir um projeto de nação, o Estado está abrindo mão de sua responsabilidade social e está permitindo que a Educação seja tratada como uma commodity, o negócio da vez”, alerta Antônio José Lopes5, o Bigode. Ele relembra que esse governo fez aprovar uma reforma do ensino, sem qualquer discussão e a toque de caixa, “que no médio prazo tende a destruir a escola pública e as chances dos filhos das classes mais desfavorecidas de acessarem conhecimentos básicos e chegarem à universidade”.
“Os gestores desse desmonte são os mesmos que pretendem impor um currículo (a Base Nacional Comum Curricular), também a toque de caixa e sem a participação dos educadores (a primeira versão foi feita em 2 meses).” E complementa: “não vejo a Escola da Vila dissociada disso tudo”.
A privatização dos processos pedagógicos
“Os processos de privatização da educação – aqui entendidos como a transferência ou a delegação das responsabilidades sobre a elaboração, a gestão de políticas educativas ou sobre a oferta educacional para o setor privado lucrativo e/ou não lucrativo – têm se aprofundado desde o final do século XX.” Assim, Theresa Adrião6 descreve os processos que têm encontrado contraposição de diversas entidades, nos âmbitos nacional e internacional, como a Education International que focou suas resoluções do Congresso Mundial de 2015 na privatização e na comercialização na educação:
“O 7o Congresso Mundial urge para que os governos
reconheçam a educação como fundamental
para o desenvolvimento social e a justiça,
e, assim, protejam a educação pública da privatização e da comercialização.”
A invasão privada na educação pública se dá pela disputa no mercado de “insumos curriculares”, conceito que, para Theresa Adrião, engloba “o conjunto de produtos e serviços diretamente relacionados à estruturação, portanto à conformação, do trabalho pedagógico”. Além da participação nos orçamentos do Programa Nacional do Livro Didático, as empresas ampliaram fortemente o número de municípios que compram os “sistemas privados de ensino”, compostos por sistemas apostilados, sistemas de avaliação, treinamentos, entre outros. “Já em 2010, mais de 50% dos municípios paulistas optaram por essa forma de privatização de sua política educativa”, ressalta ela.
Como foi a oligopolização e a internacionalização do ensino superior no Brasil?
“A entrada do capital financeiro na área educacional altera radicalmente a conformação do ensino superior privado no Brasil. Impõe padrões de gestão cujo único objetivo é reduzir custos, agindo nos estritos limites das tíbias normas de controle do setor privado existentes no país.” Dessa forma, Romualdo Portela de Oliveira7, inicia seu artigo A financeirização da economia e suas consequências para a educação superior no Brasil.
Prossegue ele: “Isso faz com que se amplie a utilização de ‘tecnologias’ como meio de poupança de horas-trabalho dos professores, quer seja com a utilização de educação a distância quanto de trabalhos ‘livres’ ou conduzidos por monitores em salas de informática, ampliando a rotatividade de professores, mantendo sua titulação nos limite mínimos estabelecidos pela legislação, enfim priorizando o lucro em detrimento da qualidade”.
O professor Romualdo usa os grupos Kroton e Estácio para ilustrar o processo de concentração de capitais financeiros na educação. A Kroton, cuja associação com a Estácio ainda tramita no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), tinha, antes da negociação com a Estácio, 1,1 milhão de alunos e era a maior empresa educacional do mundo.
Se a transação for aprovada, considerando que a
Estácio agregará quase 600 mil alunos,
o grupo se tornará “o maior maior do mundo”, brinca ele.
O valor da transação foi estimado em R$ 5,5 bilhões, com mais de mil polos de educação a distância e 213 campi. A nova empresa responderia por quase 30% das matrículas do setor privado no ensino superior.
A estrutura tradicional, como as universidades comunitárias, corre risco de ruir: “a forte concentração da oferta, ancorada unicamente no lucro, coloca a qualidade do ensino em segundo plano e, dessa forma, compromete a formação das futuras gerações de trabalhadores brasileiros”, conclui Romualdo Portela de Oliveira.
A venda de uma grife
O capital financeiro entrou na educação via ensino superior: “a venda de diplomas estava represada” ironiza a professora Débora Goulart8. Ela compara a venda da Escola da Vila à venda de uma grife. A escola fornece a marca, a chancela para, por exemplo, se candidatar a administrar as escolas de Goiás, como aquelas cedidas para a Polícia Militar. O ingresso de capital via ensino médio, pode ser a porta de entrada no setor público. Um setor apetitoso, dado que cerca 85% da educação básica brasileira está nas mãos do Estado.
A reforma do ensino médio e o poderoso lobby das escolas privadas
A Fundação Lemann, o Instituto Unibanco, a Fundação Itaú-BBA, o Instituto Natura negociaram a reforma do ensino Médio, afirmou Daniel Cara9. A ideia de que é possível ter educação de baixo custo precisava centrar nas habilidades básicas linguagem e matemática.
Ele lembra o encantamento das pessoas quando veem uma instituição de saúde gerida pelo Hospital Albert Einstein, mesmo que a qualidade não sejam comparável com a do Hospital. O mesmo está prestes a acontecer na educação. “A venda da Escola da Vila é mais paradigmática do que parece à primeira vista,” conclui.
O ensino básico público gira perto de R$ 200 bilhões por ano,
enquanto que o “mercado” do ensino superior é estimado em R$ 50 bilhões,
marcou Daniel Cara.
