ARTIGO
Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ. E é 70%
Trata-se de um excelente desafio para as esquerdas repensarem seus desafios, no interior de um modelo democrático representativo que, como princípio, não atende inteiramente às suas aspirações. Trata-se também de pensar o potencial desestabilizador das esquerdas em relação ao governo Bolsonaro, em meio a uma crise democrática anterior à pandemia de Covid-19, mas acentuada nela. Afinal, quais as condições da esquerda avançar em suas agendas, neste ambiente político? Como a esquerda se insere neste “somos” do #Somos70%?
Bolsonaro e a brecha antidemocrática
É necessária e tardia a formação dessa frente. Bolsonaro é a presença do passado ditatorial em nosso ambiente democrático, personificando a contradição de origem do sistema político inaugurado em 1988. O liberal Ulysses Guimarães no discurso de promulgação da Constituição exaltou o fim da Ditadura, dizendo: “Temos ódio e nojo à Ditadura”, “Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”.
Tal contundência não foi acompanhada por uma justiça de transição capaz de rever o pacto de anistia proposto em 79, julgando crimes e violações cometidas por agentes do Estado na Ditadura. Nesta brecha, Bolsonaro atuou intensamente. Como deputado, usava o espaço parlamentar para atacar a própria democracia. Comemorava, ano a ano, os aniversários do golpe de 1964. Bradava pela violência de Estado, do passado e do presente, como se esta já não fosse suficiente. Rechaçava o espaço da pluralidade democrática, do convívio com a diferença, dos princípios mais básicos de funcionamento da democracia moderna. Exemplo máximo, neste sentido, são seus ataques ao conceito de direito humano, um conceito de matriz liberal, fundado nos valores iluministas e da Revolução Francesa, renovado mais recentemente no pós-segunda Guerra Mundial, em contraponto ao nazi-fascismo. Bolsonaro formou uma identidade política contrária a todos esses valores em sua atuação parlamentar, crescente na crise representativa iniciada em 2013, se apresentando como voz e ameaça concreta a todos os espectros políticos existentes no interior do jogo democrático, de esquerda e de direita.
O movimento #Somos70% expressa a necessidade, tardia e urgente, de demarcar a diferença fundamental entre fascismo e democracia. O primeiro fundado na cultura do ódio, na violência de Estado em favor de um projeto único de sociedade, exaltação de uma política de morte, anulação das diferenças políticas, considerando o adversário como inimigo que não deve ser vencido, mas exterminado. A democracia se ampara em valores opostos a estes, tais como: a prerrogativa essencial do direito humano enquanto forma de preservação da vida, diferença política entendida como valor, convívio necessário com a pluralidade de projetos políticos, tendo em vista a inescapável condição de que o adversário continua no jogo mesmo que tenha sido derrotado.
Vejam que, enquanto princípio, se tomarmos como referência o contexto pós-guerra, a democracia não é nem de esquerda nem de direita. Como nos lembra o cientista político Luis Felipe Miguel, este contexto pós-guerra tornou a democracia objeto de disputas entre direita e esquerda. A direita, ancorada no lucro e na propriedade privada enquanto valores essenciais geradores de diferenças sociais, em função da capacidade individual dos sujeitos em alcançarem lugares diferentes de acordo com as suas capacidades. A esquerda prioriza o princípio da “igualdade social” fundado na possibilidade de equivalência (ou melhor distribuição) entre produção e distribuição da riqueza, fundamentais para a coletividade e, em consequência, para os indivíduos.
A Constituição de 1988 combina/ concilia, de maneira moderada, estes dois princípios: propriedade privada geradora de lucro como cláusula pétrea, geradora das diferenças sociais; direitos sociais universais, como saúde e educação, enquanto serviços essenciais comuns a todos. Um e outro, acomodados a um sistema político democrático, sustentado no equilíbrio entre os poderes republicanos, autonomia dos estados da federação, pluripartidarismo, eleições regulares, liberdade de expressão, dentre outros.
Situação limite para a direita
O caso brasileiro atual acompanha um fenômeno bem peculiar: mesmo eleito por um sistema democrático – ainda que em crise, tendo em vista o golpe de 2016 e impedimento da eleição de Lula em 2018 –, Bolsonaro é um presidente antidemocrático que radicaliza uma agenda econômica de direita. No primeiro ano de governo, o pragmatismo econômico pôs a direita democrática ao lado do governo Bolsonaro na aprovação da Reforma da Previdência. Mesmo assim, Bolsonaro já revelava grandes dificuldades de governar nas regras deste jogo, sobretudo em impor sua agenda própria, de unificação moral em torno do tripé “Família patriarcal, Bala (nos pretos) e Bíblia”. Exemplar, neste sentido, foi a derrota que conheceu na aprovação parlamentar de sua política de morte, por meio do armamento do “cidadão (branco) de bem” e do “excludente de ilicitude”, sinal verde para policiais matarem em serviço.
