Escoriações num corpo negro nu. Uma Vida que sofre. E grita. Um grito coletivo de dor, de denúncia, de resistência de povos. Não é um corpo num vácuo, a-histórico. É pessoa. Não, não é mais uma (re)produção artístico-cultural de época. Não é a épica resistência liderada por João Cândido em séculos passados. Não são matriarcas e patriarcas africanos falando de suas dolorosas memórias diaspóricas. Estamos falando de anteontem.
De ontem. De hoje. Uma dor ancestral atualizada todos os dias.
Chibatadas. Não, não foram clandestinas. Aconteceram entre paredes de mais um templo do capital, cujas regras também já validaram o sequestro de vidas negras na História. Sim, essas chibatadas não são datadas. Elas se perpetuam. A exclusão de vidas negras deste território pelo extermínio de suas existências é um projeto do colonizador que segue em franca ascensão, evocando velhas estratégias de opressão, mas também se atualizando com novas tecnologias de desumanização de algumas existências.
O suplício medieval parece revisitado na forma de um aparente espetáculo apenas para poucos, em uma sala isolada que comporta apenas algozes e suas vítimas. Mas, na verdade, não é um espetáculo para poucos – o corpo supliciado chega ao grande público e a posse ilegal de uma propriedade alheia parece justificar a sentença sumariamente executada; vão dizer nas entrelinhas – “ora, o ser que toma a propriedade de outro merece ser propriedade da vingança desse outro” – e a objetificação explode. E tortura – que é uma relação de poder de e para subjugação do outro, passa a ser vista como castigo – essa tecnologia histórica para convencimento social de que a violência sobre corpos, sobre vidas pode ser justificada. Semântica de oportunidade. Sofismas.
Sim, é tortura histórica que há todos os dias.
Considerando uma sociedade onde a propriedade é estimulada, mas seu acesso afunilado por mecanismos de exploração e segregação, não se deveria perguntar por que ele furtou uma barra de chocolate; mas sim por que não há barras de chocolate nas mãos de todas as existências. Por quê? Essa chibata, na verdade, está também nas mãos das milhares de pessoas que sustentam a engrenagem do ódio do colonizador que dissimula uma democracia racial. A negação da existência estrutural do racismo em nossa sociedade traduz-se como primeiro açoite em milhões de irmãos e irmãs.
Além de um corpo violentado pelo poder de mando do branqueamento em sua Casa Grande, estão outras tantas milhões de vidas que precisam resistir cotidianamente às chibatas contemporâneas, revisitadas e customizadas: são olhares, são assédios, são explorações, são restrições, são humilhações, são balas que atravessam milhões de famílias neste país todos os dias. E elas têm direção. Sim. Não se vê pessoa. Vê-se um corpo. E ele tem cor. A chibata também.
Cynthia Ciarallo é psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia, Professora Universitária e ativista DH. Integra Coletivo PsiDF, tendo atuado como Conselheira de Direitos Humanos no DF e na Coordenação de Combate à Tortura na Secretaria de Direitos Humanos.
3 respostas
Parabéns, disse tudo.
Fatos tão chocantes e abundantes que paralisam por instantes a esperança.
O desmonte do tão falado parque das instituições democráticas segue impávido diante de nossos olhos duvidantes.
E todo esse horror sustentado por parte do povo. Este é o maior horror.
#TorturaNuncaMais