Um projeto ideológico
Carlos Giannazi, relembrando o sucateamento da FMU, pontuou: “A Bahema tem um projeto ideológico-político e pode até terceirizar tudo. A marca da Escola da Vila não mudará no curto prazo mesmo com mudanças no projeto político-pedagógico. Vocês foram golpeados.”
Educação para Todos
“É hora de pensar e agir agora, pois está em jogo o futuro de uma geração. Fica aqui lançado um chamado a todo cidadão/cidadã, sejam pais ou profissionais que tenham algum compromisso com a Educação para Todos – de verdade -, para que se unam e se organizem na defesa do direito à educação pública inclusiva e de qualidade, da liberdade de docência e da educação de seus próprios filhos”, conclama Antônio José Lopes, Bigode.
Quem está por trás do assalto às escolas públicas?
Howard Ryan, no artigo Quem está por trás do assalto às escolas públicas11, publicado na revista Monthly Review, volta à “revolta dos patrões”, dos anos 1970, quando foi gestado o avanço do neoliberalismo que assistimos ainda hoje, e conclui que: “a reforma escolar encaixava-se perfeitamente naquele esforço político”. Ele completa:
“Na minha análise, a reforma escolar é liderada por coalizões organizadas de grandes corporações, que buscam um currículo adequado à sua própria hegemonia econômica e política. Esses hegemonistas trabalham em estreita aliança com as empresas diretamente ligadas à educação – edubusiness -, juntamente com uma tropa de missionários do mercado filantrópico.”
O porvir
“[…] a universidade enquanto bem público é hoje um campo de enorme disputa.
Mas o mesmo se sucede com o Estado.
A direção em que for a reforma da universidade
é a direção em que estará a ir a reforma do Estado.
De fato, a disputa é uma só,
algo que os universitários e os responsáveis políticos devem ter sempre presente.”
Boaventura de Sousa Santos
Notas
1 Sônia Barreira: principal acionista da Escola da Vila antes da alienação de 80% da escola para a Bahema S. A. Atua na escola desde sua fundação e nos últimos 25 anos, foi responsável pela direção-geral e do Centro de Formação. Não havia representantes da diretoria da Escola da Vila na audiência pública. O texto da epígrafe de Sônia Barreira na comemoração de 35 anos da Escola da Vila, em maio de 2015, está em http://www.escoladavila.com.br/blog/?p=11499.
2 Carlos Giannazi: coordenou a audiência pública, exerce o 3º mandato de deputado estadual em SP, pelo PSOL, é professor universitário, diretor de escola pública, mestre em Educação e doutor em História (USP). Foi vereador da capital de 2001 a 2007, candidato a prefeito de São Paulo em 2012.
3 Maurício Ayer: compôs a mesa da audiência pública, é escritor, tradutor e pesquisador em literatura, com doutorado e pós-doutorado na USP em literatura francesa.
4 Rosângela Veliago: compôs a mesa da audiência pública, é assessora Pedagógica na Escola Ursinho Branco; trabalhou no Instituto Abaporu de Educação e Cultura; estudou pedagogia na PUCSP; frequentou Carlos de Campos ETE.
5 Antônio José Lopes (Bigode): compôs a mesa da audiência pública, é professor na Faculdade Sesi de Educação; trabalhou na Escola Vera Cruz, na Escola Novo Horizonte e na Escola da Vila; estudou na instituição de ensino Universidad Autónoma de Barcelona (UAB), no IME-USP e na Escola Técnica de Comércio Alvares Penteado.
6 Thereza Adrião: é doutora em Educação, professora da Faculdade da Educação da Universidade Estadual de Campinas, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE). Autora do artigo: A privatização dos processos pedagógicos: grupos editoriais e os negócios na educação básica. In: Maringoni, Gilberto (org.). O negócio da Educação: aventuras na terra do capitalismo sem risco. Federação dos Professores do Estado de São Paulo, São Paulo, Olho d’Água, 2017. 164 p.
7 Romualdo Portela de Oliveira: compôs a mesa da audiência pública, é professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, graduou-se em Matemática-Licenciatura, fez mestrado, doutorado livre docência em Educação, todos realizados na Universidade de São Paulo. Autor do artigo: A financeirização da economia e suas consequências para a educação superior no Brasil. In: Maringoni, Gilberto (org.). O negócio da Educação: aventuras na terra do capitalismo sem risco. Federação dos Professores do Estado de São Paulo, São Paulo, Olho d’Água, 2017. 164 p.
8 Débora Goulart: compôs a mesa da audiência pública, é professora o departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, campus Guarulhos. Estudou ciências sociais na PUC-SP e pedagogia pelo Centro Universitário Nove de Julho. É mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP.
9 Daniel Cara: é compôs a mesa da audiência pública, é coordenador na Campanha Nacional Direito Educação, faz doutorado em Educação em USP. Estudou Ciência política e ciências sociais na Universidade de São Paulo. Frequentou a ETESP.
10 Education International: para ver a Resolução do 7o Congresso Mundial: https://ei-ie.org/en/detail/14731/resolution-on-privatisation-and-commercialisation-in-and-of-education
11 Quem está por trás do assalto à escola pública? Howard Ryan é autor do livro Educational Justice: Teaching and Organizing against the Corporate Juggernaut. Para ver o artigo publicado na Monthly Review: https://monthlyreview.org/2017/04/01/who-is-behind-the-assault-on-public-schools/