A derrota do Programa Escola Sem Partido, no âmbito do STF, é outro exemplo. Tal incapacidade de governar nos termos do jogo democrático se acentuou em 2020, sobretudo em meio a pandemia da Covid-19. Não bastasse não seguir as recomendações sanitárias da OMS, ele entrou em rota de colisão com o parlamento, governadores, STF, grande imprensa, todos eles associados ao arco mais ampliado da direita (não fascista). Formou-se, assim, nesta situação limite, o ambiente para que a direita (não fascista) identificasse em Bolsonaro um inimigo da democracia.
Desafios para a esquerda
O primeiro desafio da esquerda, portanto, é reconhecer que as regras do jogo democrático-representativo, ancoradas na Carta de 1988, não foram criadas inteiramente para a satisfação de suas aspirações. A atuação da esquerda no interior deste jogo é sempre limitada. Os governos petistas parecem ter reconhecido essas limitações, produzindo transformações sociais, à esquerda, negociando e pondo em prática, como nenhum outro, as regras do arranjo institucional de 1988. O segundo desafio é reconhecer seu lugar no jogo político atual, suas condições de avançar mais, ou avançar menos em suas agendas.
A ala parlamentar da oposição à esquerda tem sido notável, em sua missão essencial: reduzir danos. Tornar “menos pior” para o povo a experiência política do governo Bolsonaro. E não é de hoje, em meio à Covid, que este trabalho vem sendo realizado. A Reforma Previdenciária foi “menos pior” para o trabalhador e não se tornou um grande sistema de capitalização, em função desta atuação parlamentar. A retirada do excludente de ilicitude no pacote penal aprovado no Congresso é outro exemplo. A aprovação do auxílio emergencial no contexto Covid – velho desejo de renda básica do então senador petista Eduardo Suplicy – é outro exemplo. É importante reconhecer e narrar estas vitórias, nas ruas e nas redes, mas é também importante reconhecer que elas não são suficientes para reduzir a pobreza e a desigualdade social, escopo fundamental da atuação da esquerda. Há de se reconhecer que o trabalho é árduo, pois o Parlamento eleito era majoritariamente bolsonarista ou direitista, uma base que Bolsonaro conseguiu destruir em menos de dois anos de mandato.
O que encontramos de mais fértil no campo na esquerda em termos transformação propriamente dita está fora da dinâmica institucional. Está, por exemplo, na atuação dos movimentos negro e feminista, em sua capacidade de avançar na compreensão estrutural do racismo e do machismo, nos cruzamentos diretos com o funcionamento do capitalismo historicamente praticado aqui. Nestas lutas, antirracista e antimachista, a esquerda tem encontrado capacidade de expansão, acumulando forças que lhes permitem tornarem estas agendas inegociáveis. Justamente por atacarem dimensões historicamente estruturais, seus passos são lentos, mas incisivos e duradouros.
Cabe à esquerda, portanto, a despeito do esforço parlamentar e do avanço nas pautas de gênero e raça, considerar uma verdade inconveniente: nenhuma das maiores crises políticas de Bolsonaro foi gerada pelo campo da esquerda. Ela não conseguiu produzir nenhum grau de desestabilização institucional a este governo. A crise com o PSL, que rachou a base parlamentar, a crise ambiental, a crise com Mandetta, a crise com Moro, a crise com o STF, a crise com os governadores, em suma, a “usina de crises” deste governo, nos termos de Rodrigo Maia, não teve qualquer protagonismo da esquerda. Foi a própria pulsão destrutiva do bolsonarismo, antidemocrática por excelência, que gerou todas essas dissidências.
O terceiro desafio, provavelmente o principal, talvez seja construir uma unidade, uma coalizão democrática. Junto, sim, com a direita não fascista. O que une um e outro é a reação, urgente, à pulsão destrutiva para a democracia que o governo Bolsonaro representa. Isto significa assumir, no agora, a tarefa de admitir o esquecimento como condição fecunda, para não ver a presença inadmissível de um fascista na presidência. Tal unidade não implica em dissipação das diferenças: elas devem permanecer, pois são a própria condição de existência democrática. Nas eleições, essas diferenças voltam a aparecer, dando ao povo o direito de escolha. O #Somos70% se baseia nas últimas pesquisas de opinião que indicam que os bolsonaristas são hoje, no máximo, 30%. Talvez o maior desafio deste movimento seja convencer o povo, sobretudo àqueles que votaram em Bolsonaro por ele representar uma alternativa de mudança, de que não existe alternativa fora da democracia. De que a democracia ainda é único regime político capaz de garantir melhores condições de vida, material e subjetiva, para a sua existência. E nisto a esquerda tem uma contribuição decisiva.
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